Myriam Fraga, Camões (alto),
Jorge de Lima (centro), Francisco Carvalho e Emílio Moura
Caros,
Durante a história do poesia.net,
já tivemos alguns boletins dedicados a um tema, e não a um poeta. Foi assim, por
exemplo, quando comemoramos os 400 anos de Dom Quixote (boletim
n. 115); quando reunimos poemas de circunstância de Drummond e
Bandeira (edição
255); textos de sete autores com o tema “espelho” (edição
261); criações para crianças, escritas por quatro poetas (edição
267); e poemas que se tornaram canções populares (edição
299).
Neste boletim, retomamos a ideia. Como o
título indica, temos aqui cinco poemas inspirados em quatro passagens da Bíblia, todas
do Velho Testamento. Os autores são um português, Luís Vaz de Camões,
estrela-maior do idioma, e quatro brasileiros: Myriam Fraga, Emílio Moura, Jorge
de Lima e Francisco Carvalho, todos já boletinizados pelo poesia.net.
JACÓ, RAQUEL E LIA
No soneto “Sete
anos de pastor”,
Camões (c. 1524-1580) revisita a história contada no Gênesis, na qual o amor
perseverante de um homem enfrenta as artimanhas do sogro para explorar seu
trabalho. Labão, criador de ovelhas, tem duas filhas, Lia e Raquel. Jacó afeiçoou-se da mais nova e
propõe a Labão trabalhar sete anos para ele a fim de ter Raquel como esposa.
Labão aceita o trato. Contudo, na hora de cumpri-lo, à noite, em vez de Raquel
entrega ao pretendente a irmã mais velha.
Na claridade do dia, ao constatar que fora logrado, o
persistente pastor faz novo acordo: servir ao sogro mais sete anos, para afinal
ter a sua preferida. Observem o frescor do verso camoniano. É tudo linguagem
simples e direta. E que poder de síntese! Na exígua moldura de um soneto
clássico, ele conta toda a história, e ainda transmite os sentimentos do
enamorado Jacó.
Embora seja um texto com mais de quatro séculos,
pouquíssimas construções neste soneto traem sua idade. Para nós, brasileiros,
soa hoje meio estranha a anteposição do pronome “a” (ela) à partícula negativa
em “como se a não tivera merecida”. Também aí “tivera merecida” cria certo ruído
aos nossos ouvidos, que pedem algo como “tivesse merecido”.
Um detalhe: se você consultar a palavra “cautela” nos
dicionários Aurélio e Houaiss, vai encontrar apenas que ela é sinônima de cuidado, prevenção, prudência. Mas não é disso que fala
Camões. No soneto, “cautela”, em acepção antiga, quer dizer “astúcia
fraudulenta, engano, ardil” (Dicionário Caldas Aulete). À parte esses
detalhes, este é um soneto que qualquer grande poeta moderno de nosso idioma
teria o maior prazer em assinar.
A MULHER DE PUTIFAR
O episódio da mulher de Putifar é outra passagem
interessante também encontrada no primeiro livro da Bíblia. José, hebreu que fora
vendido pelos irmãos a egípcios, tornou-se um destacado administrador na corte
do faraó. A mulher de Putifar, capitão da guarda do rei, tentava seduzi-lo. Como
José a recusasse, ela decidiu vingar-se: fingiu que fora atacada por ele, o que
resultou na prisão do hebreu.
No texto “Estória antiga”, a poeta baiana
Myriam Fraga cita de passagem as provocações da esposa de Putifar, mas
desloca a atenção para os sofrimentos de José, escravizado, vendido pelos irmãos,
e sua prodigiosa capacidade de interpretar sonhos. Só para lembrar: segundo o
Gênesis, José decifrou um sonho do faraó, antecipando os conhecidos sete anos de
vacas gordas e sete anos de vacas magras do Egito.
CANÇÃO DE AMOR
E, quem diria, o Velho Testamento abriga um livro inteiro que é
um poema de amor, com direito a momentos de elevada sensualidade. São os
Cantares de Salomão, ou Cânticos, ou ainda Cântico dos Cânticos. O poeta mineiro
Emílio Moura (1902-1971) inspira-se nesse livro para escrever seu “Cântico
dos Cânticos”.
Trata-se de um elogio às belezas da mulher amada,
empregando — sempre em tom bíblico — palavras do próprio poeta e
trechos diretamente extraídos dos cantos salomônicos. Os versos “Os teus
cabelos são como um rebanho de cabras...” e “bela como Jerusalém, terrível como
um exército com bandeiras” vêm dos Cantares, capítulo 6, versículos 4 e 5.
Sempre
acreditei que escrever poemas de amor é uma das tarefas mais espinhosas. E mais
ainda quando se considera que, desde a Bíblia, já existiam textos do gênero tão
bons como os cânticos de Salomão...
