Número 323 - Ano 12

São Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2014

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«A paixão é como vinho / Passada a embriaguez / Resta um co(r)po vazio.» (Myriam Fraga) *

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Manoel de Barros
Manoel de Barros

 

Amigas e amigos,

Após longa dedicação ao encantamento de palavras e à administração do inútil, o poeta mato-grossense Manoel de Barros abriu as asas e voou para o território da imaginação.

Transformou-se, quem sabe, num tuiuiú ou, como ele escreveu certa vez, tu-you-you, um pássaro cheio de pronomes.

Lá se foi o poeta, aos 97 anos de meninice.

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Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá-MT em 1916 e faleceu em Campo Grande-MS, em 13 de novembro último. Estudou durante dez anos num internato e depois transferiu-se para o Rio de Janeiro a fim de continuar os estudos. Formou-se em direito em 1941.

Há uma história anedótica a respeito do primeiro livro de Manoel de Barros. A primeira surpresa: não era poesia. Aos 18 anos, no Rio, o poeta entrou para a Juventude Comunista, a ala jovem do Partido Comunista do Brasil (PCB). Nessa época, ele pichou numa estátua a frase "Viva o Comunismo".

A polícia política do governo Getúlio Vargas foi buscá-lo na pensão onde morava. A dona do lugar pediu que não prendessem o menino. Era um rapaz tão bom que até escrevera um livro chamado Nossa Senhora de Minha Escuridão. O policial que chefiava a operação aceitou o pedido. Mas Manoel de Barros nunca mais viu o livro, que foi confiscado. Era cópia única.

A estreia do poeta se daria apenas em 1937, com o lançamento de Poemas Concebidos sem Pecado, uma edição artesanal de apenas 20 exemplares, mais um, o do autor. O segundo livro, Face Imóvel, foi lançado em 1942.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, Manoel rompe com o PCB. O motivo: discordou quando o líder Luís Carlos Prestes apoiou a permanência de Getúlio no governo, mesmo após ter amargado dez anos de prisão política, período no qual Getúlio deportou sua esposa, a alemã Olga Benário Prestes, judia, entregando-a para a morte nas mãos dos nazistas.

Desapontado, Manoel foi correr mundo. Viveu na Bolívia e no Peru e também em Nova York, onde fez cursos de cinema e pintura. Nos anos 60, retorna ao Mato Grosso para dedicar-se à criação de gado.

Nesse momento, ocorre uma virada em sua poesia, que se volta cada vez mais para as coisas do chão, os animais, a vida simples, as crianças. Enfim, a poesia dedicada a contemplar “as grandezas do ínfimo” e que lhe valeu merecida fama e reconhecimento, a partir dos anos 80.

Duas características saltam à vista na poesia desse mato-grossense. Uma se define num verso: “Não gosto de palavra acostumada”. Ou ainda: “O sentido normal das palavras não faz bem ao poema”. E também: “Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem”. Com esses princípios em mente, o poeta subverte a sintaxe, reinventa palavras e cria o ambiente para a eclosão da centelha poética.

A outra característica está ligada às coisas pequenas, as “insignificâncias” cantadas pelo poeta. Essa poesia do miúdo lhe permite conquistar a simpatia do leitor, que reconhece nos versos de Manoel de Barros o esforço de recuperar a liberdade no ato de ver as coisas do mundo, que perdemos à medida que nos afastamos da infância.

Não é por acaso que entre os poemas mais citados de sua autoria estão alguns incluídos em quatro livros dedicados a leitores infantis, como O Fazedor de Amanhecer, título que tomei por empréstimo para este boletim.

No poema “Língua Mãe”, por exemplo, ele discute nossa identificação ideológica com a língua dentro da qual passamos a infância. Escrevi dentro porque a língua é um ambiente cultural, social, onde apreendemos o mundo, a convivência, os sentimentos. É por isso que o poeta declara: “Não sinto o mesmo gosto nas palavras: oiseau e pássaro”. Pessoalmente, concordo. Até acho que oiseau não voa...

O propósito confesso de Manoel de Barros é “renovar o homem usando borboletas”.

Portanto, chega de conversa. Vejam os textos aí ao lado e borboleteiem-se.

•o•


Não é a primeira vez que Manoel de Barros comparece a esta página. Ele já esteve aqui na edição n. 61, que circulou em março de 2004. Esta, infelizmente, é uma edição que assinala sua passagem para o estágio de pássaro. Viva Manoel de Barros.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

                    

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SÓ DEZ POR CENTO É MENTIRA

Para saber mais sobre a vida e a obra de Manoel de Barros, assista no YouTube ao documentário Só Dez por Cento é Mentira (2008), dirigido por Pedro Cezar.

