Manuel Bandeira
Amigas e amigos,
Uma das facetas dos poetas modernistas brasileiros foi a criação de
paródias — quase sempre em tom jocoso — de textos do romantismo, do
parnasianismo e também de obras mais antigas. Já tive a oportunidade de dar
aqui, no
boletim n. 174, de 2006, uma pequena amostra de paródias e glosas da
"Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.
Nos primeiros modernistas, a
paródia era mais que um hábito: chegava a ser quase um vício. Oswald de Andrade
e Cassiano Ricardo, cada um à sua maneira, imitavam documentos do Brasil
colonial. Mário de Andrade, falando de poesia, escreveu um ensaio chamado A
Escrava que não é Isaura – uma referência ao romance A Escrava Isaura (1875), do
mineiro Bernardo Guimarães.
Neste boletim, contudo, o parodista destacado é o pernambucano Manuel
Bandeira (1886-1968). Aqui aparecem três de suas paródias. Trata-se, na verdade,
de exercícios que o próprio Bandeira chamava de "traduções para moderno".
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A primeira é sobre o soneto "A Anália" ("Se é doce no recente, ameno
estio"), do autor neoclássico português Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805). Em seu livro de memórias Itinerário de Pasárgada (1966),
Bandeira transcreve a parte de sua "tradução" relativa aos dois quartetos desse
poema.
Na essência, o procedimento de Bandeira, nesse caso, consiste
em eliminar excessos de época e distribuir os
versos na página de maneira mais livre.
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O outro exercício bandeiriano é um poema irônico, construído a partir de uma
sextilha escrita pelo médico e escritor romântico Joaquim Manuel de Macedo
(1820-1882), autor do célebre romance A Moreninha (1844). O texto teria
sido dedicado a uma irmã de Macedo.
Nessa nova "tradução", escreve Bandeira, "eu queria mesmo brincar falando
cafajeste, e a coisa foi apresentada como ‘tradução para caçanje’ ". Caçanje,
aqui, conforme o dicionário, tem o sentido de "português errado, mal falado". É,
de fato, a linguagem das ruas: mistura você com tu, dispensa pontuação, mas tem
o sabor de fala legítima e verdadeira. O próprio Bandeira, no parágrafo
seguinte, classifica o texto como poema-piada.
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A última das "traduções" de Bandeira mostradas aqui é uma versão para o poema
romântico “O Adeus de Teresa”, do poeta baiano Antônio de Castro Alves
(1847-1871). No original, o autor descreve três momentos de um caso de amor com
a moça do título. Na "tradução para moderno", Bandeira também trabalha com três
momentos. Mas a visão, em vez de apaixonada, passeia pelo absurdo surrealista.
Enquanto a Teresa original era pálida e oferecia "prazeres divinais", a
modernista, à primeira vista, "tinha pernas estúpidas" e uma cara que "parecia
uma perna".
Na segunda vez, permanece a visão desconjuntada da musa.
E na última, o sujeito lírico não enxerga mais nada e sofre uma espécie de
cataclismo sensorial. A solução se dá com uma paródia (mais uma!) bíblica. Como descreve o
Gênesis, o espírito de Deus "voltou a se mover sobre a face das águas". Pode-se
pensar (é uma hipótese) que o narrador conheceu biblicamente a desconcertante —
e, tanto quanto a de Castro Alves, deslumbrante — Teresa e experimentou
toda essa perturbação cósmica.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Além deste boletim,
Manuel Bandeira já apareceu no poesia.net nas seguintes edições:
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"Traduções" modernistas
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Manuel Bandeira
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Vicente do Rego Monteiro,
pernambucano, Natureza morta (1969)
1. Manuel Maria Barbosa du Bocage
A ANÁLIA
Se é doce no recente, ameno estio Ver toucar-se a manhã de etéreas
flores, E, lambendo as areias os verdores, Mole e queixoso deslizar-se
o rio;
Se é doce no inocente desafio Ouvirem-se os voláteis
amadores, Seus versos modulando e seus ardores De entre os aromas de
pomar sombrio;
Se é doce mares, céus, ver anilados Pela quadra
gentil, de Amor querida, Que esperta os corações, floreia os prados,
Mais doce é ver-te de meus ais vencida, Dar-me em teus brandos olhos
desmaiados Morte, morte de amor, melhor que a vida!
Manuel Maria Barbosa du Bocage
[DOÇURA DE, NO ESTIO RECENTE]
Doçura de, no estio recente, Ver a manhã toucar-se de flores, E o
rio mole
queixoso Deslizar, lambendo areias e verduras; Doçura de ouvir as aves
Em desafio de amores
cantos
risadas Na ramagem do pomar sombrio.
Manuel Bandeira
Vicente do Rego Monteiro, Gato e tartaruga (1925)
2. Joaquim Manuel de Macedo
[MULHER, IRMÃ, ESCUTA-ME]
Mulher, Irmã, escuta-me: não ames. Quando a teus pés um homem terno e
curvo Jurar amor, chorar pranto de sangue, Não creias, não, mulher:
ele te engana! As lágrimas são galas da mentira E o juramento manto da
perfídia.
Joaquim
Manuel de Macedo
[TERESA, SE ALGUM SUJEITO]
Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você E te
jurar uma paixão do tamanho de um bonde Se ele chorar Se ele se
ajoelhar Se ele se rasgar todo Não acredita não Teresa É lágrima de
cinema É tapeação Mentira CAI FORA.
Manuel Bandeira
Vicente do Rego Monteiro, Adão e Eva no Paraíso (1959)
3. Castro Alves
O "ADEUS" DE TERESA
A vez primeira que eu
fitei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza, A valsa nos
levou nos giros seus... E amamos juntos e depois na sala "Adeus" eu
disse-lhe a tremer co'a fala...
E ela, corando, murmurou-me: "adeus."
Uma noite... entreabriu-se um reposteiro. . . E da alcova saía um
cavaleiro Inda beijando uma mulher sem véus... Era eu... Era a pálida
Teresa! "Adeus" lhe disse conservando-a presa...
E ela entre
beijos murmurou-me: "adeus!"
Passaram tempos... sec'los de delírio
Prazeres divinais... gozos do Empíreo... ... Mas um dia volvi aos lares
meus. Partindo eu disse — "Voltarei! descansa!... " Ela, chorando mais
que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"
Quando
voltei era o palácio em festa!... E a voz d'Ela e de um homem lá na
orquestra Preenchiam de amor o azul dos céus. Entrei! Ela me olhou
branca... surpresa! Foi a última vez que eu vi Teresa!...
E ela
arquejando murmurou-me: "adeus!".
Castro Alves, in Espumas Flutuantes (1870)
TERESA
A primeira vez que vi Teresa Achei
que ela tinha pernas estúpidas Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo Achei que os olhos eram muito mais velhos
que o resto do corpo (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que
o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada Os
céus se misturaram com a terra E o espírito de Deus voltou a se mover
sobre a face das águas.
Manuel Bandeira
Vicente do Rego Monteiro, Artesão
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