«Poesia é sempre assim: /
Uma alquimia de fetos, / Um lento porejar / De venenos sob a pele.» (Myriam
Fraga) *
Carlos Pena Filho
Amigas e amigos,
O pernambucano Carlos Souto Pena Filho
(1929-1960) foi um desses raros fenômenos de poetas que já nascem prontos. Em
sua curta vida ― 31 anos ―, conseguiu escrever um punhado de poemas, notadamente
sonetos, que sem dúvida estão entre os mais belos e instigantes da moderna
poesia brasileira.
Carlos Pena Filho nasceu no Recife. Descendente
de portugueses, fez o curso primário em Portugal e o secundário no Recife, onde
se formou em direito, profissão que exerceu ao lado do jornalismo. Começou a
escrever bem cedo e publicou seu primeiro trabalho ― um soneto intitulado
“Marinha” ― no jornal Diário de Pernambuco, em 1947.
A
primeira coletânea de Pena Filho, O Tempo da Busca, saiu em 1952. Em
seguida, publicou Memórias do Boi Serapião (1956), A Vertigem Lúcida
(1958) e Livro Geral (1959). Lamentavelmente, a vida do poeta, celebrado
por gente como Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, Gilberto Freyre e
Jorge Amado, foi interrompida numa tragédia. Em 2 de julho de 1960, no Recife,
um ônibus desgovernado abalroou o carro em que ele estava. Carlos Pena Filho
deixou esposa e filha pequena.
Após a morte do poeta, o volume
Livro Geral, que reúne todo o seu trabalho, foi relançado e ampliado.
Infelizmente, essa obra não está mais disponível. Consegui recentemente adquirir
num sebo um exemplar publicado pela Editora Raiz ― por sinal, sem data nem local
(suponho seja Recife). A obra do poeta reclama novas edições, com comentários e
estudos. E maior divulgação.
•o•
Carlos Pena Filho já esteve aqui
no poesia.net em 2003, na
edição n. 4, uma das primeiríssimas do boletim. Ele volta agora, com nova
seleção de poemas.
Dono de um lirismo criativo e envolvente, Carlos Pena
Filho destaca-se pelo clima pictórico de seus textos. Apaixonado pelas cores,
ele esbanja imagens nas quais se destacam a luz, os verdes e os azuis. Num
poema, seu conterrâneo João Cabral de Melo Neto diz que ele sabia “todos os
verdes que há no verde”. Manuel Bandeira o classificava como “poeta encantador”
e destinava suas criações à eternidade.
Acredito que os textos reunidos
na pequena antologia ao lado justificam plenamente o entusiasmo de Cabral e
Bandeira. O soneto “A Solidão e Sua Porta” trabalha com um velho tema. Contudo,
as imagens criativas e a fluidez dos versos dão um sabor especial ao texto. E o
lembrete final é brilhante: “ainda tens uma saída: / entrar no acaso e amar o
transitório”.
O texto seguinte, “Soneto”, é dirigido a uma mulher – “bela
e azul”. Aqui, mais uma vez, brilha a inventividade do poeta. Trata-se de um
soneto de sensações vagas, mas claro, arejado, colorido. Alguém poderia
perguntar: o que diz esse texto? Nada. Mas ninguém precisa de demonstração para
perceber que a poesia está ali, viva e pulsante.
O mesmo estilo vago e
delicioso se encontra em “Segundo Poema no Vazio”. São dezoito linhas de sete
sílabas, com as linhas pares marcadas pela mesma rima. Uma alegria cantante,
produzida por um mestre do ritmo e da harmonia. Observe-se que todo o texto se
desenvolve num único período, pontuado apenas por vírgulas.
Nesse
aspecto, vale notar que o soneto “A Solidão e Sua Porta”, já citado, também
contém apenas dois períodos. O primeiro corresponde ao primeiro quarteto. E o
outro ocupa o segundo quarteto e os dois tercetos. Textos assim, em mãos menos
habilidosas, tendem a se transformar em construções irrespiráveis, difíceis de
ler e entender. Não é o que ocorre com os versos de Carlos Pena Filho.
Vem a seguir o poema “Para Fazer um Soneto”, que é uma espécie de receita para a
criação dessa composição de catorze versos. No entanto, se nas receitas
culinárias os autores se esmeram em apresentar pesos, medidas e procedimentos
com exatidão, aqui mais uma vez é tudo vago. É a fluência do verso que vai
misturando os ingredientes. No final, a surpresa: não há receita nenhuma, porque
no último verso o chefe de cozinha poético manda o interessado começar.
Isso lembra uma tirada de Pablo Neruda: “Escrever é fácil. Você começa com
maiúscula e termina com ponto final. No meio, coloca ideias”. “Para Fazer um
Soneto” é um desses textos antológicos que, como dizia Bandeira, inscrevem na
pedra o nome de Pena Filho.
E aí vem mais um soneto. Desta vez, uma
homenagem ao francês Charles Baudelaire, vazada em versos de quatro sílabas. O
texto se refere ao poema “O
Albatroz”, do homenageado, no qual os marinheiros zombam da falta de jeito
da enorme ave marinha, senhora do azul, mas de movimentos canhestros quando
mantida no convés de um navio. Mais uma vez, o poema contém uma única frase.
