«O tempo / é escritura de estilhaços. A paz
é um pássaro sem asas.» (Myriam
Fraga) *
Hermann Hesse
Amigas e amigos,
Nos anos 60, o nome do escritor suíço-alemão Hermann Hesse
frequentava as listas mundiais de best sellers, graças ao romance O Lobo da
Estepe (Der Steppenwolf), que se tornou leitura obrigatória nos meios da
chamada contracultura.
Nascido em 1877, na Alemanha, Hermann Karl Hesse
naturalizou-se suíço em 1923. Filho de missionários protestantes, decidiu não
seguir a carreira de pastor, como queriam seus pais. Autodidata, tomou contato
com a espiritualidade oriental durante uma viagem à Índia. Em 1912, mudou-se
para a Suíça, onde trabalhou como livreiro e operário.
A eclosão da
Primeira Guerra Mundial provocou uma crise emocional em Hesse que, com isso,
aproximou-se da psicanálise, por meio de um discípulo de Carl Gustav Jung.
Orientalismo e psicanálise seriam duas influências centrais em sua obra.
A partir do final dos anos 30, com o domínio nazista na Alemanha, os jornais
deixaram de publicar textos de Hesse no país, e sua obra acabou banida. Em 1946,
Hermann Hesse recebeu os prêmios Goethe, alemão, e o Nobel. O escritor faleceu
em 1962, aos 85 anos.
•o•
Além de O Lobo da Estepe, outros romances
de Hesse, como Demian e Sidarta, também experimentaram trânsito intenso nos anos 60
e 70. Mas pouca gente sabe que o autor também escreveu poesia. Tenho aqui nas
mãos o volume Andares – Antologia Poética, publicado em 1982, com
tradução e prólogo do poeta capixaba Geir Campos (1924-1999).
Como diz o
tradutor, tanto na prosa como na poesia, Hesse “mostrou-se
permanentemente preocupado com a busca de um sentido para a vida, levando-o essa
busca a preferir a solidão, longe das aglomerações urbanas que lhe eram penosas
de suportar”.
Ao lado, uma pequena seleção de poemas de Hesse. Ao contrário do
que sempre faço, desta vez as traduções não vêm acompanhadas dos originais, uma
vez que a antologia Andares, minha fonte, é monolíngue.
•o•
O clima dominante nos
poemas de Hesse é o da melancolia e de certa contemplação proustiana do tempo
perdido. Em “Comoção”, por exemplo, ele diz: “penso na pátria — e sei que não a
encontro mais”.
Em “Passeio Noturno”, o sujeito lírico dialoga com um
rio. Sentindo-se estrangeiro, o indivíduo se vê como igual ao curso d’água:
ambos peregrinam sem saber aonde vão. Poderíamos dizer que o rio,
inexoravelmente, vai dar no mar. Quanto a seu companheiro humano, nunca se sabe.
Em “À Melancolia”, o narrador declara que, depois de todas as suas
longas viagens, ele retorna exatamente para a melancolia. Mais: revela-se um
filho ingrato dela. É interessante ressaltar que, obviamente, narrador e poeta não
são a mesma pessoa. Apesar dessa inclinação para a solidão e o recolhimento,
Hesse casou-se
várias vezes.
Assim como se observa esse diálogo com o rio, o orientalista
em Hesse o conduz repetidamente para observar os movimentos naturais das
árvores, dos animais, da sucessão das noites e dias. No poema “Lobo da
Estepe”, quem fala é um lobo. Um canídeo com raciocínio humano, vagando na neve
e mostrando sua condição de natural predador: “Com as gazelas sou tão delicado,
/ ah, se uma aparecesse! / Tomá-la-ia nas garras, nos dentes: não há coisa mais
linda”.
“A Morte a Pescar de Anzol” mostra as artimanhas da morte para
fisgar suas vítimas. Não há saída para os “peixes” capturados. “Borboleta azul”
é uma canção de lirismo triste e musical. Por fim, “Setembro” celebra o término
da estação de estio no hemisfério norte: “O verão se arrepia / em silêncio
diante do seu fim”.
•o•
Algumas curiosidades sobre a repercussão da
obra de Hermann Hesse.
* O romance O Lobo da Estepe foi traduzido pela
primeira vez no Brasil em 1935, por Augusto de Souza. Nos anos 60 e 70, Hesse
foi um dos autores estrangeiros mais lidos no país.
* O Lobo da Estepe tornou-se tão conhecido
entre os jovens dos anos 60 que até serviu para batizar uma banda de hard
rock americana, a Steppenwolf. O grupo marcou época com o sucesso “Born to be
Wild”, canção que está na trilha sonora do filme Easy Rider (1969), dirigido por
Dennis Hopper e estrelado pelo próprio Hopper, Peter Fonda e o então estreante
Jack Nicholson. A canção carrega outra curiosidade: nela, usa-se pela primeira
vez a expressão heavy metal, que viria depois a batizar um dos estilos de rock
pesado.
* Uma das razões para
o sucesso de Hesse entre os jovens dos anos 60 e 70 era seu orientalismo
místico. O guitarrista mexicano Carlos Santana diz que o título de seu segundo
disco, Abraxas (1970), vem de um trecho do romance Demian. Nesse livro, Abraxas
é uma divindade de características humanas.
