Número 345 - Ano 13 |
São Paulo, quarta-feira, 9 de
dezembro de 2015 |
Carlos Drummond de Andrade
Amigas e amigos,
Neste 12 de dezembro, o poesia.net completa 13 anos. Com satisfação, constato que este boletim agora
integra uma operação tripartite: segue para os
assinantes por e-mail, fica à disposição pública no site
Alguma Poesia e também está
representado numa página do
Facebook. Ergamos um brinde virtual aos 13 anos do
poesia.net. Tim-tim!
MAIS
UM BOLETIM ESPECIAL
Desde quando este boletim ficou bem crescidinho — passado o maior perigo de mortalidade infantil —, comecei a comemorar seu aniversário, organizando edições especiais. Desta vez não será diferente. Mas confesso que até os últimos dias de novembro eu não tinha em mente um bom tema para
este boletim especial. Afinal, encontrei-o: o poeta Carlos Drummond de Andrade e sua insistente preocupação com o meio ambiente e os estragos da mineração.
A inspiração veio da pior tragédia brasileira deste ano — o dilúvio de lama tóxica causado pelo rompimento de duas barragens de rejeitos de mineração de ferro em Bento Rodrigues, no município de Mariana, MG. A barragem é da responsabilidade da Samarco, empresa que pertence, meio a meio, à Vale S.A. (ex-Companhia Vale do Rio Doce) e à anglo-australiana BHP Billiton.
O desastre ambiental, que lançou 62 bilhões de litros de rejeitos no Rio Doce, exterminou grande parte do ecossistema do rio, com estragos que se estendem até o ambiente marinho, no litoral do Espírito Santo. O lixo de mineração compõe-se de terra, areia, água e resíduos de ferro, alumínio e manganês. Conforme especialistas, esse material funciona como esponja, absorvendo outros poluentes para dentro do rio.
Lamentavelmente, não há outra expressão: assassinaram o rio Doce.
•o•
DRUMMOND E A MINERAÇÃO
Em criança, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) via em Itabira-MG, sua terra natal, o pico do Cauê, que era um cartão postal e mirante natural da cidade. Só que essa região guardava uma das maiores jazidas de minério de ferro do mundo. O cartão se tornou pó, explorado por ingleses a partir de 1929 e depois pela Cia. Vale do Rio Doce, desde 1942. Hoje, o pico do Cauê virou o buraco do Cauê. Estima-se que em breve as reservas estarão exauridas e o lugar será mais um depósito de rejeitos.
Ao longo da vida, Drummond escreveu vários poemas que mostram sua contrariedade diante da destruição produzida pela mineração e também sua oposição às intervenções drásticas feitas em monumentos naturais, como foi o caso da submersão das cataratas
de Sete Quedas pela represa de Itaipu (veja aqui o poema “Adeus a Sete Quedas”, de 1982).
Ter nascido numa região historicamente rica em ouro, ferro e manganês deu a Drummond uma sensibilidade especial para esse tema. Tanto que um de seus mais sofisticados poemas sobre o relacionamento amoroso chama-se “Mineração do Outro” (do livro
Lição de Coisas, 1962), objeto de brilhante exegese do ensaísta Davi Arrigucci Jr. no volume Coração Partido (Cosac & Naify, 2002).
Mas voltemos ao rio Doce. Depois do desastre de Mariana, destacou-se que Drummond, colaborador eventual na imprensa de sua cidade natal, havia publicado em
dezembro de 1983, no jornal O Cometa Itabirano,
o poema "Lira Itabirana", cujos trechos principais abrem a miniantologia ao lado.
A quadra inicial tem traços premonitórios. Parece que, em sua ojeriza à empresa que destruiu o cartão-postal de sua infância, o poeta de alguma forma percebeu os desastres que a exploração indiscriminada do solo poderia gerar. A Vale amarga do verso drummondiano transferiu seu
amargor também para o rio.
•o•
TUTU CARAMUJO
Mas há outros poemas. Desde Alguma Poesia (1930), seu livro de estreia, Drummond visita a mágoa da destruição do cartão-postal de sua infância. No poema “Itabira”, ele diz: “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê”. Em outro texto, como todos sabemos, ele afirma que lá todos têm “oitenta por cento de ferro nas almas”.
Portanto, quando Tutu Caramujo lamenta a venda da mina do Cauê aos ingleses, pensa não apenas em si, mas em todos os itabiranos
— e, por extensão, mineiros e brasileiros. Uma curiosidade: esse personagem de fato existiu. Antônio Alves de Araújo, seu nome de batismo, foi político
(presidiu a Câmara Municipal de Itabira ainda no Império) e comerciante. O apelido viria do fato de ele ser um sujeito discreto,
introvertido, encaramujado.
