Número 310 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 28 de maio de 2014

«Como morre o homem, / como começa a? (...) / Quando dorme, morre? / Quando morre, morre?» (Drummond) *

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Gonçalves Dias - Vicente de Carvalho
Gonçalves Dias e Vicente de Carvalho


Caros,

No volume Cantos, de 1857, que reunia sua obra até então, o maranhense Gonçalves Dias publicou o poema “Não me deixes”. De feição tipicamente romântica, o texto apresenta uma flor aquática que em vão pede à corrente de um regato que não a abandone: “Ai, não me deixes, não!”.  Como se quisesse parar o fluxo das águas, a flor desesperada implora: “Comigo fica ou leva-me contigo / Dos mares à amplidão”. No fim, murcha e desfalecida, a pobrezinha afunda no regato e ainda agradece: “Não me deixaste, não!”.

Fixem bem os dois  personagens: a fonte e a flor.

Quarenta e cinco anos depois, no livro Rosa, Rosa de Amor (1902), essas mesmas figuras reaparecem num poema do paulista Vicente de Carvalho chamado “A Flor e a Fonte”. Se aquela outra flor treme de amores pela corrente até morrer iludida, esta oferece firme resistência às águas que a querem levar. Diz a primeira estrofe: “Deixa-me, fonte!” Dizia / A flor, tonta de terror. / E a fonte, sonora e fria / Cantava, levando a flor”.

Competente, o poeta paulista sabe pinçar as palavras corretas para realçar o medo da flor e a cruel indiferença da fonte. A palavra “fria”, que é um atributo natural das fontes, é perfeita para indicar essa insensibilidade, que aliás é reforçada pela cantiga. Cantar quando alguém implora clemência...

Enquanto a flor de Gonçalves Dias pede à fonte que fique ou a leve consigo para o oceano, a de Carvalho insiste no contrário: “Fonte, fonte, não me leves, / Não me leves para o mar”.

Embora não exista uma epígrafe ou qualquer indicação de que o segundo texto faz referência ao primeiro, acredito que não restam dúvidas quanto a isso. Gonçalves Dias é o primeiro poeta brasileiro de ampla reverberação. É também um dos mais influentes e imitados de nossa literatura. Aqui no poesia.net n. 174, já tivemos a oportunidade de mostrar como um só poema dele, a “Canção do Exílio”, marcou e ainda marca toda a poesia (assim como a música popular) que veio depois.

Não há dúvida de que Vicente de Carvalho lia Gonçalves Dias. Os poemas da flor e da fonte não são um caso isolado. No livro Últimos Cantos, de 1851, o autor maranhense inclui um poema chamado “Olhos Verdes”, que começa assim: “São uns olhos verdes, verdes / Uns olhos de verde-mar”. No mesmo volume em que se encontra “A flor e a fonte”, o poeta paulista publica um poema com o mesmíssimo título, que também se inicia de forma bem parecida: “Olhos encantados, olhos cor do mar / Olhos pensativos que fazeis sonhar!”



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado




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GONÇALVES DIAS (1823-1864)

Nascido em Caxias (MA), Antonio Gonçalves Dias estudou Direito em Coimbra. De volta ao Brasil, foi professor no Rio  de Janeiro e desenvolveu outras atividades intelectuais. Foi o poeta romântico brasileiro mais influente e também o que melhor dominou os recursos formais. Sofrendo de tuberculose, Gonçalves Dias partiu para a Europa em 1862, onde ficou internado em estações de cura francesas. Dois anos depois, ainda doente, morreu num naufrágio no litoral do Maranhão, na viagem de retorno ao Brasil.



VICENTE DE CARVALHO (1866-1924)

Advogado, jornalista, político, fazendeiro e abolicionista, Vicente de Carvalho nasceu em Santos (SP) e formou-se em direito em 1886. Estreou na poesia em 1885 com o livro Ardentias, seguido por Relicário (1888) e Rosa, Rosa de Amor (1902). Lançada em 1908, sua obra mais festejada foi Poemas e Canções, que teve dezessete edições. Nos manuais de literatura, Vicente de Carvalho é incluido entre os poetas parnasianos. Os aspectos discutidos neste boletim mostram que, embora menos sentimental e mais apurado na forma, ele mantém fortes traços do romantismo.

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BRASILIANA USP

Pesquisei textos e datas para este boletim no site Brasiliana USP. Trata-se da versão digital da Biblioteca Brasileira Guita e José Mindlin, que contém obras raras (em geral, primeiras edições) de estudos brasileiros, literatura a antropologia.

A biblioteca física, com todo esse acervo, está instalada no campus da USP, uma doação do casal Guita e José Mindlin, amantes do livro. Como dizia José Mindlin (1914-2010): "O vírus do amor
ao livro é incurável, e eu procuro inocular esse vírus no maior número possível de pessoas." A propósito: se você quiser conhecer mais sobre a figura extraordinária que foi José Mindlin, veja o documentário Uma Vida Entre Livros, produzido pela Mira Filmes.

Veja aqui um infográfico com animações que mostram detalhes do prédio da Biblioteca:


A flor e a fonte

Gonçalves Dias e Vicente de Carvalho

 


 

 

flor aquática 1




Gonçalves Dias, 1857



NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas dum regato
        A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
        "Ai, não me deixes, não!

"Comigo fica ou leva-me contigo
        Dos mares à amplidão;
Límpido ou turvo, te amarei constante;
        Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
        Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
        "Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
        À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
        "Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
        Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
        Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
        Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
        "Não me deixaste, não!"

          De Cantos (1857)

 



flor aquática 2




Vicente de Carvalho, 1902



A FLOR E A FONTE

"Deixa-me, fonte!" Dizia
A flor, tonta de terror.
E a fonte, sonora e fria
Cantava, levando a flor.

"Deixa-me, deixa-me, fonte!"
Dizia a flor a chorar:
"Eu fui nascida no monte...
"Não me leves para o mar."

E a fonte, rápida e fria,
Com um sussurro zombador,
Por sobre a areia corria,
Corria levando a flor.

"Ai, balanços do meu galho,
"Balanços do berço meu;
"Ai, claras gotas de orvalho
"Caídas do azul do céu!..."

Chorava a flor, e gemia,
Branca, branca de terror.
E a fonte, sonora e fria,
Rolava, levando a flor.

"Adeus, sombra das ramadas,
"Cantigas do rouxinol;
"Ai, festa das madrugadas,
"Doçuras do pôr-do-sol;

"Carícias das brisas leves
"Que abrem rasgões de luar...
"Fonte, fonte, não me leves,
"Não me leves para o mar!"

*

As correntezas da vida
E os restos do meu amor
Resvalam numa descida
Como a da fonte e da flor....

          De Rosa, Rosa de Amor (1902)


 

poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014

•  Antonio Gonçalves Dias
    "Não me deixes"
    in Cantos (1857)
•  Vicente de Carvalho
    "A flor e a fonte"
    in Rosa, Rosa de Amor (1902)
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* Carlos Drummond de Andrade, "Especulações em Torno da
  Palavra Homem", in A Vida Passada a Limpo (1959)