Número 343 - Ano 13 |
São Paulo, quarta-feira, 11 de
novembro de 2015 |
Ruy Proença
Amigas e amigos,
O poeta e tradutor paulistano Ruy Proença já esteve várias vezes aqui no poesia.net. Duas delas foram a
edição n. 43, de outubro/2003 e o
boletim n. 267 (junho de 2009), quando ele aparece em parceria com mais três autores numa página temática sobre poesia para crianças.
Nascido em 1957, Ruy Proença participou de diversas antologias de poesia publicadas aqui e no exterior. Sua obra-solo consiste em:
Pequenos Séculos (Klaxon, 1985); A Lua Investirá com Seus Chifres (Giordano, 1996);
Como um Dia Come o Outro (Nankin, 1999), Visão do Térreo (Editora 34, 2007); e os poemas infantojuvenis
Coisas Daqui (2007).
Como tradutor, sempre do francês, Proença publicou Boris Vian: Poemas e Canções (Nankin, 2001);
Isto é um Poema que Cura os Peixes, de Jean-Pierre Siméon (SM, 2007); e
Histórias Verídicas, de Paol Keineg (Dobra, 2014).
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Agora, Ruy Proença retorna ao boletim com poemas de seu livro recém-lançado,
Caçambas (Editora 34, 2015). O volume divide-se em duas seções. A primeira, Rádio de Galena, enfeixa poemas de cunho mais intimista, memórias, observações pessoais. Na outra, Singular Coletivo, o poeta encarna um
flâneur baudelairiano dos dias atuais. Anda pelas ruas da metrópole, “fotografa” pessoas, sofre com elas o desconforto dos trens superlotados na hora de ir ou vir do trabalho. No mesmo compasso, lê os jornais e fica indignado com as notícias. Para a miniantologia deste boletim selecionei apenas poemas dessa segunda parte de
Caçambas.
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Vamos aos textos. O poema “Solidários” mostra a experiência de viajar num trem urbano em São Paulo. O
passageiro fica “sem saber / se ainda tenho / braço perna // se os pés / tocam / o chão”. Ensanduichado, ele não tem outra opção, a não ser olhar para o teto.
O poema seguinte, “Saindo do Trem”, funciona muito bem como uma continuação do anterior, embora nele o olhar do viajante,
já fora da estação, se concentre numa jovem descrita como segura, autoconfiante, autocentrada. O grande clímax do poema ocorre no momento em que a correia das sandálias dessa ocasional deusa juvenil se parte e destrói assim seu ar “meio hippie meio yuppie” de superioridade.
Neste poema, Ruy Proença põe em prática uma sensibilidade que vem refinando desde livros anteriores. Trata-se do poder de captar a fagulha poética num fato corriqueiro — real ou inventado, não importa — observado na rua. Poemas assim conferem à sua poesia um incontestável carimbo de atualidade.
“Mobilidade” é outro poema afinado no mesmo diapasão. Agora, o
indivíduo vai ao trabalho pedalando uma bicicleta. Satisfeito com a sensação de liberdade na ciclovia à margem do rio (Pinheiros, certamente), ele cumprimenta bichos e pessoas pelo caminho. Nesse cumprimento, revelam-se as mazelas ecológicas. Há garças e quero-queros, mas também há detritos como o “pássaro-colchão”, o “pássaro-garrafa”, o “paturi-tampa-de-privada”.
Para o ciclista, a viagem reserva desprazeres não apenas ecovisuais. Ele mesmo tem de respirar “deuses” estranhos, como amoníaco, ureia, enxofre. E depois de pontes, passarelas, construções, nosso viandante sobre duas rodas chega ao trabalho e... é premiado com uma heroica dor de cabeça, para começar o dia no escritório.
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O próximo personagem é um motoboy, esse novo representante da classe trabalhadora metropolitana brasileira numa economia marcada pelos serviços. Para quem não mora numa cidade como São Paulo, é importante esclarecer um pouco sobre o cotidiano desses trabalhadores. Sucessores dos já desaparecidos contínuos e dos office boys, os motoboys têm vínculos precários com as agências para as quais prestam serviços.
Em geral, são donos das motocicletas com que trabalham e em boa parte não são empregados das agências. Ganham por entrega. Quanto mais documentos fizerem chegar ao destino, melhores os seus ganhos. Assim, é comum ver motoboys correndo riscos, passando perigosamente à frente de carros, ônibus e caminhões para fazer o tempo render. Portanto, não é exagero quando o indivíduo do poema se oferece para “hora extra / trabalho
sujo / carrega piano / dá a cara / para bater”. É a necessidade de sobrevivência na selva das cidades e a sempre presente exploração do mais fraco.
Assim como a saga do motoboy, “A Noite na Coleira” é outro poema que nos lança na cara a sufocante convivência de hoje nas grandes cidades brasileiras. O poema, sem dúvida, se refere ao episódio do adolescente negro carioca que, flagrado cometendo furto, foi amarrado a um poste pelo pescoço com uma tranca de bicicleta. Cena hedionda que, infelizmente, não ficou isolada ao Rio de Janeiro. Em meses recentes, já houve casos similares em outras cidades. E em mais de um lugar, o poste de iluminação elétrica foi transformado em pelourinho — como bem lembra o poema. “Auriverde pendão de minha terra”, quando será que afinal desembarcaremos no século XXI?
Os dois últimos poemas da seleção continuam o périplo pelas mazelas urbanas. Em “Relógio no Aquário”, a pessoa que vai resolver um problema num cartório fica entediada acompanhando o movimento das moscas, enquanto espera sua vez de ser atendido. O aquário, não há dúvida, são as divisórias de vidro.