•o•
MÍSERO PÓ DE FERRO
Drummond retoma o assunto no poema "A montanha pulverizada", publicado no livro Menino Antigo (Boitempo-II), de 1973. Nesse texto,
percebe-se claramente que a destruição do pico do Cauê deixou profundas marcas no poeta. O poema começa com a lembrança de que, em sua infância, a serra podia ser vista da sacada de casa. E que as pessoas pareciam entender que aquela elevação sempre estaria ali: “a serra que não passa”.
Mas um dia o narrador acorda e a serra não está mais lá. Foi levada por trens de carga, transformada em “mísero pó de ferro”.
E resta um detalhe: se a serra passou, foi arrasada, esse ferro não passa. Deve ser o metal impregnado na memória e na alma.
Do ponto de vista formal, “A Montanha Pulverizada” começa com três quadras organizadas em decassílabos regulares, sem rimas. Até aí, doze versos bem cadenciados, disciplinados. Contudo, quando
se constata o desaparecimento da montanha, os versos passam a ser livres, com o narrador claramente perturbado pelo choque emocional. Ele sabe o que aconteceu: a serra foi “britada em bilhões de lascas”. E a dor que permanece é bem maior que a “derrota incomparável” avaliada, décadas antes, por Tutu Caramujo.
•o•
CORAÇÃO ITABIRANO
O mesmíssimo tema de “A Montanha Pulverizada” reaparece no poema “O Maior Trem do Mundo”, também inédito em livro e igualmente publicado no jornal O Cometa Itabirano
— este em agosto de 1984. Aqui, melodramático, o poeta reforça a ideia de estar sendo pessoalmente despojado pelo trem, que leva o minério
(ou melhor, sua terra) para a Alemanha, para o Canadá, para o Japão. “Leva meu tempo, minha infância, minha vida / triturada em 163 vagões de minério e destruição”. Mas o comboio leva de roldão muito mais que todos esses bens já arrolados: arrasta também o
“coração itabirano” do poeta.
•o•
NA BACIA DAS ALMAS
O próximo texto, “Canto Mineral” (de As Impurezas do Branco, 1974), é um poema bastante longo. Selecionei dele alguns trechos que tocam diretamente nas riquezas e misérias da mineração. Nele, a pessoa que fala
— sem dúvida, um mineiro — se dirige a Minas, a terra das “minas exploradas / no duplo, no múltiplo / sem-sentido”. Na segunda estrofe transcrita,
a mesma pessoa revela arrependimento de ter vendido o minério a estrangeiros “na bacia das almas”
— ou seja, por preço vil.
Mas a contradição se mantém: “Me arrependo e vendo”. Aqui, o poeta parece atribuir duplo sentido à palavra “vendo”. Primeiro,
ela é a reverberação, o remorso, da venda efetuada no passado. No outro entendimento, “vendo” não pertence ao presente do verbo vender: é o gerúndio do verbo ver. Ou seja, “me arrependo e estou vendo” o que resultou daquela transação desastrada.
“A ARTE DO CIFRÃO MAIS FORTE”
Na estrofe seguinte, aparece mais uma vez “o rude Cauê / a TNT aplainado”. Dele restou apenas o cartão-postal, enquanto o minério continua sendo levado pelos “milhares / milhafres / de vagões vorazes”. O leitor menos atento há de pensar que Drummond pretendeu reforçar a imensa quantidade dos compartimentos de carga repetindo a palavra “milhares”. É isso, mas não só. “Milhafre” é uma ave de rapina. Portanto, os vagões estão praticando uma rapinagem, um assalto.
Sutilezas drummondianas.
Vem a última estrofe transcrita. Mais uma vez, surgem a ideia do metal “diluído em genes” dos mineiros
e a dor que isso provoca: “Minas que me feres / com pontiagudas / lascas de minério / e laminados de ironia”.
No fim, a crítica a quem realmente tira proveito de toda essa destruição: “No coração do manganês / pousa uma escritura / de hipoteca e usura / e o banco solerte / praticando a arte / do cifrão mais forte”.
Nada como a cristalinidade lírica de um grande poeta. Está tudo aí. Perdem-se vidas humanas, desaparecem os peixes, as plantas, os animais que dependem do rio. Fere-se com a
lama e a lâmina da pobreza os pescadores e os agricultores que
também dependem do rio. Mas certamente os poderes mais solertes continuam, sem culpa, “praticando a arte / do cifrão mais forte”.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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O poeta e a lama do rio Amargo
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Carlos Drummond de Andrade
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Édouard Manet (1832-1883), francês, O tocador de pífaro (1886)
LIRA ITABIRANA
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
(...)
