Número 336 - Ano 13

São Paulo, quarta-feira, 22 de julho de 2015

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«O tempo / é escritura de estilhaços. A paz é um pássaro sem asas.» (Myriam Fraga) *

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Hermann Hesse (1877-1962)
Hermann Hesse


Amigas e amigos,


Nos anos 60, o nome do escritor suíço-alemão Hermann Hesse frequentava as listas mundiais de best sellers, graças ao romance O Lobo da Estepe (Der Steppenwolf), que se tornou leitura obrigatória nos meios da chamada contracultura.


Nascido em 1877, na Alemanha, Hermann Karl Hesse naturalizou-se suíço em 1923. Filho de missionários protestantes, decidiu não seguir a carreira de pastor, como queriam seus pais. Autodidata, tomou contato com a espiritualidade oriental durante uma viagem à Índia. Em 1912, mudou-se para a Suíça, onde trabalhou como livreiro e operário.


A eclosão da Primeira Guerra Mundial provocou uma crise emocional em Hesse que, com isso, aproximou-se da psicanálise, por meio de um discípulo de Carl Gustav Jung. Orientalismo e psicanálise seriam duas influências centrais em sua obra.


A partir do final dos anos 30, com o domínio nazista na Alemanha, os jornais deixaram de publicar textos de Hesse no país, e sua obra acabou banida. Em 1946, Hermann Hesse recebeu os prêmios Goethe, alemão, e o Nobel. O escritor faleceu em 1962, aos 85 anos.

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Além de O Lobo da Estepe, outros romances de Hesse, como Demian e Sidarta, também experimentaram trânsito intenso nos anos 60 e 70. Mas pouca gente sabe que o autor também escreveu poesia. Tenho aqui nas mãos o volume Andares – Antologia Poética, publicado em 1982, com tradução e prólogo do poeta capixaba Geir Campos (1924-1999).


Como diz o tradutor, tanto na prosa como na poesia, Hesse “mostrou-se permanentemente preocupado com a busca de um sentido para a vida, levando-o essa busca a preferir a solidão, longe das aglomerações urbanas que lhe eram penosas de suportar”.


Ao lado, uma pequena seleção de poemas de Hesse. Ao contrário do que sempre faço, desta vez as traduções não vêm acompanhadas dos originais, uma vez que a antologia Andares, minha fonte, é monolíngue.

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O clima dominante nos poemas de Hesse é o da melancolia e de certa contemplação proustiana do tempo perdido. Em “Comoção”, por exemplo, ele diz: “penso na pátria — e sei que não a encontro mais”.


Em “Passeio Noturno”, o sujeito lírico dialoga com um rio. Sentindo-se estrangeiro, o indivíduo se vê como igual ao curso d’água: ambos peregrinam sem saber aonde vão. Poderíamos dizer que o rio, inexoravelmente, vai dar no mar. Quanto a seu companheiro humano, nunca se sabe.


Em “À Melancolia”, o narrador declara que, depois de todas as suas longas viagens, ele retorna exatamente para a melancolia. Mais: revela-se um filho ingrato dela. É interessante ressaltar que, obviamente, narrador e poeta não são a mesma pessoa. Apesar dessa inclinação para a solidão e o recolhimento, Hesse casou-se várias vezes.


Assim como se observa esse diálogo com o rio, o orientalista em Hesse o conduz repetidamente para observar os movimentos naturais das árvores, dos animais, da sucessão das noites e dias. No poema “Lobo da Estepe”, quem fala é um lobo. Um canídeo com raciocínio humano, vagando na neve e mostrando sua condição de natural predador: “Com as gazelas sou tão delicado, / ah, se uma aparecesse! / Tomá-la-ia nas garras, nos dentes: não há coisa mais linda”.


“A Morte a Pescar de Anzol” mostra as artimanhas da morte para fisgar suas vítimas. Não há saída para os “peixes” capturados. “Borboleta azul” é uma canção de lirismo triste e musical. Por fim, “Setembro” celebra o término da estação de estio no hemisfério norte: “O verão se arrepia / em silêncio diante do seu fim”.

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Algumas curiosidades sobre a repercussão da obra de Hermann Hesse.


* O romance O Lobo da Estepe foi traduzido pela primeira vez no Brasil em 1935, por Augusto de Souza. Nos anos 60 e 70, Hesse foi um dos autores estrangeiros mais lidos no país.


* O Lobo da Estepe tornou-se tão conhecido entre os jovens dos anos 60 que até serviu para batizar uma banda de hard rock americana, a Steppenwolf. O grupo marcou época com o sucesso “Born to be Wild”, canção que está na trilha sonora do filme Easy Rider (1969), dirigido por Dennis Hopper e estrelado pelo próprio Hopper, Peter Fonda e o então estreante Jack Nicholson. A canção carrega outra curiosidade: nela, usa-se pela primeira vez a expressão heavy metal, que viria depois a batizar um dos estilos de rock pesado.


* Uma das razões para o sucesso de Hesse entre os jovens dos anos 60 e 70 era seu orientalismo místico. O guitarrista mexicano Carlos Santana diz que o título de seu segundo disco, Abraxas (1970), vem de um trecho do romance Demian. Nesse livro, Abraxas é uma divindade de características humanas.



Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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LANÇAMENTO


Noite Alta e Outros Poemas
• Ruy Espinheira Filho



Ruy Espinheira - Noite Alta



O poeta baiano Ruy Espinheira Filho lança em São Paulo seu novo livro de inéditos, Noite Alta e Outros Poemas, publicado pela Editora Patuá.

