Sosígenes Costa
Caros,
O poeta baiano Sosígenes Costa (1901-1968) já apareceu aqui no
boletim n. 79, dez anos atrás. Retorna agora, trazido pela riqueza de cores
e sonoridades de seus “sonetos pavônicos”.
Nascido em Belmonte, cidade
litorânea do sul da Bahia, Sosígenes fez lá os primeiros estudos e mais
tarde tornou-se professor primário. Em 1926, o poeta se transfere para Ilhéus, a
capital do cacau, onde passou a maior parte de sua vida. Lá, trabalhou como
telegrafista dos Correios e secretário da Associação Comercial.
Discreto, avesso à autopromoção e à convivência nos meios literários, Sosígenes
nunca reuniu seus poemas em livro. Somente em 1959, já aposentado e morando no
Rio de Janeiro (cidade onde viria a morrer em 1968), cedeu à insistência de
amigos e consentiu na publicação de sua Obra Poética.
Essa mesma
obra ganharia uma segunda edição em 1978, revista e ampliada pelo poeta paulista
José Paulo Paes. Além de reunir a obra do poeta belmontino, Paes escreveu um
conhecido ensaio interpretativo chamado Pavão, Parlenda, Paraíso – Uma
Descrição da Poesia de Sosígenes Costa, em 1977. Tornou-se assim um dos
principais responsáveis pela divulgação da poesia de Sosígenes entre as gerações
mais recentes.
Por fim, o Conselho Estadual de Cultura da Bahia publicou
em 2001 uma edição comemorativa do centenário de nascimento do poeta, com o nome
de Poesia Completa. Nessa nova edição, além dos textos organizados por
José Paulo Paes, aparece o poema longo “Iararana”, uma peça ao estilo do
modernismo de 1922, que de alguma forma lembra Cobra Norato, de Raul
Bopp, e Macunaíma, de
Mário de Andrade.
•o•
Devo confessar
que roubei do poeta
Florisvaldo Mattos (1932-), outro baiano da região cacaueira, a ideia de
retornar à obra de Sosígenes Costa pelo atalho das cores e plumas dos sonetos
pavônicos. Não, não adianta procurar a palavra no dicionário: ela é criação
do próprio Sosígenes e refere-se obviamente ao pavão, essa luxuriante ave
ornamental. Há poucas semanas, Florisvaldo reuniu e enviou a amigos os quatro
primeiros sonetos ao lado. A eles juntei mais um, o “Pavão Azul”.
•o•
Nos sonetos pavônicos revelam-se traços fundamentais da obra de Sosígenes.
Neles se encontra, por exemplo, a extraordinária criatividade do poeta, sempre às
voltas com sons, cores e aromas ― característica que trai as influências
parnasiano-simbolistas presentes em seus versos.
A todo momento,
a poesia de Sosígenes Costa apela aos sentidos do leitor. As metáforas
constituem também um chamado à imaginação. Os pavões, por exemplo, são mutantes.
Mudam de cor e de situação e assumem as formas mais inusitadas. Um tem chifre
(“pavão pomposo e de chavelho” – “Pavão Vermelho”). Este pertence ao narrador,
que diz: “Pavões lilases possuí outrora”. Outras aves são coqueiros e pertencem
a um rei fictício (“O Primeiro Soneto Pavônico”). Outra mudança: os pavões
(quase escrevo “clarões”) ora são da alvorada, ora do ocaso.
Se o poeta
era pessoalmente arredio e reservado (consta que aceitou ser membro da academia
de letras de Ilhéus, mas quase nunca a frequentou), revela ao contrário a mesma
exuberância das plumas de pavão quando se trata de dar corda à imaginação.
Inventa animais: pavões azuis, vermelhos, verde-amarelos e até cor-de-rosa
(“os únicos do mundo” — “Tornou-me o pôr do sol um nobre...”). Inventa
reinos, castelos, nobrezas. E esbanja na floricultura: somente nestes cinco
sonetos, há cravos, narcisos, rosas, lírios, azaleias, azureias (palavra que não
encontrei nos dicionários que tenho nem na internet), lilases e açucenas.
No último soneto dos cinco aqui transcritos, o pavão azul não pertence ao
narrador: é o próprio narrador, que foi transformado em pavão por um bruxo.
Vivendo nos jardins do castelo desse mago, a ave morre de amores por “um grande
lírio de ouro e de açafrão”. E sabe que morrerá se um dia lhe tirarem a açucena
amada. Curioso o conhecimento de Sosígenes. Aqui, parece ter havido uma
transformação de lírio para açucena. Não: lírio e açucena são a mesma flor.
Outro aspecto importante: os textos saltam, sem a menor cerimônia, do plano
visual para o auditivo. Ou, quando não saltam, sugerem ao leitor que o faça. O
pavão vermelho é “uma festa de púrpura” e “a cor vermelha chega a ser sonora”.