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Publicado no jornal O Cometa Itabirano,
n. 58,
dez/1983
Manet, Ferrovia (1873)
ITABIRA
Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
Na cidade toda de ferro
as ferraduras batem como sinos.
Os meninos seguem para a escola.
Os homens olham para o chão.
Os ingleses compram a mina.
Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.
De Alguma Poesia (1930)
Manet, No conservatório (1878-79)
A MONTANHA PULVERIZADA
Chego à sacada e vejo a minha serra,
a serra de meu pai e meu avô,
de todos os Andrades que passaram
e passarão, a serra que não passa.
Era coisa dos índios e a tomamos
para enfeitar e presidir a vida
neste vale soturno onde a riqueza
maior é sua vista e contemplá-la.
De longe nos revela o perfil grave.
A cada volta de caminho aponta
uma forma de ser, em ferro, eterna,
e sopra eternidade na fluência.
Esta manhã acordo e
não a encontro.
Britada em bilhões de lascas
deslizando em correia transportadora
entupindo 150 vagões
no trem-monstro de 5 locomotivas
— o trem maior do mundo, tomem nota —
foge minha serra, vai
deixando no meu corpo e na paisagem
mísero pó de ferro, e este não passa.
De Menino Antigo (Boitempo-II), 1973
Manet, Cigana fumando cigarro (1862)
O MAIOR TREM DO MUNDO
O maior trem do mundo
leva minha terra
para a Alemanha
leva minha terra
para o Canadá
leva minha terra
para o Japão.
O maior trem do mundo
puxado por cinco locomotivas a óleo diesel
engatadas geminadas desembestadas
leva meu tempo, minha infância, minha vida
triturada em 163 vagões de minério e destruição.
O maior trem do mundo
transporta a coisa mínima do mundo,
meu coração itabirano.
Lá vai o trem maior do mundo
vai serpenteando vai sumindo
e um dia, eu sei, não voltará
pois nem terra nem coração existem mais.
Publicado no jornal O Cometa Itabirano, n. 69, ago/1984
Manet, Bar no Folies Bergère (1882)
CANTO MINERAL
(excertos)
Minas Gerais
minerais
minas de Minas
demais,
de menos?
minas exploradas
no duplo, no múltiplo
sem-sentido,
minas esgotadas
a suor e ais,
minas de mil
e uma noites presas
do fisco, do fausto,
da farra; do fim.
(...)
(Ai, que me arrependo
— me perdoa, Minas —
de ter vendido
na bacia das almas
meu lençol de hematita
ao louro da estranja
e de ter construído
filosoficamente
meu castelo urbano
sobre a jazida
de sonhos minérios.
Me arrependo e vendo.)
(...)
Do rude Cauê,
a TNT aplainado,
resta o postal
na gaveta saudosista,
enquanto milhares
milhafres
de vagões vorazes
levam para longe
a pedra azul guardada
para tua torre
para teu império
postergado sempre.
(...)
Minas, nos ares,
Minas que te quero
Minas que te perco
e torno a ganhar-te
com seres metal
diluído em genes,
com seres aço
de minha couraça,
Minas que me feres
com pontiagudas
lascas de minério
e laminados de ironia,
vês?
No coração do manganês
pousa uma escritura
de hipoteca e usura
e o banco solerte
praticando a arte
do cifrão mais forte.
(...)
De As Impurezas do Branco (1974)
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2015
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Carlos Drummond de Andrade * "Lira Itabirana" — inédito em livro;
jornal O Cometa Itabirano, n. 58, dez/1983 * "O
Maior Trem do Mundo" — inédito em livro; jornal O Cometa Itabirano,
n. 69, ago/1984 Informações sobre O Cometa
Itabirano e originais dos dois poemas acima
obtidos na dissertação "Palavra
e terra de Carlos Drummond de Andrade em O Cometa Itabirano", de Ângela Maria Vaz Sampaio Rosa,
apresentada à PUC-MG, em 2000. * Todos os demais poemas
In
Poesia Completa Nova Aguilar,
Rio de Janeiro, 2003 _____________
* Ruy Espinheira Filho, "A Chuva, uma História", in Poesia Reunida
(1998)
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- Imagens: pinturas
do francês
Édouard Manet (1832-1883), uma das figuras mais importantes da arte no
século XIX.
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