Iracema Macedo
Caras amigas, caros amigos,
Nesta edição, o poesia.net revisita
o trabalho da jovem poeta potiguar Iracema Macedo. A autora esteve aqui pela
primeira vez no
boletim n. 193, em dezembro de 2006. Retorna agora, oito anos e dois livros
depois.
O boletim de 2006 baseou-se apenas no primeiro livro-solo de
Iracema, Lance de Dardos (2000). Essa obra de estreia era uma coletânea
de poemas substancial e suficientemente forte para projetar o nome da poeta como
uma das boas promessas para o século que se iniciava.
Naquele momento,
seu segundo livro, Invenção de Eurídice (2004) já fora lançado, mas eu
ainda não o conhecia. Depois, veio Poemas Inéditos e Outros Escolhidos,
de 2010. Nessas duas coletâneas, a poeta cumpriu a promessa apresentada em seu
certeiro lance de dardos.
Um traço que se mantém na obra a autora —
tanto nos poemas recolhidos em livro como nos textos soltos publicados na
internet — é o de uma voz que insiste em visualizar o mundo a partir de
uma perspectiva feminina muito clara. No livro incial, são muitas as personagens
mulheres, com seus problemas, com seus dilemas, carregando os prazeres e os
pesares de cada dia.
As figuras femininas continuam a multiplicar-se
nos dois volumes seguintes. Invenção de Eurídice e Poemas Inéditos
trazem outra coleção dessas mulheres, que vão desde a mitológica esposa de Orfeu
no título até a real e trágica Lota de Macedo Soares (1910-1967), conhecida como
arquiteta-paisagista idealizadora do Parque do Flamengo, no Rio, e como
companheira da poeta americana Elizabeth Bishop.
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Iracema Macedo
nasceu em Natal-RN, em 1970. Formou-se em filosofia em 1991 na UFRN e concluiu o
mestrado na mesma área na UFPB, em 1995. Na Unicamp, defendeu o doutorado,
também em filosofia, em 2003. Durante alguns anos, viveu em Ouro Preto-MG e
trabalhou na UFMG. Atualmente, é professora no Instituto Federal Fluminense,
IFF-Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro. .
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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Invenção de Eurídice
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Iracema Macedo
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Clóvis Graciano, pintor e ilustrador paulista, Café (década de 70)
A TERRA E O FOGO
Terra úmida é o que sou E tua voz me fecunda Abre fendas em mim Por onde os
meninos vão nascer
Sou essa planície deitada Sob o vento forte
Esse vale que invades Sou domínio teu Tua carne Cera sob o teu
poder
Sou o que queres que eu seja Enxame, cardume, aves Noite,
noite, noite que a tua luz esmaga sem vencer
PRISÕES
Antes eu era
o incêndio Agora faço seguro contra fogo Contra
roubos
Eu mesma era furacão Eu mesma roubava Agora apaziguo
tudo e tranco
Antes eu era as perdas Agora sou vista pelo bairro,
precavida, Comprando cadeados sob medida
Clóvis Graciano, A Semeadura
RAÍZES
Para quem não
tem mais pátria talvez escrever seja a única morada
Theodor Adorno
E me perguntam onde estou E me perguntam onde moro
Tornaram-se enfim questões delicadas Estou morando em minhas palavras
Às vezes sede, às vezes navalha Às vezes também girassóis e asas
BURKA
Essa
estrangeira sem nome, sem rosto, sem riso
Disfarça, mas me olha, de dentro de seu abismo Ela viaja comigo: sombra
calada, monja Meio fantasma, meio ferida Sobrevivente de nada,
queimada, ardida Sob véus calcada, sob véus contida Me prendendo
também Em sua cripta
Clóvis Graciano, Pátio do Colégio (1962)
LOTA DE MACEDO SOARES
Lembro-me bem de minha roupa cor de vinho E pérola e do guarda-chuva
Que também tinha cor de sangue Aguardando tua chegada sob a chuva
Meu peito sem rédea era socado por pedras À simples pronúncia do teu nome
Um jardim morto Era o que havia então Onde fui bela e forte e tu eras
amada
Lembro-me bem do meu pranto de meretriz Dos escândalos que
fiz e do consolo infeliz Que tu me davas com aquela maldita frase De
Oscar Wilde: "Os corações existem para ser despedaçados"
De
Poemas Inéditos e Outros Escolhidos (2010)
Clóvis Graciano, Sem Título (1966)
SANTA CLARA
Amanheci
de um modo novo hoje as luzes de sempre não me prendem
mais com suas âncoras queimei as lanças e fui deixando para trás a
casa, o pátio, a aldeia docemente ensolarada
Rasguei as certezas
enterrei os vestidos e agora tenho por riqueza o vento
que
sustenta os pássaros
Clóvis Graciano, Homem com Pássaro (1968)
ANÚNCIO DE ANTIQUÁRIO
Aceito toda forma de dor
Guardo os cacos, os fracassos Coleciono toda espécie
de trapo baús, lustres, quadros bibelôs despedaçados
Até navios
desaparecidos guardo
Aceito cores de todos os retalhos todas as
roupas vividas chapéus de gente antiga relógios, violas, rádios
E os desejos perdidos debaixo dos guarda-chuvas risos que ficaram
presos dentro dos porta-retratos
Aceito o que foi pisado
mutilado, abandonado Aceito, como um oceano, toda forma de naufrágio
Clóvis Graciano, Os Retirantes
INVENÇÃO DE EURÍDICE
Havia os cabelos de Eurídice incendiando a praia E os homens com suas redes esperando
Orfandades arrastadas sobre a areia era assim que vinham os peixes era
assim que as palavras vinham, sem ar, com olhos vitrificados
Havia os cabelos de Eurídice soltos como velames cortando os ventos
semeando bichos que se alastravam
Eram quase mãos, os cabelos de
Eurídice, Tentando agarrar alguma coisa Buscando alcançar uma alegria,
um êxtase, Uma dor que fosse qualquer coisa quebrada, algum resto,
um destroço
algas e conchas dentro das ondas
Clóvis Graciano, Estudo para Painel (s/ data)
O POEMA DE LAURA
Essa moça que amei na tarde fria não a amo mais
Aos poucos estou esquecendo seu rosto, suas formas, seu modo
obsceno de gritar meu nome em meio ao gozo
Estou esquecendo suas
mãos, seus gestos, Seu modo de fugir, sua alegria. A cada dia que
passa eu a esqueço mais como se ainda fosse amor o que sentisse
Estou esquecendo as águas onde a vi banhar-se esqueço as vestes
claras, a trança úmida, e os pequenos defeitos de seu corpo
Se me
perguntarem se era feia ou bonita, não sei, não lembro tampouco sei
dizer se ela era triste
Mas às vezes vinha pela tarde feito um
anjo sem abrigo e meu amor mordia suas asas
Assim, ferida, ela
ficava presa sob meus cuidados imune à ira dos deuses e do tempo
Mas me escapou um dia Ah, essa moça que amei na tarde fria...
De
Invenção de Eurídice (2004)
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