Número 335 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 1 de julho de 2015

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«Deixei em vagos espelhos / a face múltipla e vária, / mas a que ninguém conhece / essa é a face necessária.» (Marly de Oliveira) *

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Manuel Bandeira
Manuel Bandeira


Amigas e amigos,


Uma das facetas dos poetas modernistas brasileiros foi a criação de paródias — quase sempre em tom jocoso — de textos do romantismo, do parnasianismo e também de obras mais antigas. Já tive a oportunidade de dar aqui, no boletim n. 174, de 2006, uma pequena amostra de paródias e glosas da "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.


Nos primeiros modernistas, a paródia era mais que um hábito: chegava a ser quase um vício. Oswald de Andrade e Cassiano Ricardo, cada um à sua maneira, imitavam documentos do Brasil colonial. Mário de Andrade, falando de poesia, escreveu um ensaio chamado A Escrava que não é Isaura – uma referência ao romance A Escrava Isaura (1875), do mineiro Bernardo Guimarães.


Neste boletim, contudo, o parodista destacado é o pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968). Aqui aparecem três de suas paródias. Trata-se, na verdade, de exercícios que o próprio Bandeira chamava de "traduções para moderno".

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A primeira é sobre o soneto "A Anália" ("Se é doce no recente, ameno estio"), do autor neoclássico português Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805). Em seu livro de memórias Itinerário de Pasárgada (1966), Bandeira transcreve a parte de sua "tradução" relativa aos dois quartetos desse poema.


Na essência, o procedimento de Bandeira, nesse caso, consiste em  eliminar excessos de época e distribuir os versos na página de maneira mais livre.

 

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O outro exercício bandeiriano é um poema irônico, construído a partir de uma sextilha escrita pelo médico e escritor romântico Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), autor do célebre romance A Moreninha (1844). O texto teria sido dedicado a uma irmã de Macedo.


Nessa nova "tradução", escreve Bandeira, "eu queria mesmo brincar falando cafajeste, e a coisa foi apresentada como ‘tradução para caçanje’ ". Caçanje, aqui, conforme o dicionário, tem o sentido de "português errado, mal falado". É, de fato, a linguagem das ruas: mistura você com tu, dispensa pontuação, mas tem o sabor de fala legítima e verdadeira. O próprio Bandeira, no parágrafo seguinte, classifica o texto como poema-piada.
 

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A última das "traduções" de Bandeira mostradas aqui é uma versão para o poema romântico “O Adeus de Teresa”, do poeta baiano Antônio de Castro Alves (1847-1871). No original, o autor descreve três momentos de um caso de amor com a moça do título. Na "tradução para moderno", Bandeira também trabalha com três momentos. Mas a visão, em vez de apaixonada, passeia pelo absurdo surrealista. Enquanto a Teresa original era pálida e oferecia "prazeres divinais", a modernista, à primeira vista, "tinha pernas estúpidas" e uma cara que "parecia uma perna".


Na segunda vez, permanece a visão desconjuntada da musa. E na última, o sujeito lírico não enxerga mais nada e sofre uma espécie de cataclismo sensorial. A solução se dá com uma paródia (mais uma!) bíblica. Como descreve o Gênesis, o espírito de Deus "voltou a se mover sobre a face das águas". Pode-se pensar (é uma hipótese) que o narrador conheceu biblicamente a desconcertante — e, tanto quanto a de Castro Alves, deslumbrante — Teresa e experimentou toda essa perturbação cósmica.


Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado


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Além deste boletim, Manuel Bandeira já apareceu no poesia.net nas seguintes edições:

 

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"Traduções" modernistas

Manuel Bandeira


 
 
Vicente do Rego Monteiro - Natureza morta, 1969
Vicente do Rego Monteiro, pernambucano, Natureza morta (1969)



1. Manuel Maria Barbosa du Bocage


A ANÁLIA


Se é doce no recente, ameno estio
Ver toucar-se a manhã de etéreas flores,
E, lambendo as areias os verdores,
Mole e queixoso deslizar-se o rio;

Se é doce no inocente desafio
Ouvirem-se os voláteis amadores,
Seus versos modulando e seus ardores
De entre os aromas de pomar sombrio;

Se é doce mares, céus, ver anilados
Pela quadra gentil, de Amor querida,
Que esperta os corações, floreia os prados,

Mais doce é ver-te de meus ais vencida,
Dar-me em teus brandos olhos desmaiados
Morte, morte de amor, melhor que a vida!


         Manuel Maria Barbosa du Bocage




[DOÇURA DE, NO ESTIO RECENTE]

Doçura de, no estio recente,
Ver a manhã toucar-se de flores,
E o rio
          mole
                  queixoso
Deslizar, lambendo areias e verduras;
Doçura de ouvir as aves
Em desafio de amores
                      cantos
                      risadas
Na ramagem do pomar sombrio.


         Manuel Bandeira



Vicente do Rego Monteiro - Gato e tartaruga - 1925
Vicente do Rego Monteiro, Gato e tartaruga (1925)



2. Joaquim Manuel de Macedo



[MULHER, IRMÃ, ESCUTA-ME]

Mulher, Irmã, escuta-me: não ames.
Quando a teus pés um homem terno e curvo
Jurar amor, chorar pranto de sangue,
Não creias, não, mulher: ele te engana!
As lágrimas são galas da mentira
E o juramento manto da perfídia.

         Joaquim Manuel de Macedo





[TERESA, SE ALGUM SUJEITO]

Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você
E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde
Se ele chorar
Se ele se ajoelhar
Se ele se rasgar todo
Não acredita não Teresa
É lágrima de cinema
É tapeação
Mentira
CAI FORA.

         Manuel Bandeira




Vicente do Rego Monteiro - Adão e Eva no Paraíso 1959
Vicente do Rego Monteiro, Adão e Eva no Paraíso (1959)




3. Castro Alves

O "ADEUS" DE TERESA

A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus...
E amamos juntos e depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala...

E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite... entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos... sec'los de delírio
Prazeres divinais... gozos do Empíreo...
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse — "Voltarei! descansa!... "
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!...
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei! Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!".


         Castro Alves, in Espumas Flutuantes (1870)


TERESA

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.


         Manuel Bandeira



Vicente do Rego Monteiro - Artesão
Vicente do Rego Monteiro, Artesão



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Carlos Machado, 2015



Manuel Bandeira
* "Traduções" de Bocage e Joaquim Manuel de Macedo
  In Itinerário de Pasárgada
  Nova Fronteira/INL, Rio de Janeiro/Brasília, 3a. ed., 1984
* "Tradução" de Castro Alves
  de Libertinagem (1930)
  In Estrela da Vida Inteira  Poesias Reunidas
 
José Olympio, 6a. ed., Rio de Janeiro, 1976


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* Marly de Oliveira, "Retrato", in Cerco da Primavera (1958)

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- Imagens: obras do pintor pernambucano Vicente do Rego Monteiro (1899-1970)