Fernando Mendes Vianna
Amigas e amigos,
Nascido no Rio de Janeiro, Fernando Mendes Vianna (1933-2006) foi poeta
e tradutor de poesia. Diplomado em direito, transferiu-se para Brasília logo
após a inauguração da cidade, em 1961. Trabalhou no Senado, como redator dos
anais e documentos parlamentares e também colaborou em jornais e periódicos.
Na poesia, Fernando Mendes Vianna estreou em 1958, com o livro Marinheiro no
Tempo e a Construção do Caos. Publicou, em seguida, A Chave e a Pedra (1960);
Proclamação do Barro (1964); O Silfo-Hipogrifo (1972); Embarcado em Seco (1978);
Marinheiro no Tempo – Antologia (1986); Ah, o Último Paraíso (1998);
Antologia
Pessoal (2001); e A Rosa Anfractuosa (2004). Há ainda livros de ensaios,
participações em antologias e traduções de clássicos espanhóis.
Os poemas selecionados para a miniantologia ao lado foram extraídos da
antologia Marinheiro no Tempo. O crítico José Guilherme Merquior (1941-1991)
destaca em Mendes Vianna a condição de “poeta-pensador”. Diz também,
referindo-se à coletânea Proclamação do Barro, que o poeta carioca produz
“poesia de quem ama pensar, e ama o sentimento forte que traz pensar”.
Esta é talvez a característica que perpassa toda a poesia de Mendes Vianna. Mas
se nos primeiros livros seu pensamento era mais metafísico, o poeta, a partir de
Proclamação do Barro, vai se aproximando de um pensamento mais social. O poema
homônimo, que dá título ao livro, é talvez sua página mais conhecida.
Num texto curto, de apenas sete versos, Fernando Mendes Vianna declara,
enfaticamente, nossa condição de filhos do barro, sem fazer nenhuma concessão ou
idealização romântica ou religiosa. Desse modo, ele vê o elemento de que somos
feitos “sitiado pelo sangue e pelo escarro”. Mas, ao mesmo tempo, nos conclama a
“levantar o brilho desse astro” (a terra, o barro) e tirar proveito de sermos
argila e não “estátuas prontas de alabastro”.
Ou seja, não somos
pedra, e isso nos confere a vantagem de sermos constituídos de um material
maleável. Reside aí a chance de nos moldarmos, remodelarmos, transformando o
barro que somos e a terra onde vivemos num lugar mais habitável para todos. “Gente
é pra brilhar”, com lembra a canção de Caetano Veloso.
Mas se
enxerga uma brecha para a transformação da vida, o poeta nunca se rende ao
otimismo fácil. É o que se vê no poema monorrímico “Litania feroz”. Aqui, o
sujeito lírico se dirige à lua, tentando entender a solidão dos seres humanos, que são
como “galhos ao vento” e uivam por dentro como cães, mudos e sós.
O
encontro das pessoas em “Bar” é outro momento de calmo desencanto. “Sem
solenidade / comemora-se mais um dia, / mais uma noite”. Bebem cerveja,
entretêm-se em conversas, mas são apenas uma “reunião de vozes sob o silêncio
das estrelas”. Mais uma vez, nenhuma promessa de redenção ou de felicidade fácil
na primeira esquina.
O mesmo clima se repete em "Gravuras da Cidade
Escura", poema em três partes dedicado ao artista plástico Oswaldo Goeldi que,
como se sabe, também em suas obras retratava a "cidade escura". Neste poema, os
três primeiros versos já anunciam tudo: "Contra o crepúsculo / os homens acendem
as luzes da cidade. / Mas a melancolia triunfa".
•o•
Acrescento ainda algumas palavras
sobre Fernando Mendes Vianna, o cidadão. Brasiliense desde os primeiros anos,
não se calou diante dos desmandos da ditadura militar. Em 1968, conta o poeta
mineiro-brasiliense Anderson Braga Horta, Mendes Vianna “foi dos primeiros
signatários de manifesto dos intelectuais do Distrito Federal em ‘repúdio aos
atos de brutalidade praticados contra a mocidade estudantil’, motivado por
violenta invasão do campus da Universidade de Brasília”.
Em 1970,
continua Horta, “liderou movimento de adesão ao protesto iniciado por Alceu
Amoroso Lima contra o estabelecimento da censura prévia a livros e periódicos”.
Estas foram apenas duas de suas ações.
Portanto,
se Fernando Mendes Vianna foi um poeta-pensador, não há dúvida de que também
vestiu a honrosa capa de poeta-cidadão.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
•o•
LANÇAMENTO
Tesoura Cega • Carlos Machado
Convido os amigos de São Paulo para o lançamento de
meu novo livro de poesia, Tesoura Cega, publicado pela Dobra Editorial.
