Número 347 - Ano 14

São Paulo, quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

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«Basta ser breve e transitória a vida / para ser sonho.» (Fernando Pessoa) *

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Myriam Fraga Myriam Fraga (1937-2016)



Amigas e amigos,


Após o recesso de verão, o poesia.net retorna ao ritmo habitual: quarta-feira sim, quarta-feira não. Como já é tradição, o primeiro boletim do ano traz um poeta forte, para dar ênfase à retomada deste correio poético.

Desta vez a regra se mantém. Mas, infelizmente, a escolha do autor em foco foi feita com muita tristeza. A poeta baiana Myriam Fraga, homenageada neste boletim, faleceu na última segunda-feira, 15 de fevereiro, vítima de leucemia.

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Myriam Fraga era de casa no poesia.net. Estreou aqui  no boletim n. 13, em abril de 2003. Depois, voltou a esta página na edição n. 273, de dezembro/2011. Na presente edição, republico, ampliado, o boletim de 2011, que destaca sua Poesia Reunida.

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Nascida em Salvador, em 1937, Myriam Fraga destacou-se como poeta, biógrafa e administradora cultural. Diretora executiva da Fundação Casa de Jorge Amado desde sua criação em 1986, ela tomou parte em diferentes organismos, como o Conselho Federal de Cultura e o Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Era também membro ativo da Academia de Letras de seu estado.

Também merece destaque sua obra de divulgação histórica e cultural. Ela escreveu Leonídia, a Musa Infeliz do Poeta Castro Alves (2002) e uma coleção completa de livros infanto-juvenis com biografias de escritores e artistas como Luiz Gama, Castro Alves, Jorge Amado, Carybé e Graciliano Ramos.

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PROJETOS POÉTICOS

Na poesia, Myriam Fraga estreou em 1964, com o livro Marinhas. Desde os primeiros versos publicados, já mostrava a força de seu lirismo. Não há, nesse volume inaugural, traços de poeta iniciante. Ao contrário: as metáforas, sempre afiadas, são o anúncio de que uma grande poeta estaria a caminho:

Com velas, cordame e mastros
Construirei minha ausência.
Das tardes de ouro e vento
Ficou-me a face tatuada
De ternuras impossíveis.

Depois de Marinhas, a poeta publicou mais nove títulos, enfeixados em sua Poesia Reunida (2008). Além de cultivar metáforas fortes e desconcertantes, Myriam Fraga revela especial predileção por personagens históricos, sejam eles figuras de existência comprovada — aí a galeria é ampla, vai do padre Anchieta a John Lennon —, sejam nomes da mitologia grega, dos cultos afro-brasileiros e da Bíblia. Mitos reais ou inventados, todos entram no cadinho criativo da poeta baiana e dele saem transformados em refinada poesia.

Uma característica evidente nos livros de Myriam Fraga é que quase sempre representam um projeto — ou seja, poemas construídos em torno de um eixo temático. Marinhas reúne textos sobre a ilha de Itaparica e os pescadores da região. Em Sesmaria (1969), há um desfile de personagens da Bahia quinhentista e seiscentista, com os sangrentos episódios da invasão holandesa.

Há um roteiro de guerra a ser cumprido.
As lunetas farejam o horizonte
E há ladridos de ânsia nos ouvidos. (...)

Quem uiva na penumbra além das portas?

(medo)

(Trecho do poema "A Cidade Conquistada")


Em O Livro dos Adynata (1975), o clima é irrespirável. Escrito no período mais repressivo da ditadura militar, o volume divide-se em três blocos cujos títulos dizem tudo: "I – Definição ou Da Impossibilidade de Dizer"; "II – Paisagem ou Da Impossibilidade de Ver"; e "III – Persona, ou da Impossibilidade de Ser". A cidade silenciada:

"Cidade de não ver, / De não dizer. (...) / Emparedada / No seu silêncio / De sete portas / Se abrindo ao medo". E, diante de tudo, o sujeito calado, amargurado: "Carrego um peso / Por isso, / Por tudo o que calando / Consinto". Um detalhe: adynata (grego, plural de adynaton) são figuras de linguagem que expressam impossibilidade, impraticabilidade.