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LANÇAMENTO

Eu Fui Soldado de Fidel — Autobiografia de Fidelina González
• Renata Pallottini


A poeta, romancista e dramaturga Renata Pallottini lança nesta quinta-feira o livro Eu Fui Soldado de Fidel – Autobiografia de Fidelina González, publicado pela Editora Hucitec.

Data: 27/11, quinta-feira
Hora: 19h00
Local: Academia Paulista de Letras
Largo do Arouche, 324
São Paulo – SP
Tel: (11) 3892-7772
 



 

O fazedor de amanhecer

Manoel de Barros
 

 



Volpi - Fachada
Alfredo Volpi, Fachada



[A MAIOR RIQUEZA]

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou — eu não aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que
compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva etc. etc.
Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

      [De Retrato do Artista Quando Coisa, 1998]


 

[O SENTIDO NORMAL DAS PALAVRAS]

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa liberdade com a luxúria convém.

      [De O Guardador de Águas, 1989]



Volpi - Itanhaém
Volpi, Itanhaém



[A COR DO AMARANTO]

Não sei bem de que cor é a cor do amaranto.
Mas pelo amar e pelo canto fica bem esse
amaranto aí (melhor do que se eu usasse
perpétua, que é o outro nome que se põe a essa flor).
Amaranto murmura melhor.


      [De Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave, 1991]




[AS COISAS QUE NÃO TÊM DIMENSÕES]

(trecho)

As coisas que não têm dimensões são muito importantes.
Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus
pronomes do que por seu tamanho de crescer.

É no ínfimo que eu vejo a exuberância.


      [De Livro Sobre Nada, 1996]




Volpi - Festa de São João
Volpi, Festa de São João




EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA

No aeroporto o menino perguntou:
— E se o avião tropicar num passarinho?
O pai ficou torto e não respondeu.
O menino perguntou de novo:
— E se o avião tropicar num passarinho triste?
A mãe teve ternuras e pensou:
Será que os abusos não são as maiores virtudes
da poesia?
Será que os despropósitos não são mais carregados
de poesia do que o bom senso?
Ao sair do sufoco o pai refletiu:
Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende
com as crianças.
E ficou sendo.

      [De Exercícios de Ser Criança, 1999]


 

Volpi - Grande Fachada Festiva
Volpi, Grande Fachada Festiva



A LÍNGUA MÃE

Não sinto o mesmo gosto nas palavras:
oiseau e pássaro.
Embora elas tenham o mesmo sentido.
Será pelo gosto que vem de mãe? de língua mãe?
Seria porque eu não tenha amor pela língua
de Flaubert?

Mas eu tenho.
(Faço este registro porque tenho a estupefação
de não sentir com a mesma riqueza as
palavras oiseau e pássaro)
Penso que seja porque a palavra pássaro em
mim repercute a infância
E oiseau não repercute.
Penso que a palavra pássaro carrega até hoje
nela o menino que ia de tarde pra
debaixo das árvores a ouvir os pássaros.
Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux
Só tinha pássaros.
E o que me ocorre sobre língua mãe.

      [De O Fazedor de Amanhecer, 2001]
 

 

Volpi - Casario - 1952
Volpi, Casario (1952)


 

POEMA

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.

      [De Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, 2001]




FRASES

Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem.

      [Do Livro de Pré-Coisas, 1985]


Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.

*
Poesia é voar fora da asa.

      [De O Livro das Ignorãças, 1993]
 


Não gosto de palavra acostumada.

*
Do lugar onde estou já fui embora.

      [De Livro sobre Nada, 1996]


*
Noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.

      [De Ensaios Fotográficos, 2000]

 

Escrever o que não acontece é tarefa da poesia.

*
Pra meu gosto a palavra não precisa significar — é só entoar.

*
No gorjeio dos pássaros tem um perfume de sol?

*
Eu queria pegar na semente da palavra.


      [De Menino do Mato, 2010]



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014


Manoel de Barros
Poemas extraídos de:
•  Poesia Completa
   
Leya, 6a. reimpr., São Paulo, 2010

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* Myriam Fraga, "Ressaca", in Femina (1996)

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- Todas as imagens: pinturas do ítalo-brasileiro Alfredo Volpi (1896-1988)