Número 333 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 3 de junho de 2015

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«O tempo / é escritura de estilhaços. A paz é um pássaro sem asas.» (Myriam Fraga) *

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Fernando Mendes Vianna
Fernando Mendes Vianna


Amigas e amigos,

Nascido no Rio de Janeiro, Fernando Mendes Vianna (1933-2006) foi poeta e tradutor de poesia. Diplomado em direito, transferiu-se para Brasília logo após a inauguração da cidade, em 1961. Trabalhou no Senado, como redator dos anais e documentos parlamentares e também colaborou em jornais e periódicos.


Na poesia, Fernando Mendes Vianna estreou em 1958, com o livro Marinheiro no Tempo e a Construção do Caos. Publicou, em seguida, A Chave e a Pedra (1960); Proclamação do Barro (1964); O Silfo-Hipogrifo (1972); Embarcado em Seco (1978); Marinheiro no Tempo – Antologia (1986); Ah, o Último Paraíso (1998); Antologia Pessoal (2001); e A Rosa Anfractuosa (2004). Há ainda livros de ensaios, participações em antologias e traduções de clássicos espanhóis.


Os poemas selecionados para a miniantologia ao lado foram extraídos da antologia Marinheiro no Tempo. O crítico José Guilherme Merquior (1941-1991) destaca em Mendes Vianna a condição de “poeta-pensador”. Diz também, referindo-se à coletânea Proclamação do Barro, que o poeta carioca produz “poesia de quem ama pensar, e ama o sentimento forte que traz pensar”.


Esta é talvez a característica que perpassa toda a poesia de Mendes Vianna. Mas se nos primeiros livros seu pensamento era mais metafísico, o poeta, a partir de Proclamação do Barro, vai se aproximando de um pensamento mais social. O poema homônimo, que dá título ao livro, é talvez sua página mais conhecida.


Num texto curto, de apenas sete versos, Fernando Mendes Vianna declara, enfaticamente, nossa condição de filhos do barro, sem fazer nenhuma concessão ou idealização romântica ou religiosa. Desse modo, ele vê o elemento de que somos feitos “sitiado pelo sangue e pelo escarro”. Mas, ao mesmo tempo, nos conclama a “levantar o brilho desse astro” (a terra, o barro) e tirar proveito de sermos argila e não “estátuas prontas de alabastro”.


Ou seja, não somos pedra, e isso nos confere a vantagem de sermos constituídos de um material maleável. Reside aí a chance de nos moldarmos, remodelarmos, transformando o barro que somos e a terra onde vivemos num lugar mais habitável para todos. “Gente é pra brilhar”, com lembra a canção de Caetano Veloso.


Mas se enxerga uma brecha para a transformação da vida, o poeta nunca se rende ao otimismo fácil. É o que se vê no poema monorrímico “Litania feroz”. Aqui, o sujeito lírico se dirige à lua, tentando entender a solidão dos seres humanos, que são como “galhos ao vento” e uivam por dentro como cães, mudos e sós.


O encontro das pessoas em “Bar” é outro momento de calmo desencanto. “Sem solenidade / comemora-se mais um dia, / mais uma noite”. Bebem cerveja, entretêm-se em conversas, mas são apenas uma “reunião de vozes sob o silêncio das estrelas”. Mais uma vez, nenhuma promessa de redenção ou de felicidade fácil na primeira esquina.

O mesmo clima se repete em "Gravuras da Cidade Escura", poema em três partes dedicado ao artista plástico Oswaldo Goeldi que, como se sabe, também em suas obras retratava a "cidade escura". Neste poema, os três primeiros versos já anunciam tudo: "Contra o crepúsculo / os homens acendem as luzes da cidade. / Mas a melancolia triunfa".

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Acrescento ainda algumas palavras sobre Fernando Mendes Vianna, o cidadão. Brasiliense desde os primeiros anos, não se calou diante dos desmandos da ditadura militar. Em 1968, conta o poeta mineiro-brasiliense Anderson Braga Horta, Mendes Vianna “foi dos primeiros signatários de manifesto dos intelectuais do Distrito Federal em ‘repúdio aos atos de brutalidade praticados contra a mocidade estudantil’, motivado por violenta invasão do campus da Universidade de Brasília”.


Em 1970, continua Horta, “liderou movimento de adesão ao protesto iniciado por Alceu Amoroso Lima contra o estabelecimento da censura prévia a livros e periódicos”. Estas foram apenas duas de suas ações.


Portanto, se Fernando Mendes Vianna foi um poeta-pensador, não há dúvida de que também vestiu a honrosa capa de poeta-cidadão.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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LANÇAMENTO


Tesoura Cega
• Carlos Machado



Tesoura Cega



Convido os amigos de São Paulo para o lançamento de meu novo livro de poesia, Tesoura Cega, publicado pela Dobra Editorial.

Quando:
Quarta-feira, 17/06/2015,
a partir das 18h30

Onde:
Casa das Rosas
Espaço Haroldo de Campos de Poesia
Av. Paulista, 37 - Bela Vista
São Paulo - SP

 

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Proclamação do barro

Fernando Mendes Vianna


 
 
Claudio Bravo - Natureza morta e paisagem
Claudio Bravo (1936-2011), chileno, Natureza morta e paisagem (1984)




O VENTO ASSASSINADO

Invocamos o vento. E o vento veio.
Vivificou nossas vidas sua voragem.

