Número 319 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 01 de outubro de 2014

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«Nada parece mais com o fim de tudo / Que um gato morto.» (Vinicius de Moraes) *

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Alexandre Bonafim
Alexandre Bonafim

 

Caros,

Esta é a segunda vez que o poeta Alexandre Bonafim (Belo Horizonte, 1976) comparece às páginas deste boletim. A primeira foi na edição n. 188, cerca de oito anos atrás. Naquele momento, ele acabara de estrear em livro com o volume Biografia do Deserto. De lá para cá, o escritor já se lançou num bom punhado de novas empreitadas poéticas. Sua publicação mais recente é O Secreto Nome do Sol (2013).

Nesta revisitação ao trabalho de Alexandre Bonafim, organizei uma microantologia com poemas de três de seus livros: A Outra Margem do Tempo (2008); Sobre a Nudez dos Sonhos (2011); e o já citado O Secreto Nome do Sol.

O trabalho de Bonafim parece, até agora, trilhar essencialmente o mesmo rumo delineado desde sua primeira coletânea. É uma poesia que, como destaquei há oito anos, contempla com perplexidade o teatro do mundo. E a peça que ela vê e nos apresenta está marcada pela carência de diálogo e pela impossibilidade de encontro.

Agora, com o passar do tempo — e diante de uma obra muito mais densa —, é possível destacar outras características na poesia de Alexandre Bonafim. Uma delas é seu óbvio parentesco com certo veio da lírica portuguesa, aquele praticado por mestres como António Ramos Rosa e Eugénio de Andrade.

Não que o texto do poeta mineiro seja simples caudatário do que produziram esses mestres lusitanos. Refiro-me à similaridade de atmosfera lírica, ao gosto pelas metáforas abstratizantes. No caso de Bonafim, ressalta a personalização de itens como os mares, o silêncio, a palavra, o crepúsculo. Do mesmo modo, seres bastante concretos como o pássaro e o touro são quase sempre tomados como símbolos e tendem a se encontrar com estrelas, mistérios, segredos.

Desçamos a uma observação mais concreta. Não me lembro (e aqui lembrar é lembrar mesmo, não uma afirmação cabal de inexistência) de já ter lido algum poema de Bonafim em que apareça nomeado um lugar, ou uma personagem reconhecível. Ou seja, não se encontra uma referência concreta (real ou inventada, não importa) a algo ou alguém como os carvoeirinhos de Manuel Bandeira, o leiteiro de Drummond, o Severino ou a Sevilha de João Cabral.

Talvez até se possa dizer que Alexandre Bonafim especializou-se, com brilho, na criação de imagens com esse viés abstrato e com alguns traços de surrealismo. Eis um exemplo, que está na abertura do poema “Celebração das Marés”: “Do poema nada nos resta / a não ser essa viagem / rumo aos mares, / esse gosto de naufrágio / ao findar das paixões, / esse astrolábio partido”.

E sempre se reafirma a aflição de encontrar sentidos, descobrir o nome secreto do sol ou buscar alguma coisa imprecisa: “A vida é sempre agora, / atropelamento em esquinas vazias, / rosto a refletir o nada nos espelhos”.

•o•

O belo-horizontino Alexandre Bonafim morou no interior de São Paulo e hoje reside na capital goiana. É professor universitário na área de literatura. Além de poesia, escreve ensaios e publica regularmente críticas em jornais e revistas especializadas.
 


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

                    

•o•

 



 



 

O secreto nome do sol

Alexandre Bonafim

 


Djanira - Vendedores em um cais da Bahia
Djanira, Vendedores em um Cais da Bahia (1959)




CELEBRAÇÃO DAS MARÉS



III

Do poema nada nos resta
a não ser essa viagem
rumo aos mares,
esse gosto de naufrágio
ao findar das paixões,
esse astrolábio partido.

O poema,
peixe cego,
barco amputado,
nada nos ensina,
em nada modifica
a força das marés.

Rastro de espuma
na pele dos acasos,
o poema finca as âncoras
no sal, na eternidade,
onde nossas ausências
ardem o grito dos corais.

O poema é nudez precária,
procela sem ventos, sem nuvens.
Quando nele adormecemos,
acordamos com os ossos fraturados,
vergastados pelas maresias.

O poema é tão inútil
quanto o mar ao fim da tarde.

Por isso seu esplendor é límpido
como a beleza do silêncio.




Djanira - Estudo, sem data
Djanira, Estudo, sem data




XVII

Imprescindível era guardar
no cerne do corpo
o secreto nome do mar.

O coração tornou-se a chaga viva
de uma palavra que jamais cicatriza.



II

Basta fechar os olhos, para que o silêncio,
o mais distante, contorne tua face
constelando-a onde nunca estarás.
Para tanto, abraçaste o desassossego
de itinerários silenciados pelas estrelas.
Soubeste o nome de tua dor mais reclusa?
Só, ergueste os braços para o que nunca soubeste
e havia apenas um rastilho de madrugada
convidando-te para o banquete das palavras
as mais delicadas, as nunca ditas.



VII

À beira do meu corpo
está o touro.
A alegria é o coração
de um pássaro
recém-nascido.


De O Secreto Nome do Sol (2013)




Djanira - Festa do Divino em Paraty
Djanira, Festa do Divino em Paraty (1962)




[A VIDA É SEMPRE SÚBITA]

                     a Roseana Murray


A vida é sempre súbita,
como folha a cair na rua,
pássaro recém-nascido a despencar do ninho.

A vida é sempre susto,
choque elétrico a cortar a carne,
farpa a estilhaçar a pele.

Nada nos protege desse frio.
Nada nos ampara dessa nudez.

A vida é sempre agora,
atropelamento em esquinas vazias,
rosto a refletir o nada nos espelhos.


De Sobre a Nudez dos Sonhos (2011)




Djanira - Três Orixás (1966)
Djanira, Três Orixás (1966)




[HÁ DIAS EM QUE OS PÁSSAROS TARDAM A REGRESSAR]

                    These are the days when Birds come back —
                    A very few — a Bird or two —
                    To take a backward look.

                                       Emily Dickinson


                                                      a Geri Aparecida Biotto Bucioli




Há dias em que os pássaros tardam a regressar,
manhãs em que o inverno pousa, em nossa nudez,
as horas da esquecida infância. Nesses momentos,
o crepúsculo nunca se despede de nossos olhos,
as folhas não afagam o vento: somos, inteiros,
uma doce melancolia a gestar as primaveras. Há dias
em que os pássaros são a promessa de um milagre.


De A Outra Margem do Tempo (2008)




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014


Alexandre Bonafim
•  O Secreto Nome do Sol
   
Patuá, São Paulo, 2013
•  Sobre a Nudez dos Sonhos
   
Editora PUC-GO/Kelps, Goiânia, 2011
•  A Outra Margem do Tempo
   
Ribeirão Gráfica, Franca, 2008
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* Vinicius de Moraes, "Soneto do Gato Morto",
  in Poesia Completa & Prosa, Nova Aguilar, Rio, 1986
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- Todas as imagens: quadros da pintora paulista
   Djanira da Motta e Silva (1914-1979)