Número 332 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 20 de maio de 2015

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«Não sei de pássaros / não conheço a história do fogo.» (Alejandra Pizarnik) *

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Lívia Natália
Lívia Natália


Amigas e amigos,

Foi por acaso que tomei contato com a poesia da baiana Lívia Natália. Li alguns de seus poemas numa antologia de vários autores. Em seguida, busquei-a na internet e descobri uma forma de contatá-la.


Doutora em literatura e professora da UFBA, Lívia Natália estreou em livro com a coletânea Água Negra (2011), publicada em Salvador pelo Concurso Literário do Banco Capital.


Ela mesma caracteriza esse livro como uma obra “muito assentada na questão dos orixás”, sendo que “água negra” faz referência ao orixá feminino Oxum, que reina sobre a água doce, o amor e a beleza.


Os poemas que integram a pequena amostra ao lado foram extraídos de Água Negra e também do blog de Lívia Natália, Outras Águas. Tomei por empréstimo esses dois nomes, combinei-os e usei-os como título deste boletim.

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O primeiro traço que se observa na poesia de Lívia Natália é uma forte vinculação a elementos da natureza: água, vento, fogo, barro, pedra, mar. Na mesma medida, aparece o corpo humano, no todo ou em partes. Combinados, esses itens parecem simbolizar a rombuda materialidade da vida e, ao mesmo tempo, seus difíceis e impenetráveis mistérios.


No poema “Sometimes”, destacam-se o vento e as cores. “Às vezes é um vento mais forte / e ele vem de longe, tangendo as colinas”. Depois, ventos e cores engendram o mistério: “não há portas / mas as chaves persistem, / pendendo de minhas mãos”. Por fim, ocorre a interpenetração da natureza com o estado de espírito da narradora: “Um vento e, pobre de mim, sou toda feita de Água”.


Em “Ori Asè”, o texto trata de mistérios do culto aos orixás. É útil saber que a quartinha é uma moringa ou pote de barro para armazenar água de beber. Mas é também um recipiente onde se mantém água sagrada. Mais uma vez, o símbolo água aparece na poesia de Lívia Natália.


É interessante ouvir a autora ler esse poema (veja, ao lado, o vídeo do YouTube). Independentemente do que se possa dele compreender, não resta dúvida de que existe ali um vigoroso impulso poético. “Quando a quartinha estala a sua língua / saveiros dobram seus ombros nas docas / o mar respira, bebendo a si mesmo, / enquanto as ondas coçam as costas das pedras”.


Nos dois poemas seguintes, “Esquecimentos” e “O Caso do Vestido”, nota-se, mais uma vez, a interpenetração de fenômenos naturais com a mente ou o corpo da pessoa que fala. No primeiro, a dor se transforma em pedras e fogo. “Se doer mais um pouco, / de minha boca sairão pedras / e tochas acesas devorarão minha carne”. No outro, um poema que tem por epígrafe um verso de Adélia Prado, é o calor atmosférico que tece um vestido “todo bordado na minha pele: / por dentro”.


O último poema, “Orisa Didê”, trata do momento em que, no candomblé, o orixá toma posse de seu “cavalo”, o filho de santo em cujo corpo a divindade se manifesta. Conforme o texto, o orixá “dança sem a calma das horas, / pois seus braços se erguem para fora do tempo”. E mais: quando vai embora, “não parte. / Apenas se banha em seu próprio mistério”.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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Água negra e outras águas

Lívia Natália


 
 
Carybé - Feira
Carybé, argentino-baiano, Feira




SOMETIMES

Às vezes é um vento mais forte
e ele vem de longe, tangendo as colinas
E as tardes se emancipam de mim,
como se fossem feitas de puro desejo.

Um azul intenso devora meus dedos
e os olhos, inteiros, são de oceano e vão
e eu estou perdida: não há portas
mas as chaves persistem,
pendendo de minhas mãos.

Um vento que me fala em uma outra língua
e, ainda assim, toda me devora,
e não há apelo,
e não há distância que o coloque de volta:
entra pelos meus cabelos
e faz deles sua mais perfeita morada.

Um vento, e eu de todo exilada.
Um vento, e eu desfeita,
calada.
Um vento e, pobre de mim,
sou toda feita de Água.





Lívia Natália lê seu poema "Ori Asè", transcrito abaixo




ORI ASÈ

Quando a quartinha canta,
prenhe de água absoluta,
um suntuoso aquário se tece
no breu de suas bordas.

Na sua voz de metafísica e nada
ouço a água doce e fria
de que está plena e emprenhada.

{Sua casca barrosa se limita
com o chão líquido do Orum
onde dançam Deuses de pele translúcida.}

Quando a quartinha estala a sua língua
saveiros dobram seus ombros nas docas
o mar respira, bebendo a si mesmo,
enquanto as ondas coçam as costas das pedras.

Onde canta o estalido
da quartinha
um Ori se planta no profundo.




Carybé - Capoeira
Carybé, Capoeira




ESQUECIMENTOS

               Para minha Mãe


Se doer mais um pouco,
de minha boca sairão pedras
e tochas acesas devorarão minha carne.

Se doer só mais um pouco,
as palavras brotarão de meus poros
e minha boca se demorará em silêncios.

Se doer ainda mais,
nascerá um sangue bruto entre meus dentes

e meu útero perderá seus segredos de vazio.




Carybé - Músicos
Carybé, Músicos



O CASO DO VESTIDO


           De tempo e traça meu vestido me guarda.
                             Adélia Prado



Meu corpo não respeita as estações.
Chove grosso em cada dobra da cidade
E eu trago comigo um vestido de verão intempestivo.


Meu corpo não cede e, vivo, arde no ligeiro das rendas,
nas maresias que lambem o ar.
Meu corpo não cede.

E o vestido que me desveste neste calor temporão
é todo bordado na minha pele:
por dentro.





Carybé - Orixás
Carybé, Orixás




ORISA DIDÊ

Arranca as percatas de seu cavalo
e nele galopa com os pés no chão.
Solta um grito que se espeta no alto
e,
repetido,
saúda a terra com a majestade de sua presença.

Dança sem a calma das horas,
pois seus braços se erguem para fora do tempo.

Caminha com sua carne de mito
e, quando vai, não parte.
Apenas se banha em seu próprio mistério.




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015



Foto: André Frutuôso
Lívia Natália
* "Ori Asè"
   In Água Negra
   EPP, Salvador, 2011
   Concurso Literário do Banco Capital 2011
* "Sometimes", "Esquecimentos", "O caso do vestido", "Orisa Didê"
   Blog Outras Águas, da autora 
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* Alejandra Pizarnik, "La carencia", in Poesía Completa (1955-1972),
  Lumen, Barcelona, 2000

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- Imagens: trabalhos de Hector Bernabó, o Carybé (1911-1997), argentino
   naturalizado brasileiro. Morou em Salvador de 1950 até a morte.