Número 321 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 29 de outubro de 2014

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«Nasceram-me gaivotas nos sentidos» (Affonso Manta) *

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Iracema Macedo
Iracema Macedo

 

Caras amigas, caros amigos,

Nesta edição, o poesia.net revisita o trabalho da jovem poeta potiguar Iracema Macedo. A autora esteve aqui pela primeira vez no boletim n. 193, em dezembro de 2006. Retorna agora, oito anos e dois livros depois.

O boletim de 2006 baseou-se apenas no primeiro livro-solo de Iracema, Lance de Dardos (2000). Essa obra de estreia era uma coletânea de poemas substancial e suficientemente forte para projetar o nome da poeta como uma das boas promessas para o século que se iniciava.

Naquele momento, seu segundo livro, Invenção de Eurídice (2004) já fora lançado, mas eu ainda não o conhecia. Depois, veio Poemas Inéditos e Outros Escolhidos, de 2010. Nessas duas coletâneas, a poeta cumpriu a promessa apresentada em seu certeiro lance de dardos.

Um traço que se mantém na obra a autora — tanto nos poemas recolhidos em livro como nos textos soltos publicados na internet — é o de uma voz que insiste em visualizar o mundo a partir de uma perspectiva feminina muito clara. No livro incial, são muitas as personagens mulheres, com seus problemas, com seus dilemas, carregando os prazeres e os pesares de cada dia.


As figuras femininas continuam a multiplicar-se nos dois volumes seguintes. Invenção de Eurídice e Poemas Inéditos trazem outra coleção dessas mulheres, que vão desde a mitológica esposa de Orfeu no título até a real e trágica Lota de Macedo Soares (1910-1967), conhecida como arquiteta-paisagista idealizadora do Parque do Flamengo, no Rio, e como companheira da poeta americana Elizabeth Bishop.

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Iracema Macedo nasceu em Natal-RN, em 1970. Formou-se em filosofia em 1991 na UFRN e concluiu o mestrado na mesma área na UFPB, em 1995. Na Unicamp, defendeu o doutorado, também em filosofia, em 2003. Durante alguns anos, viveu em Ouro Preto-MG e trabalhou na UFMG. Atualmente, é professora no Instituto Federal Fluminense, IFF-Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro.
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Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

                    

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Invenção de Eurídice

Iracema Macedo

 




Clóvis Graciano - Café
Clóvis Graciano, pintor e ilustrador paulista, Café (década de 70)



A TERRA E O FOGO

Terra úmida é o que sou
E tua voz me fecunda
Abre fendas em mim
Por onde os meninos vão nascer

Sou essa planície deitada
Sob o vento forte
Esse vale que invades
Sou domínio teu
Tua carne
Cera sob o teu poder

Sou o que queres que eu seja
Enxame, cardume, aves
Noite, noite, noite
que a tua luz esmaga sem vencer




PRISÕES

Antes eu era o incêndio
Agora faço seguro contra fogo
Contra roubos

Eu mesma era furacão
Eu mesma roubava
Agora apaziguo tudo e tranco

Antes eu era as perdas
Agora sou vista pelo bairro, precavida,
Comprando cadeados sob medida




Clóvis Graciano - Café
Clóvis Graciano, A Semeadura




RAÍZES

          Para quem não tem mais pátria
          talvez escrever seja a única morada

                Theodor Adorno

E me perguntam onde estou
E me perguntam onde moro
Tornaram-se enfim questões delicadas
Estou morando em minhas palavras
Às vezes sede, às vezes navalha
Às vezes também girassóis e asas



BURKA

Essa estrangeira sem nome, sem rosto, sem riso
Disfarça, mas me olha, de dentro de seu abismo
Ela viaja comigo: sombra calada, monja
Meio fantasma, meio ferida
Sobrevivente de nada, queimada, ardida
Sob véus calcada, sob véus contida
Me prendendo também
Em sua cripta




Clóvis Graciano - Pátio do Colégio (1962)
Clóvis Graciano, Pátio do Colégio (1962)




