Número 326 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

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«Silenciosamente / sem um cacarejo / a noite põe o ovo da lua.» (Mario Quintana) *

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Lêdo Ivo
Lêdo Ivo

 

Amigas e amigos,


Nascido em Maceió (AL) em 1924, o poeta Lêdo Ivo foi jornalista, ficcionista, tradutor e ensaísta. Fez os cursos primário e secundário em sua cidade natal e transferiu-se para o Recife em 1940 e, dois anos depois, para o Rio de Janeiro.


Na capital federal, Lêdo Ivo concluiu o curso de direito e passou a trabalhar como jornalista profissional. Sua estreia na poesia se dá em 1944 com a coletânea As Imaginações, seguida de Ode e Elegia, no ano seguinte. Escritor prolífico, ele publicaria muitos outros volumes nos anos seguintes, entre romances, contos, crônicas e ensaios.


Lêdo Ivo faleceu em Sevilha, Espanha, em 2012, aos 88 anos. Deixou um acervo que, somente na área de poesia, chega a quase três dezenas de títulos, sem contar as antologias. O essencial de seu trabalho está reunido em Poesia Completa (1940-2004), volume com mais de 1100 páginas.

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Em sua longa aventura poética, o poeta alagoano passou por diferentes fases. Nos dois livros de estreia, a poesia de Lêdo Ivo é marcada por extensas odes e elegias — poemões de métrica fixa ou caudalosas composições em versos livres que ocupam até oito páginas.


Não é à toa que, no prefácio da Poesia Completa, o também poeta Ivan Junqueira chega a chamá-lo de “autor opulento e às vezes desmedido”. Muitos veem nesse Lêdo Ivo da fase inicial uma postura similar à do estreante Vinicius de Moraes nos anos 30, ambos talvez muito influenciados pelo Rilke das Elegias.


Em todo o trajeto, é verdade, o poeta alagoano também desenvolve poemas mais curtos, sem jamais descurar, por exemplo, dos sonetos e baladas. Com o passar do tempo, ele vai, pouco a pouco, abandonando os poemas mais esparramados e abraça como norma uma dicção mais concisa.

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Não é a primeira vez que Lêdo Ivo comparece a este boletim. Ele já esteve aqui na edição n. 139, em outubro de 2005.

Para a microantologia ao lado selecionei sete poemas dele. O primeiro é “Soneto Puro”, um texto que vem de Cântico, coletânea de escritos entre 1947 e 1949. Aí o poeta, ainda na casa dos vinte anos, exibe mão segura na condução desses catorze versos. “Fique o amor onde está; seu movimento / nas equações marítimas se inspire / para que, feito o mar, não se retire / das verdes áreas de seu vão lamento”. Detalhe que constatei agora: este soneto já foi incluído no primeiro boletim. Mas vale a repetição.


Agora, damos um salto bem longo. Os dois poemas seguintes vêm do livro Curral de Peixe, produzido no início dos anos 90. Nesses poemas o poeta exercita sua aparente facilidade de partir de um ponto e, de ideia em ideia, de palavra em palavra, ir construindo sua teia. É o que se vê em “Duração”. À leveza dos versos opõem-se as afirmações sombrias: “toda vida é treva”, “todo fruto é amargo”, e “toda eternidade / não dura um minuto”.


Em “Na Estação Leopoldina”, as contradições criam momentos estonteantes. “Quem quer não quer, quem sonha nada sonha / exceto o próprio sonho que se esgarça / na fronha amarfanhada, na enfadonha / cadeira em que se senta a vida esparsa”. Em todo o texto, o não e o sim — que são “dois trilhos paralelos” — vão e vêm, debatem-se e afinal não saem do lugar. Um belo soneto.


Chegamos ao poema número quatro. Trata-se de “O Dia dos Homens”, um brevísssimo epigrama proveniente da coletânea O Rumor da Noite, produzida na segunda metade dos anos 90. Mais uma vez, o poeta trabalha com um contraponto entre a leveza da expressão e a gravidade do tema. “Não existe Inferno / nem Paraíso. // Apenas o chão”. Aí está a pesada chave. Para aliviar a sobrecarga, uma chuva de verão.


Os dois próximos textos também vêm de O Rumor da Noite. Ambos certamente foram inspirados em viagem à Itália. Em “O Pedido”, o poeta imagina receber a mensagem de um anjo nos degraus da igreja de Santa Maria degli Angeli, provavelmente em Assis (há outras igrejas da mesma santa em várias outras cidades italianas).


Segue-se o poema “Triunfo”, uma composição em 15 versos de seis sílabas. Aqui, o poeta põe em prática um procedimento que parece ser uma de suas formas de compor. Diante de um arco do triunfo em Roma, ele faz a pergunta: “Mas que triunfo, se tudo / é derrota e naufrágio?” E conclui, melancolicamente, que na cidade coalhada de turistas tudo quanto resta da grandeza imperial de Roma “é uma folha amarela / alçada pelo vento”.