Que som terá essa cor? Pode-se imaginar. Antes, no mesmo soneto, o texto diz que
o pavão vermelho — que, aliás, é a alegria — “vem pousar como um sol
em meu joelho / quando é estridente em meu quintal a aurora”. Mais uma vez, a
aurora, que é tipicamente cor, transmuta-se em som agudo e penetrante.
Por mais que esses textos não possam ser enquadrados, pura e simplesmente, na
fôrma parnasiana ou nos procedimentos simbolistas, não há dúvida de que esses
pavões mutantes, com suas cores e olores, têm raiz no simbolismo.
Também
é certo que algumas palavras ou expressões ficaram velhas na poesia de Sosígenes
Costa. No “Pavão Azul”, por exemplo, encontram-se coisas como “bruxos d’asas
d’ouro”, algo estranho a olhos e ouvidos atuais. Também é antiga a “flor
taful” (alegre, festiva), palavra que já representou um lugar-comum
preciosista, uma rima quase obrigatória para azul.
Uma última
observação. O título “Tornou-me o pôr do sol um nobre entre os rapazes”
aparentemente não tem muito a ver com o soneto, único dos cinco escrito em
versos alexandrinos. Mas, observando bem, título e poema ligam-se pelo pôr do
sol. E então, no segundo quarteto, ocorre mais uma transformação. O narrador,
graças ao poder de sugestão do crepúsculo, transmuta-se no dono de um castelo —
que, supõe-se, é o rapaz do título. Note-se que o título é também um verso
alexandrino e contém a última rima do soneto (oásis, trazes). É possível
imaginar que o poeta pretendia usar o verso-título no corpo do soneto (mais
especificamente, no fim), porém a evolução do texto tomou outro rumo. Ele então
decidiu manter como título o alexandrino descartado. Grande Sosígenes.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
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Cinco sonetos pavônicos
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Sosígenes Costa
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O PRIMEIRO SONETO PAVÔNICO
Foge a tarde entre o bando de gazelas. A noite agora vem
do precipício. Sóis poentes, douradas aquarelas! Mirabolantes fogos de
artifício!
Maravilhado assisto das janelas. Os coqueiros, pavões
de um rei fictício, abrem as caudas verdes e amarelas, ante da tarde o
rútilo suplício.
Cai uma chuva de oiro sobre os cravos. O grifo
sai do mar com a lua cheia e as pombas choram pelos pombos bravos.
Um suspiro de amor do peito arranco. A luz desmaia. E o céu todo se
arreia Em vez de estrela de narciso branco.
(1923)
TORNOU-ME O PÔR DO SOL UM NOBRE ENTRE OS RAPAZES
Queima sândalo e
incenso o poente amarelo, perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo. A saudade no ocaso é uma
rosa de espinho.
Tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho. Encanto! E eis que já sou o
dono de um castelo de coral com portões de pedra cor de vinho.
Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo. Entre os ases da
flora, os meus lírios lilases. Meus pavões cor-de-rosa, os únicos do
mundo.
E assim sou castelão e a vida fez-se oásis pelo simples
poder, ó pôr do sol fecundo, pelo simples poder das sugestões que trazes.
(1924)
SONETO AO ANJO
Por tua causa o meu jardim fechou-se às
mulheres que vinham buscar lírios, quando o poente cor-de-rosa e doce
punha pavões nos capitéis assírios.
Teu beijo como um pássaro me
trouxe o mais azul de todos os delírios. Por tua causa o meu jardim
fechou-se às mulheres que vinham buscar lírios.
Só tu agora colhes
azaleia e os cintilantes cachos da azureia, mágica flor que em meu
jardim nasceu.
Só tu verás os lírios cor da aurora. Meu pavão
dormirá contigo agora e o meu jardim dourado agora é teu.
(1930)
PAVÃO VERMELHO
Ora, a
alegria, este pavão vermelho, está morando em meu quintal agora. Vem
pousar como um sol em meu joelho quando é estridente em meu quintal a
aurora.
Clarim de lacre, este pavão vermelho sobrepuja os pavões
que estão lá fora. É uma festa de púrpura. E o assemelho a uma chama
do lábaro da aurora.
É o próprio doge a se mirar no espelho. E a
cor vermelha chega a ser sonora neste pavão pomposo e de chavelho.
Pavões lilases possuí outrora. Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.
(1937-1959)
PAVÃO AZUL
No jardim do castelo desse bruxo d'asas d'ouro e olhos verdes de
dragão, tú és à beira de um lilás repuxo um grande lírio de ouro e de
açafrão.
Transformado em pavão por esse bruxo, vivo te amando em
tardes de verão, dentre as rosas e os pássaros de luxo do jardim desse
bruxo castelão.
Tenho medo que um dia o jardineiro... Mas nunca,
estou bem certo, do canteiro há de colher-te, ó minha flor taful.
Porque ele sabe que em manhã serena, não suportando a ausência da
açucena, há de morrer esse pavão azul.
(s/ data)
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