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FEMINA

Em todas as suas coletâneas de poemas, Myriam Fraga atinge um nível muito elevado de elaboração poética. Mas — este é um ponto de vista meu — é em Femina, de 1996, que ela atinge os momentos mais vibrantes. É como se ali a poeta tivesse reunido todos os seus poderes mágicos. De fato, nesse livro o sujeito poético, sempre no feminino, assume os vestidos e as histórias de uma extensa coleção de personagens.

"Poesia é coisa / De mulheres", avisa o poema que serve de pórtico ao livro. Entre as muitas mulheres, que incluem figuras bíblicas, heroínas mitológicas e artistas populares, duas merecem destaque: Maria Bonita, companheira do cangaceiro Lampião, e Maria de Póvoas, ou Maria dos Povos, amante do poeta Gregório de Mattos. No poema "Maria Bonita", a protagonista desfia um verdadeiro cântico dos cânticos sertanejo a seu amado Lampião. Um trecho:

Vem, meu amor, e lavra
Este roçado
Como quem quebra
Um cântaro,
Como quem lava
A casa;
Águas frescas da tarde. (...)

Sou teu medo, teu sangue,
Sou teu sono,
Tua alpercata
De couro,
Teu olho cego, miragem
Dos vidros
Com que miras
A mira do mosquete.


No primeiro boletim dedicado a Myriam Fraga, já citei um trecho deste poema, que é um dos cantos de amor mais bem lavrados da literatura brasileira. A peça sobre Maria Bonita é longa. Mas a de Maria de Póvoas é mais extensa ainda: tem sete partes, sem nunca perder o encantamento. Expressa o desespero de Maria de Póvoas ao ver o poeta Gregório de partida para o degredo em Angola:

Ó amor feito de nada,
O que desejo
É apenas o côncavo do escuro.



O poema de abertura de Femina, "Ars Poetica", garante que "poesia é coisa / de mulheres". É uma afirmação perfeitamente ajustada à idéia central do livro. Há ainda outro texto, "Possessão", que funciona como uma espécie de complemento daquele. Os dois estão transcritos ao lado. "Ars Poetica" é uma definição de poesia. Ali o ato criador é comparado à gravidez e ao parto, além de uma sequência de suplícios, como andar sobre brasas e expulsar venenos pelos poros. São atos de uma "paixão delicada e perversa".

Em "Possessão" o assunto é o mesmo, porém a atenção se volta mais para o momento da chegada do poema. A epifania, o alumbramento, o entusiasmo do ato criativo. Então, a poesia (o poema) assume a condição de um orixá, uma divindade que toma posse do corpo do poeta, seu cavalo. O poema é a pombajira. Impressionante.

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Em seu último trabalho publicado, a peça teatral em versos Rainha Vashti (2015), Myriam Fraga volta a trabalhar poeticamente com uma personagem bíblica. Esposa do rei Assuero, da Pérsia, Vashti desobedece um comando do soberano.

Segundo relata a Bíblia, no livro de Ester, Assuero estava numa festa com homens de sua corte e já havia ingerido grande quantidade de vinho. Em dado momento, ele ordena que a rainha, usando a coroa real, venha mostrar aos convivas sua beleza. Vashti não cumpriu a ordem. Por isso foi destronada e banida. O poema "Coro dos Sátrapas" pertence à peça Rainha Vashti.

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Embora tenha construído um acervo poético dos mais importantes da literatura brasileira, Myriam Fraga nunca conquistou a merecida atenção dos meios de comunicação. Espero que as novas gerações saibam cultivar sua obra e reverenciar sua memória.

Obrigado, Myriam, pela poesia. Descanse em paz.



Carlos Machado




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Poeta: feminino, singular

Myriam Fraga


 
 
Calasans Neto - Mistérios das Duas Lagoas com o Farol (1982)
Calasans Neto (1932-2006), pintor baiano, Mistérios das Duas Lagoas com o Farol (1982)




DEFINIÇÃO ou DA IMPOSSIBILIDADE DE DIZER


(trechos)

Aqui não falo,
Antes me calo,
Que a vida é um favo
De maldizer

(...)

E a língua travo
Com os alfinetes
De só saber.

***

Cidade de não ver,
De não dizer.

Antes os olhos cegos,
As mãos algemadas,
Que este súbito saber
De segredos fechados.