O vento multiplicou a nossa imagem
em espelhos de ar dentro do seio.

Temerosos do despedaçamento
expulsamos o vento. E veio a aragem.

Ah! Perdemos a grandeza da viagem,
a galopada pelo país do vento!

O vento de hoje tem um freio.
Sangra sua boca de tristeza.

Mitologia decepada em sua beleza,
nosso cavalo está partido ao meio.

É mudo o nitrir da sua mensagem.
Sem a fúria da crina, como o campo é feio!

Só velhos ossos do antigo vento
resgatam nosso horizonte da estreiteza.





Claudio Bravo - Garrafas
Claudio Bravo, Garrafas (1987)




POEMA SEM DEDICATÓRIA

À saída do nosso trabalho diário
eu te compraria jóias de camelô e doces de rua.

Aos domingos te levaria ao circo, na hora das crianças,
para imaginarmos o rosto de nosso filho.

Os parques eu também te daria.
E os bondes da madrugada.

E o cais, que não seria tristeza,
pois não mais desejaríamos partir.

A grande cidade já não seria
meu tédio, nem meu ódio:
apenas piedade.

A lua seria sempre nossa
e do nosso silêncio de praia
— eco do rumor do mar.

Em noites escuras
amaríamos gritando.




Claudio Bravo - Maçãs e marmelos
Claudio Bravo, Maçãs e marmelos (1986)



PROCLAMAÇÃO DO BARRO

Proclamar a cor da terra, proclamá-la,
conclamando o barro desta estrela,
sitiado pelo sangue e pelo escarro.

Levantar o brilho deste astro,
rolado como lixo numa vala.

Clamar! Somos argila, argila,
nunca estátuas prontas de alabastro.




Claudio Bravo - Natureza morta com tapete persa
Claudio Bravo, Natureza morta com tapete persa



LITANIA FEROZ


Tempestuosa lua, lua feroz,
uivo no espaço, dentro de nós.
Galhos ao vento, estamos sós,
e nos prostramos, lua feroz.

E nos erguemos, dentro de nós,
uivo longo, longo e sem voz.

Tempestuosa lua, lua feroz,
olho no espaço, longe de nós.
Como governas, longe de nós,
nossas marés e nossos cipós?

Ah! tu governas, dentro de nós,
quando gritamos, mudos e sós.




Claudio Bravo - Almofarizes
Claudio Bravo, Almofarizes (1982)




O ABRAÇO

A tarde desce, num gesto de perdão
turvo,
e a noite funde metais e homens
num abraço
triste.




BAR

A conversa flui
e o tempo passa entre as pessoas
como um rio longo, longo, reunindo
margens variadas.

Sem solenidade
comemora-se mais um dia,
mais uma noite.

Bebemos cerveja gelada.
Há lufadas de vento quente,
rumor de folhas,
e a reunião de vozes sob o silêncio das estrelas.




Claudio Bravo - Pêssegos
Claudio Bravo, Pêssegos



GRAVURAS DA CIDADE ESCURA

                      A Oswaldo Goeldi


I

Contra o crepúsculo
os homens acendem as luzes da cidade.
Mas a melancolia triunfa.

Buscam os lares, os bares ou apenas o cansaço,
quatro paredes para fugir da noite.
Mas a noite está nos homens,
e a angústia do crepúsculo é apenas um espelho.

Começa agora o suor noturno,
a luta do álcool, do sexo, da dança, da leitura.
Mas a solidão triunfa:
o pão de cada dia é uma náusea no peito.

Contra a noite
os homens deflagraram as luzes da cidade.
Inútil.


II

Vomito os metais, a fumaça, as ruas. o rebanho,
mas a urbe é um morcego no meu peito.

De nada serviria arrancar meus olhos:
a insônia zumbe em mim como as buzinas,
e meu coração é um motor histérico.
De nada serviria arrancar meus olhos:
a prostituta sou eu, o mendigo sou eu,
e a criança esquálida, e o brítador, e o lixeiro,
e o burguês gelatinoso.

Retirei os sapatos, mas foi um gesto:
em meus pés está marcado o asfalto.


III

A noite, como um grande relógio disforme e moribundo.
A noite e seus filtros de veneno,
instilando um álcool em cada veia.

A noite, aranha numa teia colossal.

A noite e sua fauna viscosa,
rufiões, paxás, répteis, batráquios,
lúmias fosforescentes como enguias abissais.

A noite e sua máscara de luas bêbadas,
lampiões de olhar sonâmbulo, fantasmas
contemplando os náufragos do mundo.


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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015



Fernando Mendes Vianna
* In Marinheiro no Tempo (1956-1986) — Antologia
   Thesaurus, Brasília, 1986

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* Myriam Fraga, "Olho de vidro", in O Risco na Pele (1979)

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- Imagens: trabalhos do pintor hiperrealista chileno Claudio Bravo (1936-2011).