Gonçalves Dias e Vicente de Carvalho
Caros,
No volume Cantos, de 1857, que reunia sua obra até então, o maranhense
Gonçalves Dias publicou o poema “Não me deixes”. De feição tipicamente
romântica, o texto apresenta uma flor aquática que em vão pede à corrente de um
regato que não a abandone: “Ai, não
me deixes, não!”. Como se quisesse parar o fluxo das águas, a flor
desesperada implora: “Comigo fica ou leva-me contigo / Dos mares à amplidão”. No
fim, murcha e desfalecida, a pobrezinha afunda no regato e ainda agradece: “Não
me deixaste, não!”.
Fixem bem os dois personagens: a fonte e a
flor.
Quarenta e cinco anos depois, no livro Rosa, Rosa de Amor
(1902), essas mesmas figuras reaparecem num poema do paulista Vicente de
Carvalho chamado “A Flor e a Fonte”. Se aquela outra flor treme de amores pela
corrente até morrer iludida, esta oferece firme resistência às águas que a
querem levar. Diz a primeira estrofe: “Deixa-me, fonte!” Dizia / A flor, tonta
de terror. / E a fonte, sonora e fria / Cantava, levando a flor”.
Competente, o poeta paulista sabe pinçar as palavras corretas para realçar
o medo da flor e a cruel indiferença da fonte. A palavra “fria”, que
é um atributo natural das fontes, é perfeita para indicar essa insensibilidade,
que aliás é reforçada pela cantiga. Cantar quando alguém implora clemência...
Enquanto a flor de Gonçalves Dias pede à fonte que fique ou a leve consigo
para o oceano, a de Carvalho insiste no contrário: “Fonte, fonte, não me leves,
/ Não me leves para o mar”.
Embora não exista uma epígrafe ou qualquer
indicação de que o segundo texto faz referência ao primeiro, acredito que não restam
dúvidas quanto a isso. Gonçalves Dias é o primeiro poeta brasileiro de ampla
reverberação. É
também um dos mais influentes e imitados de nossa literatura. Aqui no poesia.net
n. 174, já tivemos a oportunidade de mostrar como um só poema dele, a
“Canção do Exílio”, marcou e ainda marca toda a poesia (assim como a música popular) que
veio depois.
Não há dúvida de que Vicente de Carvalho lia Gonçalves
Dias. Os poemas da flor e da fonte não são um caso isolado. No livro Últimos
Cantos, de 1851, o autor maranhense inclui um poema chamado “Olhos
Verdes”, que começa assim: “São uns olhos verdes, verdes / Uns olhos de
verde-mar”. No mesmo volume em que se encontra “A flor e a fonte”, o poeta
paulista publica um poema com o mesmíssimo título, que também se inicia de forma
bem parecida: “Olhos
encantados, olhos cor do mar / Olhos pensativos que fazeis sonhar!”
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
GONÇALVES DIAS (1823-1864)
Nascido em Caxias (MA), Antonio Gonçalves Dias
estudou Direito em Coimbra. De volta ao Brasil, foi professor no Rio de
Janeiro e desenvolveu outras atividades intelectuais. Foi o poeta romântico
brasileiro mais influente e também o que melhor dominou os recursos formais.
Sofrendo de tuberculose, Gonçalves Dias partiu para a Europa em 1862, onde ficou
internado em estações de cura francesas. Dois anos depois, ainda doente, morreu
num naufrágio no litoral do Maranhão, na viagem de retorno ao Brasil.
VICENTE DE CARVALHO (1866-1924)
Advogado,
jornalista, político, fazendeiro e abolicionista, Vicente de Carvalho nasceu em
Santos (SP) e formou-se em direito em 1886. Estreou na
poesia em 1885 com o livro Ardentias, seguido por Relicário (1888) e
Rosa, Rosa de Amor (1902). Lançada em 1908, sua obra mais festejada foi
Poemas e Canções, que teve dezessete edições. Nos manuais de
literatura, Vicente de Carvalho é incluido entre os poetas parnasianos. Os
aspectos discutidos neste boletim mostram que, embora menos sentimental e mais
apurado na forma, ele mantém fortes traços do romantismo.
•o•
BRASILIANA USP
Pesquisei textos e datas para este
boletim no site
Brasiliana USP. Trata-se da versão digital da Biblioteca Brasileira Guita e
José Mindlin, que contém obras raras (em geral, primeiras edições) de estudos brasileiros, literatura a antropologia.
A
biblioteca física, com todo esse acervo, está instalada no campus da USP, uma
doação do casal Guita e José Mindlin, amantes do livro. Como dizia José Mindlin
(1914-2010): "O vírus do amor ao livro é incurável, e eu procuro inocular
esse vírus no maior número possível de pessoas." A propósito: se você quiser
conhecer mais sobre a figura extraordinária que foi José Mindlin, veja o
documentário Uma Vida Entre
Livros, produzido pela Mira Filmes.
Veja aqui um infográfico com animações que mostram detalhes do
prédio da Biblioteca:
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A flor e a fonte
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Gonçalves Dias e Vicente de Carvalho
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Gonçalves Dias, 1857
NÃO ME DEIXES!
Debruçada nas águas dum
regato A flor dizia em vão À corrente, onde bela se mirava: "Ai,
não me deixes, não!
"Comigo fica ou leva-me contigo Dos mares à
amplidão; Límpido ou turvo, te amarei constante; Mas não me deixes,
não!"
E a corrente passava; novas águas Após as outras vão; E a
flor sempre a dizer curva na fonte: "Ai, não me deixes, não!"
E
das águas que fogem incessantes À eterna sucessão Dizia sempre a flor,
e sempre embalde: "Ai, não me deixes, não!"
Por fim desfalecida e
a cor murchada, Quase a lamber o chão, Buscava inda a corrente por
dizer-lhe Que a não deixasse, não.
A corrente impiedosa a flor
enleia, Leva-a do seu torrão; A afundar-se dizia a pobrezinha: "Não
me deixaste, não!"
De Cantos (1857)
• Vicente de Carvalho,
1902
A FLOR E A
FONTE
"Deixa-me, fonte!" Dizia A flor, tonta de terror. E a
fonte, sonora e fria Cantava, levando a flor.
"Deixa-me, deixa-me,
fonte!" Dizia a flor a chorar: "Eu fui nascida no monte... "Não me
leves para o mar."
E a fonte, rápida e fria, Com um sussurro
zombador, Por sobre a areia corria, Corria levando a flor.
"Ai,
balanços do meu galho, "Balanços do berço meu; "Ai, claras gotas de
orvalho "Caídas do azul do céu!..."
Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror. E a fonte, sonora e fria, Rolava, levando a
flor.
"Adeus, sombra das ramadas, "Cantigas do rouxinol; "Ai,
festa das madrugadas, "Doçuras do pôr-do-sol;
"Carícias das brisas
leves "Que abrem rasgões de luar... "Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!"
*
As correntezas da vida E os
restos do meu amor Resvalam numa descida Como a da fonte e da flor....
De Rosa, Rosa de Amor (1902)
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