LOTA DE MACEDO SOARES

Lembro-me bem de minha roupa cor de vinho
E pérola e do guarda-chuva
Que também tinha cor de sangue
Aguardando tua chegada sob a chuva

Meu peito sem rédea era socado por pedras
À simples pronúncia do teu nome
Um jardim morto
Era o que havia então
Onde fui bela e forte e tu eras amada

Lembro-me bem do meu pranto de meretriz
Dos escândalos que fiz e do consolo infeliz
Que tu me davas com aquela maldita frase
De Oscar Wilde:
"Os corações existem para ser despedaçados"


De Poemas Inéditos e Outros Escolhidos (2010)



Clóvis Graciano - Sem Título(1966)
Clóvis Graciano, Sem Título (1966)




SANTA CLARA

Amanheci de um modo novo hoje
as luzes de sempre
não me prendem mais com suas âncoras
queimei as lanças
e fui deixando para trás
a casa, o pátio, a aldeia
docemente ensolarada

Rasguei as certezas
enterrei os vestidos
e agora tenho por riqueza o vento

que sustenta os pássaros



Clóvis Graciano - Homem com Pássaro
Clóvis Graciano, Homem com Pássaro (1968)




ANÚNCIO DE ANTIQUÁRIO

Aceito toda forma de dor
Guardo os cacos, os fracassos
Coleciono toda espécie de trapo
baús, lustres, quadros
bibelôs despedaçados

Até navios desaparecidos
guardo

Aceito cores de todos os retalhos
todas as roupas vividas
chapéus de gente antiga
relógios, violas, rádios

E os desejos perdidos
debaixo dos guarda-chuvas
risos que ficaram presos
dentro dos porta-retratos

Aceito o que foi pisado
mutilado, abandonado
Aceito, como um oceano,
toda forma de naufrágio




Clóvis Graciano - Os retirantes
Clóvis Graciano, Os Retirantes




INVENÇÃO DE EURÍDICE

Havia os cabelos de Eurídice incendiando a praia
E os homens com suas redes esperando

Orfandades arrastadas sobre a areia
era assim que vinham os peixes
era assim que as palavras vinham,
sem ar,
com olhos vitrificados

Havia os cabelos de Eurídice soltos
como velames
cortando os ventos
semeando bichos que se alastravam

Eram quase mãos, os cabelos de Eurídice,
Tentando agarrar alguma coisa
Buscando alcançar uma alegria, um êxtase,
Uma dor que fosse
qualquer coisa quebrada,
algum resto, um destroço

algas e conchas dentro das ondas




Clóvis Graciano - Estudo para Painel
Clóvis Graciano, Estudo para Painel (s/ data)




O POEMA DE LAURA

Essa moça que amei
na tarde fria
não a amo mais

Aos poucos
estou esquecendo seu rosto,
suas formas, seu modo obsceno
de gritar meu nome em meio ao gozo

Estou esquecendo suas mãos, seus gestos,
Seu modo de fugir, sua alegria.
A cada dia que passa
eu a esqueço mais
como se ainda fosse amor o que sentisse

Estou esquecendo as águas
onde a vi banhar-se
esqueço as vestes claras, a trança úmida,
e os pequenos defeitos de seu corpo

Se me perguntarem se era feia ou bonita,
não sei, não lembro
tampouco sei dizer se ela era triste

Mas às vezes vinha pela tarde
feito um anjo sem abrigo
e meu amor mordia suas asas

Assim, ferida, ela ficava
presa sob meus cuidados
imune à ira dos deuses e do tempo

Mas me escapou um dia
Ah, essa moça que amei na tarde fria...


De Invenção de Eurídice (2004)



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014


Iracema Macedo
•  Poemas Inéditos e Outros Escolhidos
   
Sebo Vermelho, Natal, 2010
•  Invenção de Eurídice
   
Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2004
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* Affonso Manta, "Retorno", in Antologia Poética (2013)
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- Todas as imagens: quadros de Clóvis Graciano (1907-1988), pintor,
  desenhista, cenógrafo, figurinista, gravador e ilustrador brasileiro