Urbe selada
Sangrando o lacre
De seus sinetes.

Emparedada
No seu silêncio
De sete portas
Se abrindo ao medo.

                            De O Livro dos Adynata (1975)



Calasan Neto - Antípodas (1999)
Calasans Neto, Antípodas (1999)



A ESFINGE


Revesti-me de mistério
Por ser frágil,
Pois bem sei que decifrar-me
É destruir-me.

No fundo, não me importa
O enigma que proponho.

Por ser mulher e pássaro
E leoa,
Tendo forjado em aço
As minhas garras,
É que se espantam
E se apavoram.

Não me exalto.
Sei que virá o dia das respostas
E profetizo-me clara e desarmada.

E por saber que a morte
E a última chave,
Adivinho-me nas vítimas que estraçalho.

Salvador, 1964

                            De O Risco na Pele (1979)



Calasans Neto - Cabras (1993)
Calasans Neto, Cabras (1993)



ARS POETICA

Poesia é coisa
De mulheres.
Um serviço usual,
Reacender de fogos.
Nas esquinas da morte,
Enterrei a gorda
Placenta enxundiosa

E caminhei serena
Sobre as brasas
Até o lado de lá
Onde o demônio habita.

Poesia é sempre assim:
Uma alquimia de fetos,
Um lento porejar
De venenos sob a pele.

Poesia é a arte
Da rapina.
Não a caça, propriamente,
Mas sempre nas mãos
Um lampejo de sangue.

Em vão,
Procuro meu destino:
No pássaro esquartejado
A escritura das vísceras.

Poesia como antojos,
Como um ventre crescendo,
A pele esticada
De úteros estalando.

Poesia é esta paixão
Delicada e perversa,
Esta umidade perolada
A escorrer de meu corpo,

Empapando-me as roupas
Como uma água de febre.



Calasans Neto - Conversa (2001)
Calasans Neto, Conversa (2001)



POSSESSÃO

O poema me tocou
Com sua graça,
Com suas patas de pluma,
Com seu hálito
De brisa perfumada.

O poema fez de mim
O seu cavalo;
Um arrepio no dorso,
Um calafrio,
Uma dança de espelhos
E de espadas.

De repente, sem aviso,
O poema como um raio
— Elegbá, pombajira! —
Me tocou com sua graça,
Aceso como chicote,
Certeiro como pedrada.

Salvador, abril, 1995




Calasans Neto - Parceiros da Paz (1989)
Calasans Neto, Parceiros da Paz (1989)



FONTE

A vida que passou
— Água tombada
Dos bordos
De tua taça.

O eterno fluir,
O doce encanto
Com que se miram
Ninfas
Pela tarde.

Ó suave marulho,
Ó farfalhar de asas...
— Pássaros nascendo,
Invisíveis, das águas.

Tua concha como
Um cálice
Borbulhante, intocado,

Música de sombras verdes
Teu murmúrio em cascata.

E o tempo, o tempo,
O tempo...
Gotejando sua mágoa.

                            De Femina (1996)




Calasans Neto - Pássaro e Sol (1983)
Calasans Neto, Pássaro e Sol (1983)



CORO DOS SÁTRAPAS

Palavras... Palavras... Palavras...
São grades de cristal, são arabescos,
Palavras são marcas desenhadas
Nas paredes da sala.

São aranhas famintas, com suas patas,
Tecendo nas trevas do palácio
As tentações do esplendor que se desata.

Celebremos a púrpura e seu destino
No malefício das noites consteladas
De sóis extintos e estrelas apagadas.

Que volteiem os bailarinos nessa hora,
Rasguem-se os véus, desatem-se as volúpias,
Que o sangue lave a mesa do banquete
E nas entranhas decifre-se: morte e vida.

                            De Rainha Vashti (2015)




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2016


Myriam Fraga
    - Todos os poemas, exceto "Coro dos Sátrapas"
    In Poesia Reunida
   
Assembléia Leg. do Est. BA, Salvador, 2008

    - "Coro dos Sátrapas"
    In Rainha Vashti
    A Roda Edições, Salvador, 2015
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* Fernando Pessoa, "Basta ser breve", in Fausto
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* Imagens: quadros do pintor baiano (José Júlio de) Calasans Neto (1932-2006)