O último texto é “Soneto Oco”, que tem pontos em comum com “Para Fazer
um Soneto”. Todavia, como o título sugere, o autor se ocupa aqui em mostrar como
erguer um soneto partindo do nada. Criatividade à solta, ele vai dizendo como
seria esse objeto poético: sustentado em “lembranças antigas”, é como “madeira
apodrecida de coreto”.
O segundo quarteto começa com um excelente
achado: “De tempo e tempo e tempo alimentado”. Ouve-se nessa repetição o
martelar das engrenagens de um relógio. Brincalhão, o poeta chega a sugerir que
este soneto poderia ser produto de geração espontânea: um filho de si mesmo, sem
intervenção do poeta. No final, como sempre, o texto se dirige ao leitor e
sugere que consulte as próprias lembranças e descubra a si próprio ao ler o
soneto – “este jogo de exilado”.
Em muitos aspectos, os escritos de
Carlos Pena Filho apresentam uma poesia que é só poesia. Não afirma verdades
essenciais, não diz o que se deve fazer ou deixar de fazer, não promete soluções
para as dores do mundo. Mas, com certeza, enche-nos o peito de luz, de cor, de
alegria.
Por favor, brasileiros em geral e pernambucanos em
particular: divulguemos Carlos Pena Filho.
Quando mais nada resistir que valha a
pena de viver e a dor de amar e quando nada mais interessar, (nem o
torpor do sono que se espalha).
Quando, pelo desuso da navalha a
barba livremente caminhar e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha
a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório, lembra-te que afinal te resta a vida
com tudo que é insolvente e provisório e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.
Aldemir Martins, Gato Multicor
SONETO
Por seres bela e azul é que te oferto a serena lembrança desta tarde: tudo
em torno de mim vestiu um ar de quem não te tem mas te deseja perto.
O verão que fugiu para o deserto onde, indolente e sem motivos, arde
deixou-nos este leve e vago e incerto silêncio que se espalha pela tarde.
Por seres bela e azul e improcedente é que sabes que a flor, o céu e
os dias são estados de espírito somente,
como o leste e o oeste, o
norte, e o sul. Como a razão por que não renuncias ao privilégio de
ser bela e azul.
Aldemir Martins, Gato Marrom e
Meia-Lua
SEGUNDO POEMA NO VAZIO
Este vento que chegou
talvez da costa irlandesa e entrando pela janela
debruçou-se em minha mesa, e fez agora esse gesto da entre alegria e
surpresa, é o mesmo que há muitos anos lavou teu rosto, Teresa, e
te deixou sob a pele essa invisível tristeza de quem descobre o que
existe de mágoa, atrás da beleza e por isso se aremessa, água solta
da represa, e embora deixando os olhos nos objetos da mesa perde o
pensamento e a sombra na fria costa irlandesa.
Aldemir Martins, Família de Gatos
PARA FAZER UM SONETO
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara, e
espere pelo instante ocasional. Nesse curto intervalo Deus prepara e
lhe oferta a palavra inicial.
Aí, adote uma atitude avara: se você
preferir a cor local, não use mais que o sol de sua cara e um pedaço
de fundo de quintal.
Se não, procure a cinza e essa vagueza das
lembranças da infância, e não se apresse, antes, deixe levá-lo a
correnteza.
Mas ao chegar ao ponto em que se tece dentro da
escuridão a vã certeza, ponha tudo de lado e então comece.
Aldemir Martins, Dois Gatos Azuis
A CHARLES BAUDELAIRE
Carlos também embora sem flores
nem aves vinho nem naves,
eu te remeto este soneto para
saberes, se acaso o leres,
que existe alguém no mundo, cem
anos após
que não vaiou e nem magoou teu albatroz.
Aldemir Martins, Gato Amarelo com Fundo Azul
SONETO OCO
Neste
papel levanta-se um soneto, de lembranças
antigas sustentado, pássaro de museu, bicho empalhado, madeira
apodrecida de coreto.
De tempo e tempo e tempo alimentado, sendo
em fraco metal, agora é preto. E talvez seja apenas um soneto de si
mesmo nascido e organizado.
Mas ninguém o verá? Ninguém. Nem eu,
pois não sei como foi arquitetado e nem me lembro quando apareceu.
Lembranças são lembranças, mesmo pobres, olha pois este jogo de
exilado e vê se entre as lembranças te descobres.
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O LETRISTA CARLOS PENA FILHO
Em gravação de 1962, a
cantora Maysa (1936-1977) interpreta "A Mesma Rosa Amarela", do compositor Capiba, com letra de Carlos Pena Filho
Carlos Pena Filho
In Livro Geral Editora Raiz, s/ data, s/
local (talvez Recife) ______________ * Myriam Fraga, "Arte Poética", in
Femina (1996)
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- Imagens: trabalhos do artista cearense
Aldemir
Martins (1922-2006), todos da série "Gatos", que ele pintou por mais de
50 anos.