Quando:
Quinta-feira, 23/07/2015,
a partir das 19h

Onde:
Bar Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471
Vila Madalena
São Paulo - SP

 

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O melancólico lobo da estepe

Hermann Hesse


 
 
Albert Anker - O escolar
Albert Anker (1831-1910), suíço, O escolar




PASSEIO NOTURNO

Já a noite cai, descansa a rua.
Em sonolenta pulsação
o rio vai, com suas águas indolentes,
rumo à calada escuridão.

Resmunga ele, no seu leito fundo,
tão contrafeito, pesado e rouco,
como se só quisesse repousar;
igual a ele, fatigado eu vou.

Atravessar a noite e terra estranha
é um penoso arrastar-se de um e outro:
silente e imóvel peregrinação
a dois, sem que nenhum saiba para onde.





Albert Anker - Duas crianças com uma lousa
Albert Anker, Duas crianças com uma lousa



À MELANCOLIA

No vinho ou entre amigos, de ti eu fugia,
pois do teu olho escuro eu sentia pavor:
ingrato filho teu, assim eu te esquecia
ao toque do alaúde e nos braços do amor.

Com toda a discrição, no entanto, me seguias:
sempre estavas no vinho que eu tonto bebia
e no mormaço das minhas noites de amor
e no desdém com que eu a ti me referia.

Agora me refrescas os membros cansados
e tens minha cabeça em teu colo macio,
para o regresso das minhas longas viagens
— pois a ti me traziam todos os meus desvios.




Albert Anker - Chapeuzinho vermelho
Albert Anker, Chapeuzinho vermelho



COMOÇÃO

Turvou-se de repente o vinho no meu copo,
fatigado sentei-me e pus-me a olhar o chão:

senti branco o cabelo e vago o coração.
Riam alto os amigos, bêbados, no salão.

Veio à janela a amiga de minha juventude:
a Lua, a dilatar o saguão com seu brilho,
reluzindo em meu copo e nas lágrimas minhas.
Cantavam e berravam, bêbados, meus amigos.

Hora após hora eu ando agora, e em minhas faces
em fogo sinto os ventos de um distante verão;
vocalizo canções de quando era rapaz,
penso na pátria — e sei que não a encontro mais
.




Albert Anker - A creche
Albert Anker, A creche (1890)



LOBO DA ESTEPE


Lobo da estepe, vou eu trotando, trotando.
O mundo cobre-se todo de neve.
De uma bétula, sai voando um corvo;
mas em nenhum lugar se vê uma lebre,
não se vê uma gazela.
Com as gazelas sou tão delicado,
ah, se uma aparecesse!
Tomá-la-ia nas garras, nos dentes:
não há coisa mais linda.
Aos mansos, mostro o meu bom coração:
em seus tenros pernis enterraria suavemente os dentes,
e o sangue claro eu iria sorvendo até mais não poder,
para ficar depois a noite inteira uivando em solidão.
Uma lebre já me contentaria:
mornas carnes de gosto doce à noite.
— Mas será que de mim se esconde tudo
que torna a vida um pouco mais bonita?
Em minha cauda o pelo já branqueia
e eu já não tenho a vista tão certeira;
faz anos que morreu-me a companheira.
Agora vou eu trotando e sonhando com gazelas,
vou eu trotando e sonhando com lebres,
ouvindo o vento a zunir na noite de inverno;
engulo neve, a ver se a goela me acalma,
e vou seguindo com o diabo na alma.




Albert Anker - Garota descascando batas
Albert Anker, Garota descascando batatas




A MORTE A PESCAR DE ANZOL

Senta-se a Morte e vai pescando-nos da vida
com sua linha torpe, invisível e fina.
Não há truque ou esforço que nos valha mais:
ela tem paciência e uma isca que fascina.

Quem cai no seu anzol, pode cavar na areia
ou no lodo, ou tentar qualquer manha mesquinha:
senta-se a Morte nele, e não mais lá na beira.
Está perdido, mesmo que arrebente a linha.

Pode, numa escapada, no fundo revolto
longo tempo esconder-se ainda com medo dela:
para finar-se, está completamente solto.
Nada tem gosto mais: o anzol pegou na goela.






Albert Anker - Garota alimentando galinhas
Albert Anker, Garota alimentando galinhas



BORBOLETA AZUL

Pequenina borboleta
azul no vento esvoaça:
um tremor de madrepérola
flameja, reluz e passa.
Num átimo, num piscar
de olhos, eu vi assim
flamejante e reluzente
a sorte passar por mim.




Trecho inicial do filme Easy Rider (Sem Destino), de 1969, com a canção
"Born to be wild", da banda Steppenwolf — nome do romance de Hesse.
(Clique na imagem para ver o clipe)




SETEMBRO

Entristece o jardim.
Fria nas flores a chuva cai.
O verão se arrepia
em silêncio diante do seu fim.

Pétala a pétala goteja em ouro
do alto pé de acácia.
O verão ri abatido e perplexo
no sonho do jardim em agonia.

A prolongar-se ainda junto às rosas,
ele espera, de pé, pelo repouso,
e os grandes olhos fatigados vai
entrecerrando aos poucos.



poesia.net www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015



Hermann Hesse
* In Andares - Antologia Poética
  Tradução de Geir Campos
  Nova Fronteira, 2a. ed., Rio de Janeiro, 1982
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* Myriam Fraga, "Olho de vidro", in O Risco na Pele (1979)
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- Imagens: pinturas de Albert Anker (1831-1910), suíço