O poeta baiano Ruy Espinheira Filho lança em São Paulo seu novo
livro de inéditos, Noite Alta e Outros Poemas, publicado pela Editora Patuá.
Quando: Quinta-feira, 23/07/2015, a
partir das 19h
Onde: Bar Canto
Madalena Rua Medeiros de Albuquerque, 471 Vila Madalena
São Paulo - SP
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O melancólico lobo da estepe
Hermann Hesse
Albert Anker (1831-1910), suíço,
O escolar
PASSEIO NOTURNO
Já a noite cai, descansa a rua. Em sonolenta pulsação o rio vai,
com suas águas indolentes, rumo à calada escuridão.
Resmunga ele,
no seu leito fundo, tão contrafeito, pesado e rouco, como se só
quisesse repousar; igual a ele, fatigado eu vou.
Atravessar a
noite e terra estranha é um penoso arrastar-se de um e outro: silente
e imóvel peregrinação a dois, sem que nenhum saiba para onde.
Albert Anker, Duas crianças com uma
lousa
À MELANCOLIA
No vinho ou entre amigos, de ti eu fugia, pois do teu olho escuro eu
sentia pavor: ingrato filho teu, assim eu te esquecia ao toque do
alaúde e nos braços do amor.
Com toda a discrição, no entanto, me
seguias: sempre estavas no vinho que eu tonto bebia e no mormaço das
minhas noites de amor e no desdém com que eu a ti me referia.
Agora me refrescas os membros cansados e tens minha cabeça em teu colo
macio, para o regresso das minhas longas viagens — pois a ti me
traziam todos os meus desvios.
Albert Anker, Chapeuzinho vermelho
COMOÇÃO
Turvou-se de repente o vinho no meu
copo, fatigado sentei-me e pus-me a
olhar o chão: senti branco o
cabelo e vago o coração. Riam
alto os amigos, bêbados, no salão.
Veio à janela a amiga de minha
juventude: a Lua, a dilatar o
saguão com seu brilho,
reluzindo em meu copo e nas lágrimas minhas.
Cantavam e berravam, bêbados, meus amigos.
Hora após hora eu ando agora, e em
minhas faces em fogo sinto os
ventos de um distante verão;
vocalizo canções de quando era rapaz,
penso na pátria — e sei que não a encontro mais.
Albert Anker, A creche (1890)
LOBO DA ESTEPE
Lobo da estepe, vou eu trotando,
trotando. O mundo cobre-se todo de neve. De uma bétula, sai voando um
corvo; mas em nenhum lugar se vê uma lebre, não se vê uma gazela.
Com as gazelas sou tão delicado, ah, se uma aparecesse! Tomá-la-ia nas
garras, nos dentes: não há coisa mais linda. Aos mansos, mostro o meu
bom coração: em seus tenros pernis enterraria suavemente os dentes, e
o sangue claro eu iria sorvendo até mais não poder, para ficar depois a
noite inteira uivando em solidão. Uma lebre já me contentaria: mornas
carnes de gosto doce à noite. — Mas será que de mim se esconde tudo
que torna a vida um pouco mais bonita? Em minha cauda o pelo já branqueia
e eu já não tenho a vista tão certeira; faz anos que morreu-me a
companheira. Agora vou eu trotando e sonhando com gazelas, vou eu
trotando e sonhando com lebres, ouvindo o vento a zunir na noite de
inverno; engulo neve, a ver se a goela me acalma, e vou seguindo com o
diabo na alma.
Albert Anker, Garota descascando
batatas
A MORTE A PESCAR DE ANZOL
Senta-se a Morte e vai pescando-nos da
vida com sua linha torpe, invisível e fina. Não há truque ou esforço
que nos valha mais: ela tem paciência e uma isca que fascina.
Quem
cai no seu anzol, pode cavar na areia ou no lodo, ou tentar qualquer
manha mesquinha: senta-se a Morte nele, e não mais lá na beira. Está
perdido, mesmo que arrebente a linha.
Pode, numa escapada, no fundo
revolto longo tempo esconder-se ainda com medo dela: para finar-se,
está completamente solto. Nada tem gosto mais: o anzol pegou na goela.
Albert Anker, Garota alimentando galinhas
BORBOLETA AZUL
Pequenina borboleta azul no vento
esvoaça: um tremor de madrepérola flameja, reluz e passa. Num
átimo, num piscar de olhos, eu vi assim flamejante e reluzente a
sorte passar por mim.
Trecho inicial do filme Easy Rider (Sem Destino), de 1969, com a
canção "Born to be wild", da banda Steppenwolf — nome do romance de
Hesse. (Clique na imagem para ver o clipe)
SETEMBRO
Entristece o jardim. Fria nas flores a chuva cai. O verão se arrepia
em silêncio diante do seu fim.
Pétala a pétala goteja em ouro do
alto pé de acácia. O verão ri abatido e perplexo no sonho do jardim em
agonia.
A prolongar-se ainda junto às rosas, ele espera, de pé,
pelo repouso, e os grandes olhos fatigados vai entrecerrando aos
poucos.
Hermann Hesse
* In Andares - Antologia Poética
Tradução de Geir Campos Nova Fronteira, 2a. ed., Rio
de Janeiro, 1982 _____________
* Myriam Fraga, "Olho de vidro", in O Risco na Pele (1979)
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- Imagens: pinturas de
Albert
Anker (1831-1910), suíço