Já em “Guinchos” aparece o poema que justifica o título do livro. São os caminhões-guincho que vêm à noite, entre rangidos metálicos, transportar as caçambas de detritos que ficam nas ruas à frente prédios em construção ou reforma.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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LANÇAMENTOS
Só uma Estranha Luz como Pensamento (romance)
• André Caramuru Aubert
O poeta e ficcionista André Caramuru Aubert lança em São Paulo
seu quarto romance, Só uma Estranha Luz como Pensamento, pela Editora Descaminhos.
Quando:
Terça-feira, 24/11/2015,
às 19 horas
Onde:
Bar Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471
Vila Madalena
São Paulo, SP
Coração de Ontem (poesia)
• Rita Moreira
A poeta Rita Moreira autografa sua nova coletânea de
poemas, Coração de Ontem, publicado pela RG Editores.
Quando:
Quarta-feira, 02/12/2015,
às 19 horas
Onde:
Blooks Livraria
Shopping Frei Caneca, 3º piso
Rua Frei Caneca, 569
São Paulo, SP
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Perambulações paulistanas
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Ruy Proença
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Philip Barlow, sul-africano, Jingumae 1
SOLIDÁRIOS
entro no trem
nadando
em mar
de carne
(carne: matéria
resistente
escorada
em barras
de ossos)
entro
sob pressão
amalgamando-me
tecido contra
tecido
à massa
compacta
sem saber
se ainda tenho
braço perna
se os pés
tocam
o chão
sem saber
se ainda sou eu
os olhos voltados
para o teto
da composição
Philip Barlow, Eternal II
SAINDO DO TREM
jovem
tão segura de si
vai
o passo apertado
solipsista
meio hippie meio yuppie:
vestido mídi
sandálias de dedo
rasteiras
trançado romano
no tornozelo
veloz
atravessa faróis
ninguém a alcança
cada vez menos à vista
então
o imprevisto:
a tira do dedo
arrebenta
a altivez
desengonça
sola semissolta
a roda do pé
gira em falso —
excêntrica
Philip Barlow, Glass in the sky
MOBILIDADE
pedalando
na ciclovia
à margem do rio
aprecio
a natureza
em todo o seu
esplendor
mentalmente
tiro o chapéu:
saúdo
cada ser
no caminho
bom dia,
capivara
bom dia,
vocês aí
tristes
parados como eu ontem
na estação de trem
olá,
aves aquáticas
olá, garça
olá, quero-quero
olá, pássaro-colchão
olá, pássaro-garrafa
olá, gaiola-sem-pássaro
olá, paturi-tampa-de-privada
olá, pássaro-geladeira
abro os pulmões
e inspiro
o deus amoníaco
o deus ureia
o deus enxofre
e expiro expiro
um a um
meus sonhos de baunilha
recém-saídos
de sob o lençol
tenho fé
na vida
ave, máquinas
ave, operários
salve, construção civil —
mais pontes
mais passarelas
entre este
e o outro lado
da vida
evoé, chuva fina
evoé, bailarina
evoé, íngreme escadaria
(agora
carrego eu
a bicicleta)
evoé, escritório
evoé, relatórios
evoé, fim de linha
evoé, aspirina
Philip Barlow, Light space
MOTOBOY
jovem
saudável
com iniciativa
prestativo
disposto
expedito
bem-humorado
veículo próprio
procura
superior
para lhe
dar ordens
ambíguas
o reprimir
explorar
humilhar
castigar
jovem
e necessitado
(a cidade
não é obstáculo)
pau pra toda obra
faz
tudo
hora extra
trabalho sujo
carrega piano
dá a cara
pra bater
Philip Barlow, Leaving town
A NOITE NA COLEIRA
sou
da cor do asfalto/
da noite
noite/ antiquíssima/
terei quinze?
não sei falar —
não sei pensar?
obscuro
cuspo
eu
(posso dizer eu?)
não tenho pai
não sei de mãe/ avó não quer
não tenho teto/ certidão/ cordão
eu/ nu
preso
ao poste
pelo pescoço
uma tranca
de bicicleta/ a coleira
de ferro
doem
estrelas/ vergonha
tatuadas
na carne
para mim
vida e sol
se põem
na contramão
sou
a própria noite
no pelourinho
Philip Barlow, Fox Street JHB
RELÓGIO NO AQUÁRIO
quero passar a vida
num cartório —
este
por exemplo
aqui me permitem
não fazer
o que importa
e mais
acompanhar a mosca
que se desloca
do lustre
para a fórmica do balcão
do balcão
para um ponto preciso
na parede
as pessoas têm muita pressa
são ansiosas
não despregam o olho
do painel eletrônico —
anseiam pelo alarme
com seu número
a vida passa
muito rápido
não aqui
neste aquário
seco
Philip Barlow, Dreaming of
GUINCHOS
chegam
de madrugada
lançam pesadas correntes
acoplam
então
retesam
lentamente
fazem ranger a noite
como uma avalanche de ossos
desmembrando-se
depois
aos clangues e bangues
içam a caçamba:
concreto
trocado em miúdos
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2015
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Ruy Proença
In
Caçambas Editora 34, São Paulo, 2015 _____________
* Carlos Drummond de Andrade, "Aurora", in Brejo das Almas (1934)
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- Imagens: pinturas do artista
contemporâneo sul-africano
Philip Barlow
(1968). Barlow privilegia a paisagem urbana e, nas primeiras
telas acima, trabalha com figuras desfocadas, cuja visualização se
torna melhor quando se toma distância. As duas últimas são
retratos de transeuntes.
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