Adriane Garcia
Amigas e amigos,
Para este boletineiro de longa data — que, por obrigação devota,
está sempre à cata de novos poetas —, é sempre uma alegria encontrar um
escritor como a mineira Adriane Garcia. Nascida em Belo Horizonte (1973),
Adriane é historiadora, funcionária pública, arte-educadora e atriz. Escreve
poesia, infantojuvenis, contos e textos teatrais.
Em 2013, venceu o
Prêmio Nacional de Literatura do Paraná com o livro de poemas Fábulas para
Adulto Perder o Sono. No ano seguinte, publicou outra coletânea, O Nome
do Mundo. Todos os poemas ao lado foram extraídos desse último volume.
Antes de qualquer outra consideração sobre o trabalho de Adriane Garcia, é
importante destacar que se trata de uma poeta dotada de aguda consciência da
finitude das coisas e de nós mesmos. Seu lirismo é duro, crespo, eriçado — como
a vida. Não é à toa que, no poema “Tropeço”, ela literalmente afugenta o leitor
que chega com a expectativa de versos açucarados: “Saia daqui se gosta / De algodão-doce /
Glicose / Transformada em poesia / Etérea”.
Numa coletânea que reúne cerca de
90 poemas, o tom dominante não escorrega em nenhum momento no idílio, no
autoengano, na ideia de que belas palavras podem ser capazes de alterar a
natureza da realidade.
Os poemas, quase sem exceção, são curtos e não excedem a extensão de uma
página. Muitos revelam-se menos que curtos: são mínimos — e dizem tudo com
apenas dois ou três versos. Um exemplo é a definição de “Vida”: “Carro à deriva:
/ A enchente carrega / Com gente dentro”. Em idêntico clima situa-se a pessoa
que fala em “Corpo e alma”. Com essas duas partes de si mesma atadas a “bolas e ferro e
correntes”, ela segue sobre o asfalto quente, com os pés “cheios de crenças
e bolhas”.
É forte na poesia de Adriane Garcia a percepção do
acaso inventando mudanças de rumo na vida das pessoas, não raro
produzindo tragédias. Há mesmo uma ironia melancólica na história do “bezerro
fracote” de “... Se Ficar o Bicho Come”. É o animal que, por ser frágil, foi
poupado de ser transformado em “bife à mesa”. Mas isso não autoriza grandes
esperanças de vida tranquila para o novilho: “Cresceu / Virou boi de piranha”.
A metáfora da vida de gado é recorrente e aparece também em “Boiada”:
“Milhares nos carros de boi / Puxando do horário comercial pra casa / Da casa
pro horário comercial”. O clima é o mesmo, em “Fisionomias”. No metrô, os rostos
parecem diferentes apenas porque “somos apegados a detalhes”. Mas na verdade são
todos iguais: todos carregando o fardo da existência. E é para suportar
esse peso que o ser humano procura outros semelhantes, fugindo de sua “Solidão”:
“Só / O homem / Procura / O outro / Homem / Só”.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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LANÇAMENTO HOJE, 17/06
Tesoura Cega • Carlos Machado
Convido os amigos de São Paulo para o lançamento de
meu novo livro de poesia, Tesoura Cega, publicado pela Dobra Editorial.
Quando: Quarta-feira, 17/06/2015, a
partir das 18h30
Onde: Casa das
Rosas Espaço Haroldo de Campos de Poesia Av. Paulista, 37 - Bela Vista
São Paulo - SP
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Aqui não se vende algodão-doce
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Adriane Garcia
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Edgar Degas (1834-1917),
francês, Bailarina sentada (1879-80)
ESCULTURAS VIVAS
Repare nas mães Tendo ao colo filhos dormindo: Pietás de carne e
osso Carregando destinos.
TROPEÇO
Saia daqui se gosta De algodão-doce Glicose Transformada em
poesia Etérea, nuvenzinha de cor Na mão do anjinho Que caminha E
não vê a pedra.
Degas, Aula de dança no Opéra (1872)
CORPO E ALMA
Carrego meu corpo E ele me carrega O primeiro ato pesa O
segundo dói
Somos nós dois atrelados Bolas de ferro e correntes
mútuas Nos calcanhares magros, de hematomas Nos pés lançados no quente
asfalto Cheios de crenças e de bolhas.
DO MIRANTE
Metade do que tu és É mentira Da outra metade, revê Do que são
falas de tua mãe Do que são ralhos de teu pai Se és de mágoas Já
não és inteiro Mergulha no abismo E te encontra E sobe como um
ressurreto E vem ver comigo daqui de cima.
Degas, Aula de dança (1873-75)
TRÊS OLHARES
Os cães têm todos os
mesmos olhos Pedidos vítreos
Os macacos têm todos os mesmos olhos
Lamentos encapsulados
Os humanos têm todos os olhos: Disfarces da
cegueira.
DE CROCODILO
Olho a vida: Um
crocodilo inerte Tomando sol
... e me olhando
Eu, inerte
Nós dois Abrindo a boca E lacrimejando.
Degas, Bailarinas (1884-85)
... SE FICAR O BICHO COME
Era um bezerro fracote
Por sorte, à fortuna da roda Deixou de ser bife à mesa
Cresceu
Virou boi de piranha.
FISIONOMIAS
O metrô vai Carregado de rostos
Este
tem uma bolsa E uma conta para pagar
Aquele tem uma lembrança
Não quer lembrar
Mas o metrô é tão contínuo Que embala...
E
em cada curva Em cada linha de expressão Uma história que é a mesma
Para todos
Vá lá, admita, Somos apegados a detalhes E é só isso
que faz Rostos diferentes
Aquele outro, tão jovem Sorri: Tem
um bilhete E uma inocência.
Degas, Aula de dança (1871)
BOIADA
Milhares nos carros de boi Puxando do
horário comercial pra casa Da casa pro horário comercial Dormem em pé,
cansados, Ruminam a grama verde que adubam E não comem
É gado
de pouco sonho De pouca ração De muito corte.
VIDA
Carro à deriva: A enchente carrega Com gente dentro.
SOLIDÃO
Só O homem Procura O outro Homem Só.
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