Quando: Quarta-feira, 17/06/2015, a
partir das 18h30
Onde: Casa das
Rosas Espaço Haroldo de Campos de Poesia Av. Paulista, 37 - Bela Vista
São Paulo - SP
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Proclamação do barro
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Fernando Mendes Vianna
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Claudio Bravo (1936-2011), chileno, Natureza morta e paisagem (1984)
O VENTO ASSASSINADO
Invocamos o vento. E o vento veio. Vivificou nossas vidas sua
voragem.
O vento multiplicou a nossa imagem em espelhos de ar
dentro do seio.
Temerosos do despedaçamento expulsamos o vento. E
veio a aragem.
Ah! Perdemos a grandeza da viagem, a galopada pelo
país do vento!
O vento de hoje tem um freio. Sangra sua boca de
tristeza.
Mitologia decepada em sua beleza, nosso cavalo está
partido ao meio.
É mudo o nitrir da sua mensagem. Sem a fúria da
crina, como o campo é feio!
Só velhos ossos do antigo vento
resgatam nosso horizonte da estreiteza.
Claudio Bravo, Garrafas (1987)
POEMA SEM DEDICATÓRIA
À saída do nosso trabalho diário eu te compraria jóias de camelô e
doces de rua.
Aos domingos te levaria ao circo, na hora das crianças,
para imaginarmos o rosto de nosso filho.
Os parques eu também te
daria. E os bondes da madrugada.
E o cais, que não seria tristeza,
pois não mais desejaríamos partir.
A grande cidade já não seria
meu tédio, nem meu ódio: apenas piedade.
A lua seria sempre nossa
e do nosso silêncio de praia — eco do rumor do mar.
Em
noites escuras amaríamos gritando.
Claudio Bravo, Maçãs e marmelos (1986)
PROCLAMAÇÃO DO BARRO
Proclamar a cor da terra, proclamá-la,
conclamando o barro desta estrela,
sitiado pelo sangue e pelo escarro.
Levantar o brilho deste astro,
rolado como lixo numa vala.
Clamar! Somos argila, argila,
nunca estátuas prontas de alabastro.
Claudio Bravo, Natureza morta com tapete persa
LITANIA FEROZ
Tempestuosa lua, lua feroz, uivo no
espaço, dentro de nós. Galhos ao vento, estamos sós, e nos prostramos,
lua feroz.
E nos erguemos, dentro de nós, uivo longo, longo e sem
voz.
Tempestuosa lua, lua feroz, olho no espaço, longe de nós.
Como governas, longe de nós, nossas marés e nossos cipós?
Ah! tu
governas, dentro de nós, quando gritamos, mudos e sós.
Claudio Bravo, Almofarizes (1982)
O ABRAÇO
A tarde desce, num gesto de perdão
turvo, e a noite funde metais e homens num abraço triste.
BAR
A conversa flui e o tempo passa entre
as pessoas como um rio longo, longo, reunindo margens variadas.
Sem solenidade comemora-se mais um dia, mais uma noite.
Bebemos cerveja gelada. Há lufadas de vento quente, rumor de folhas,
e a reunião de vozes sob o silêncio das estrelas.
Claudio Bravo, Pêssegos
GRAVURAS DA CIDADE ESCURA
A Oswaldo Goeldi
I
Contra o crepúsculo os
homens acendem as luzes da cidade. Mas a melancolia triunfa.
Buscam os lares, os bares ou apenas o cansaço, quatro paredes para fugir
da noite. Mas a noite está nos homens, e a angústia do crepúsculo é
apenas um espelho.
Começa agora o suor noturno, a luta do álcool,
do sexo, da dança, da leitura. Mas a solidão triunfa: o pão de cada
dia é uma náusea no peito.
Contra a noite os homens deflagraram as
luzes da cidade. Inútil.
II
Vomito os metais, a
fumaça, as ruas. o rebanho, mas a urbe é um morcego no meu peito.
De nada serviria arrancar meus olhos: a insônia zumbe em mim como as
buzinas, e meu coração é um motor histérico. De nada serviria arrancar
meus olhos: a prostituta sou eu, o mendigo sou eu, e a criança
esquálida, e o brítador, e o lixeiro, e o burguês gelatinoso.
Retirei os sapatos, mas foi um gesto: em meus pés está marcado o asfalto.
III
A noite, como um grande relógio disforme e
moribundo. A noite e seus filtros de veneno, instilando um álcool em
cada veia.
A noite, aranha numa teia colossal.
A noite e sua
fauna viscosa, rufiões, paxás, répteis, batráquios, lúmias
fosforescentes como enguias abissais.
A noite e sua máscara de luas
bêbadas, lampiões de olhar sonâmbulo, fantasmas contemplando os
náufragos do mundo.
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