A MULHER DE URIAS
Outra
figura feminina aparece no centro de mais dois poemas de matriz bíblica. Desta vez
é a mulher de Urias, episódio do livro de Samuel. Davi,
o rei, vê de sua janela uma mulher “mui formosa à vista”. É Betsabá, a
esposa de Urias, soldado que se encontra longe, em guerra. O rei manda trazer a
mulher e a seduz. Não contente, mais adiante ordena que enviem o soldado Urias à
frente de batalha mais renhida para que seja ferido e morto. Livre de Urias,
Davi toma Betsabá como uma de suas esposas. Um dos filhos dela será o célebre
Salomão, o autor dos Cantares, que sucederá a Davi no trono.
Os dois
últimos poemas de nossa seleção referem-se ambos à mulher de Urias. Em sua
“Canção de Davi na janela”, o alagoano
Jorge de Lima (1893-1953) põe em foco a fixação quase doentia do rei na
mulher que avistou de seu terraço a banhar-se no rio.
O poeta cearense
Francisco Carvalho (1927-2013) retoma o mesmo tema com uma abordagem
bastante diferente. Em "Pastoral" ele imagina um diálogo entre o rei Davi e a
mulher de Urias. Ela diz que seu coração é do marido, mas se rende aos
desígnios do soberano. Ou seja, de um lado amor; do outro, submissão. Também é
ela quem afirma que o amor do rei só viceja com o adubo da morte.
A
criação de Francisco Carvalho é singular porque foge da visão patriarcal e
androcêntrica — hoje se diria machista — da Bíblia. Ele dá voz
crítica à mulher, enquanto no livro de Samuel, em todo esse episódio, Betsabá
não pronuncia uma só palavra.
MAIS BÍBLIA
Não se pode esquecer que a Bíblia, como
referência bibliográfica central de toda a cultura judaico-cristã, já serviu
de inspiração para um sem-número de obras literárias. Sem parar para fazer uma pesquisa apurada, é fácil citar obras como Esaú e Jacó, de
Machado de Assis, romance centrado em dois irmãos rivais,
similares aos citados no livro do Gênesis. Olhai os Lírios do Campo,
romance de Érico Veríssimo, tem como título uma frase atribuída a Jesus Cristo e
é parte do chamado sermão da montanha (Mateus, 6:24-33 e Lucas, 12:20-32).
O romancista português José Saramago (1922-2010) escreveu dois romances
baseados na Bíblia. No primeiro, O Evangelho Segundo Jesus Cristo
(1991), Saramago reescreve os evangelhos conforme o ponto de vista de um Cristo
que não é Deus e, na condição de homem, revolta-se contra o sofrimento e a
morte. Em Portugal, a Igreja Católica moveu acirrada campanha contra o livro de
Saramago, que terminou por receber alguns vetos oficiais "por atentar contra a
moral cristã". Em protesto à inaceitável censura, o escritor abandonou seu país
e foi morar na ilha de Lanzarote, Espanha.
No outro romance, Caim (2009), Saramago usa de toda a sua irreverência
para reinterpretar os passos de Caim, personagem do Gênesis, conhecido por ter
assassinado o irmão Abel. Mais uma vez, a
crítica religiosa bateu pesado no livro. Mas a essa altura o autor já recebera o
Prêmio Nobel em 1995 e a grita por censura perdera o efeito.
Também vêm à
memória poemas que fazem referência a episódios bíblicos. Em “O Operário em
Construção”, de
Vinicius de Moraes, o patrão leva o operário ao alto de uma
construção e tenta corrompê-lo, prometendo-lhe mundos e fundos, desde que o
trabalhador passe a lhe dizer sim. "E o operário disse: Não!"
O poeta Vinicius traz para o contexto das
lutas sociais o que está no Novo Testamento, no livro de Lucas, cap. 4, vs. 5-8.
Depois de jejuar durante quarenta dias e quarenta noites, Cristo é tentado pelo
Diabo, que lhe oferece “todos os reinos do mundo”. Pede em troca “apenas” que Cristo se prostre e o adore. A proposta, obviamente, é recusada com o famoso
Vade retro Satana — “Afasta-te, Satanás”.
O mesmo episódio é
retomado no poema “A Máquina do Mundo”, exuberante épico de
Carlos Drummond de
Andrade. O prodigioso aparelho “se entreabre” no meio de uma estrada mineira e
oferece ao viandante solitário todas as suas riquezas — não materiais mas
de conhecimentos, “a total explicação da vida”. O homem tentado, sem dúvida um
alter ego de Drummond, afinal declina a oferta maravilhosa. Não há, aqui, uma
proposta direta de pacto mefistofélico, mas a matriz é a mesma.
Outro
momento — já citado no
boletim n. 270 — é a bem-humorada
crônica “Ai de ti, Copacabana”, de Rubem Braga, uma paródia às invectivas
contidas no livro de Jeremias contra as abominações e a luxúria de Jerusalém.