Agora, o último poema, “Água Fria”. Este encontra-se em Plenilúnio, o último livro elencado na Poesia Completa. Mais uma vez, o poeta cruza a experiência cotidiana com as contradições da vida. “A água que bebi / na fria Fontana / queimou os meus lábios”. E segue, leve e amargo, equilibrando água e fogo, vida, amor e morte.


Abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

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Quem sonha nada sonha

Lêdo Ivo
 

 



Adilso Santos - Menina com Flauta, 2004
Adilson Santos (1944), pintor baiano, Menina com flauta (2004)




SONETO PURO

Fique o amor onde está; seu movimento
nas equações marítimas se inspire
para que, feito o mar, não se retire
das verdes áreas de seu vão lamento.

Seja o amor como a vaga ao vago intento
de ser colhida em mãos; nela se mire
e, fiel ao seu fulcro, não admire
as enganosas rotações do vento.

Como o centro de tudo, não se afaste
da razão de si mesmo, e se contente
em luzir para o lume que o ensolara.

Seja o amor como o tempo — não se gaste
e, se gasto, renasça, noite clara
que acolhe a treva, e é clara novamente.


          De Cântico (1947-1949)



Adilson Santos - Menina equilibrando ovo
Adilson Santos, Menina equilibrando ovo




DURAÇÃO

Toda vida é breve
por mais que ela dure
entre a areia e o vento.

Todo amor é leve
mais leve que a neve
que cai sobre a relva.

Toda vida é treva
por mais que a ilumine
a luz de cem velas.

Todo fruto é amargo:
morde-o a morte com
seu único dente.

Toda eternidade
não dura um minuto
na manhã serena.

          De Curral de Peixe (1991-1995)



Adilson Santos - Menina lendo uma carta, 2005
Adilson Santos, Menina lendo uma carta (2005)





NA ESTAÇÃO LEOPOLDINA

Eu dizia entre mim, enquanto o trem
manobrava no pátio da estação:
Não e sim são dois trilhos paralelos.
Toda regra é irmã da transgressão.

Quem quer não quer, quem sonha nada sonha
exceto o próprio sonho que se esgarça
na fronha amarfanhada, na enfadonha
cadeira em que se senta a vida esparsa.

Partir ou não partir, eis a questão.
O trem apita, e a hélice de um barco
me chama em vão em plena escuridão.

E na sala de espera da estação
eu não fico nem parto: permaneço
entre a regra que sou e a transgressão.


          De Curral de Peixe (1991-1995)




Adilson Santos - Natureza morta com cajus e bule azul
Adilson Santos, Natuureza morta com cajus e bule azul




O DIA DOS HOMENS

Viver é preciso.
Não existe Inferno
nem Paraíso.

Apenas o chão.
E uma persistente
chuva de verão.

          De O Rumor da Noite (1996-2000)



Adllson Santos - jogo de cartas
Adilson Santos, jogo de cartas




O PEDIDO

"Quem não anda com as próprias pernas
jamais alcançará a vida eterna",
foi o que o anjo me disse ao me ver sentado
num dos degraus da igreja de Santa Maria degli Angeli.
Então me levantei e comecei a caminhar.
Avancei na nave escurecida e pedi a Deus
(era o Deus dos turistas) água e fogo.

De O Rumor da Noite (1996-2000)




Adilson Santos - Menina com violino
Adilson Santos, Menina com violino (2012)




TRIUNFO

Um Arco do Triunfo.
Mas que triunfo, se tudo
é derrota e naufrágio?
Os passados perdidos
escorrem pela boca
dos leões ultrajados
e fossas de granito.
Rodeados de pombos
os turistas arrulham
os idiomas da morte.
E uma folha amarela
alçada pelo vento
no ar lavado de outono
é tudo quanto resta
da grandeza de Roma.

          De O Rumor da Noite (1996-2000)



Adilson Santos
Adilson Santos, penteado




ÁGUA FRIA

A água que bebi
na fria fontana
queimou os meus lábios.

A água, de tão fria,
como fogo ardia
até na minha alma.

Assim é o amor,
fogo que se bebe
na fontana fria.

Assim é a morte.
A água fria apaga
o fogo que ardia.

          De Plenilúnio (2001-2004)



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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015


Lêdo Ivo
   In Poesia Completa (1940-2004)
   Topbooks, Rio de Janeiro, 2004
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* Mario Quintana, "Haikai", in A Cor do Invisível (1989)
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- Todas as imagens: pinturas do baiano Adilson Santos (1944)