«Não sei de pássaros / não
conheço a história do fogo.» (Alejandra
Pizarnik) *
Lívia Natália
Amigas e amigos,
Foi por acaso que tomei contato com a poesia da baiana Lívia Natália. Li
alguns de seus poemas numa antologia de vários autores. Em seguida, busquei-a na
internet e descobri uma forma de contatá-la.
Doutora em literatura e
professora da UFBA, Lívia Natália estreou em livro com a coletânea Água Negra
(2011), publicada em Salvador pelo Concurso Literário do Banco Capital.
Ela
mesma caracteriza esse livro como uma obra “muito assentada na questão dos
orixás”, sendo que “água negra” faz referência ao orixá feminino Oxum, que reina
sobre a água doce, o amor e a beleza.
Os poemas que integram a pequena
amostra ao lado foram extraídos de Água Negra e também do blog de Lívia Natália,
Outras Águas. Tomei por empréstimo esses dois nomes, combinei-os e usei-os
como título deste boletim.
•o•
O primeiro traço que se observa na
poesia de Lívia Natália é uma forte vinculação a elementos da natureza: água,
vento, fogo, barro, pedra, mar. Na mesma medida, aparece o corpo humano, no todo
ou em partes. Combinados, esses itens parecem simbolizar a rombuda
materialidade da vida e, ao mesmo tempo, seus difíceis e impenetráveis
mistérios.
No poema “Sometimes”, destacam-se o vento e as cores. “Às
vezes é um vento mais forte / e ele vem de longe, tangendo as colinas”. Depois,
ventos e cores engendram o mistério: “não há portas / mas as chaves persistem, /
pendendo de minhas mãos”. Por fim, ocorre a interpenetração da natureza com o
estado de espírito da narradora: “Um vento e, pobre de mim, sou toda feita de
Água”.
Em “Ori Asè”, o texto trata de mistérios do culto aos orixás. É
útil saber que a quartinha é uma moringa ou pote de barro para armazenar água de
beber. Mas é também um recipiente onde se mantém água sagrada. Mais uma vez, o
símbolo água aparece na poesia de Lívia Natália.
É interessante ouvir a
autora ler esse poema (veja, ao lado, o vídeo do YouTube). Independentemente do
que se possa dele compreender, não resta dúvida de que existe ali um vigoroso
impulso poético. “Quando a quartinha estala a sua língua / saveiros dobram seus
ombros nas docas / o mar respira, bebendo a si mesmo, / enquanto as ondas coçam
as costas das pedras”.
Nos dois poemas seguintes, “Esquecimentos” e “O
Caso do Vestido”, nota-se, mais uma vez, a interpenetração de fenômenos naturais
com a mente ou o corpo da pessoa que fala. No primeiro, a dor se transforma em
pedras e fogo. “Se doer mais um pouco, / de minha boca sairão pedras / e tochas
acesas devorarão minha carne”. No outro, um poema que tem por epígrafe um verso
de Adélia Prado, é o calor atmosférico que tece um vestido “todo bordado na
minha pele: / por dentro”.
O último poema, “Orisa Didê”, trata do
momento em que, no candomblé, o orixá toma posse de seu “cavalo”, o filho de
santo em cujo corpo a divindade se manifesta. Conforme o texto, o orixá “dança
sem a calma das horas, / pois seus braços se erguem para fora do tempo”. E mais:
quando vai embora, “não parte. / Apenas se banha em seu próprio mistério”.
Às vezes é um vento mais forte e ele vem de longe, tangendo as
colinas E as tardes se emancipam de mim, como se fossem feitas de puro
desejo.
Um azul intenso devora meus dedos e os olhos, inteiros,
são de oceano e vão e eu estou perdida: não há portas mas as chaves
persistem, pendendo de minhas mãos.
Um vento que me fala em uma
outra língua e, ainda assim, toda me devora, e não há apelo, e não
há distância que o coloque de volta: entra pelos meus cabelos e faz
deles sua mais perfeita morada.
Um vento, e eu de todo exilada. Um
vento, e eu desfeita, calada. Um vento e, pobre de mim, sou toda
feita de Água.
Lívia Natália lê seu poema "Ori Asè", transcrito abaixo
ORI ASÈ
Quando a quartinha canta, prenhe de água absoluta, um suntuoso
aquário se tece no breu de suas bordas.
Na sua voz de metafísica e
nada ouço a água doce e fria de que está plena e emprenhada.
{Sua casca barrosa se limita com o chão líquido do Orum onde dançam
Deuses de pele translúcida.}
Quando a quartinha estala a sua língua
saveiros dobram seus ombros nas docas o mar respira, bebendo a si mesmo,
enquanto as ondas coçam as costas das pedras.
Onde canta o estalido
da quartinha um Ori se planta no profundo.
Carybé, Capoeira
ESQUECIMENTOS
Para minha Mãe
Se doer mais um pouco, de minha boca
sairão pedras e tochas acesas devorarão minha carne.
Se doer só
mais um pouco, as palavras brotarão de meus poros e minha boca se
demorará em silêncios.
Se doer ainda mais, nascerá um sangue bruto
entre meus dentes
e meu útero perderá seus segredos de vazio.
Carybé, Músicos
O CASO DO VESTIDO
De tempo e traça meu vestido me guarda.
Adélia Prado
Meu corpo não respeita as estações. Chove
grosso em cada dobra da cidade E eu trago comigo um vestido de verão
intempestivo.
Meu corpo não cede e, vivo, arde no ligeiro das
rendas, nas maresias que lambem o ar. Meu corpo não cede.
E o
vestido que me desveste neste calor temporão é todo bordado na minha
pele: por dentro.
Carybé, Orixás
ORISA DIDÊ
Arranca as percatas de seu
cavalo e nele galopa com os pés no chão. Solta um grito que se espeta
no alto e, repetido, saúda a terra com a majestade de sua presença.
Dança sem a calma das horas, pois seus braços se erguem para fora do
tempo.
Caminha com sua carne de mito e, quando vai, não parte.
Apenas se banha em seu próprio mistério.
Lívia Natália
* "Ori Asè" In
Água Negra EPP, Salvador, 2011
Concurso Literário do Banco Capital 2011 * "Sometimes", "Esquecimentos",
"O caso do vestido", "Orisa Didê" Blog
Outras Águas,
da autora _____________
* Alejandra Pizarnik, "La carencia", in Poesía Completa (1955-1972),
Lumen, Barcelona, 2000
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- Imagens: trabalhos de Hector Bernabó, o
Carybé
(1911-1997), argentino naturalizado brasileiro. Morou em
Salvador de 1950 até a morte.