Se pararmos para lembrar e pesquisar, uma avalanche de outros títulos vai
aparecer. E observem que aqui estão citadas apenas obras que partem da Bíblia
como referência cultural, sem nenhum caráter religioso.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
BETSABÁ, BETHSABÉ
Depois de já ter pronto este boletim, descobri outro
poema sobre a mulher de Urias, o soneto "Bethsabé" (variação do nome Betsabá),
escrito pelo poeta e tradutor mineiro Ivo Barroso. Nos catorze versos de
Barroso, depois de fazer tudo para ter a mulher que desejava ("Por ti, o próprio
Deus eu afrontara!"), Davi simplesmente
a despreza: "Ó tu, que eras a forma da Mulher — / tenho-te agora e não te
quero mais!". O soneto está no livro A Caça Virtual e Outros Poemas
(Record, 2001).
•o•
LANÇAMENTO
Escoiceados
• Donizete Galvão
A
Musa Editora lança o livro Escoiceados, do poeta
Donizete
Galvão (1955-2014), desaparecido
no final de janeiro. Haverá também um
sarau em homenagem ao autor.
Data: 14/05, quarta-feira Hora: 19h00 às 21h30 Local: Casa das Rosas Espaço
Haroldo de Campos de Poesia Av. Paulista, 37 - Bela Vista
São Paulo - SP
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Cinco poemas inspirados na Bíblia
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Luís Vaz de Camões, Myriam Fraga, Emílio Moura,
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Jorge de Lima e Francisco Carvalho |
Louis Gauffier, francês, Jacó com as filhas
de Labão
1.
Luís Vaz de Camões
SETE ANOS DE PASTOR
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;
começa de servir outros sete anos,
dizendo: — Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.
Guido Reni, italiano, José com a mulher
de Putifar
2. Myriam Fraga
ESTÓRIA ANTIGA
A mulher de Putifar
Chegou-se de mansinho,
Beijou-me a descarada!
Com seu sujo carmim.
As ancas abauladas,
Dançando ao som de cítaras,
Tentou-me com seus laços,
Cercou-me com seus guizos,
Rolando no tapete
Enfurecida, aos gritos.
Enquanto isso, eu,
Pobre José do Egito,
Vendido como um porco,
Caçado como um bicho,
Chafurdando no pó
De tão grande suplício,
Buscava decifrar,
Nas areias do Nilo,
Os sonhos de faraó
E minhas próprias esfinges.
Salvador, setembro, 1998
He Qi, pintora contemporânea chinesa,
Cântico de Salomão
3.
Emílio Moura
CÂNTICOS DOS CÂNTICOS
Vieste do Cântico dos Cânticos:
“Os teus cabelos são como um rebanho de cabras...”
Ainda agora, não sei por quê,
sonho que surges diante de mim,
como quem desce do Líbano.
Esta paisagem de relva macia,
de montes ásperos,
de ovelhas,
este perfume de resina, este cheiro forte de anêmonas...
Sinto que vais descer,
bela e terrível,
“bela como Jerusalém,
terrível como um exército com bandeiras”.
Willem Drost, holandês, Betsabá com carta do
rei Davi (1654)
4. Jorge de Lima
CANÇÃO DE DAVI NA JANELA
A mulher de Urias estava tomando banho.
Eu vi a mulher de Urias.
Peitos mais belos eu nunca vi.
Quebrei a cítara, versos não faço,
eu vi a mulher de Urias,
peitos mais belos nunca hei de ver.
A mulher de Urias estava tomando banho
em frente ao meu palácio.
Quero a mulher de Urias,
nunca vi corpo mais belo.
Quebrei a cítara, salmos não faço,
trono não quero, guerras parai.
Só quero a mulher de Urias.
Peitos mais belos eu nunca vi.
Se olho as nuvens, se desço à terra
vejo os dois peitos.
A mulher de Urias estava tomando banho
no riozinho que passa
em frente de meu palácio:
eu via a mulher de Urias.
Não sou mais poeta,
troco meu trono
pelos dois peitos.
Se olho o mundo vejo os dois peitos.
Se olho o céu vejo os dois peitos.
Não sou mais rei, versos não faço.
Trono não quero.
Só quero a mulher de Urias.
Jan Massys, holandês, Davi e Betsabá
(1562)
5.
Francisco Carvalho
PASTORAL
Estava eu na sacada
do meu palácio de rei.
De repente te avistei.
Enquanto Urias guardava
teus rebanhos, grande rei
longas tristezas passei.
Foi esta a primeira vez
que me senti aturdido
pelo vinho da nudez.
Meu coração é de Urias
mas minha alma te pertence
grande rei, todos os dias.
Tão bela como um fanal
tu te banhavas nas águas
da minha fonte real.
Grande rei, os meus cabelos
são mais crespos e volúveis
que as barbas ruivas dos deuses.
Sabes que um rei pode tudo.
Tem mansidões de uma pomba
e coração de verdugo.
Meu coração é de Urias
mas me rendo a teus desígnios
pelo resto dos meus dias.
Amor de rei não se dobra.
Preciso matar Urias
como se mata uma cobra.
Amor de rei é tão forte
que só viceja e dá fruto
no adubo negro da morte?
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