Número 348 - Ano 14

São Paulo, quarta-feira, 2 de março de 2016

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«Pode rimar/ amor e dor,/ pois dor e amor/ dão belo par. // Mas quem for dar,/ em vez de amor,/ somente dor,/ não deve amar.» (Marcelo Sandmann) *

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Angélica Torres
Angélica Torres Lima



Amigas e amigos,


Tenho a impressão de que ultimamente as mulheres é que vêm dando o tom no que surge de novo na poesia. E atenção: não me refiro ao que aparece na mídia. Lamentavelmente, sabemos muito bem que jornais, revistas, tevês não representam hoje o melhor espelho da realidade. Nem na cultura nem no resto.

Pois bem. Não tenho estatísticas nem formas científicas de medir esse fenômeno, mas percebo que as poetas, mais do que antes, vêm conquistando espaço na poesia.

É só uma observação que me leva ao presságio de que veremos, aqui no boletim, um número crescente de mulheres poetas. Em 2015, para um total de 26 boletins, oito – cerca de 30% -- foram estrelados por poetas no feminino. Este ano, tenho a impressão de que elas poderão ocupar mais espaço. Espero que assim seja.

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A propósito, este número traz também uma poeta.

A goiana Angélica Torres Lima já nos deu a alegria de sua presença no poesia.net n. 257, em outubro de 2008. Agora, ela volta a visitar esta página com poemas de O Nome Nômade, seu sexto livro, lançado no final de 2015.

Angélica Torres Lima estreou na poesia em 1986 com o volume Sindicato de Estudantes. Depois, publicou Solares (1988), Paleolírica (2000), O Poema Quer Ser Útil (2006) e Luzidianas (2010). Nascida em Ipameri (GO), em 1952, Angélica estudou arquitetura na Universidade de Brasília e artes cênicas na Unirio. Formou-se em comunicação na UnB.

Angélica é uma poeta da sinceridade. Não é difícil perceber que, por trás de seus versos, encontram-se histórias pessoais ou de outras mulheres. Não se trata, porém, daquela sinceridade ingênua dos poetas que não dispõem de outros meios, a não ser a opção de falar de si mesmos e de seus sentimentos, sem filtro.

Não. Angélica Torres Lima é experiente e vivida. Conhece e reflete histórias daqui e de outras terras. Tanto que, na orelha de O Nome Nômade, o poeta Alberto Bresciani observa que ela exibe uma visão “polifônica, simultaneamente feminina, masculina, violenta, elegante, feroz, beat ou engajada da artista que conhece seu ofício”.

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Mas vamos aos poemas que escolhi.

Em “Agni”, a personagem com nome da divindade hindu põe fogo no mundo “sem pedir licença aos deuses”. Aparentemente, a poeta admira o poder incendiário dessa divindade como metáfora para encarar a poesia e a vida: “os porões do corpo / os pilares da palavra”. Ela bem sabe que é sobre os escombros da velha cidade que se erguem os novos lastros, as novas ideias.

Em “Cinzenta” – massa cinzenta? ---, quem fala é um paciente, dirigindo-se a um esculápio. Dúvidas: como, partindo dos labirintos cerebrais, chegar aonde os desejos pretendem levar? Pela porta do peito? Será que — ironia — ajuda tomar antes uma dose de absinto? Naturalmente, o poema compõe-se apenas de perguntas. Presume-se que nem a poeta, nem o médico nem o leitor têm as respostas para tais indagações.

Assim é a poesia. Perguntas sem respostas, impossibilidades. No poema “Cósmica”, uma criatura do chão — uma loba — sonha com “as luas cheias / da ursa maior”. Esta é possivelmente outra metáfora para os grandes saltos da transcendência.

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Nos três próximos poemas, as indagações existenciais se transferem para a paisagem do interior goiano.

Elas estão, por exemplo, em “Retiro”. Pequi, jabuticaba, goiaba e “a mesma luz de lampião / nos augúrios do campo”. Festas com vaquejadas. Todo rural, “o tempo vivido entre raízes e grimpas de flamboiãs”. Mas um sinal do mundo urbano já se infiltrava na cena pastoril e, de certo modo, a desafinava: “ouviam-se em hi-fi / as big bands”.

Os ecos do interior reaparecem, saudosos, como “a sinfonia da fazenda / na cidade à beira-mar”. Uma festa de nostalgia para os sentidos: “Algaravia / agoravia / agorouvia / o seu fantasma / a conversar comigo”. O fantasma é do pai, figura central da fazenda. Este é um dos poemas que mais me tocam de O Nome Nômade.

Por fim, vem “Cercanias”, que é uma espécie de elegia brasiliense, um curral federal onde a paisagem é “prisioneira de prancheta / prosa parafernália política”. É o ambiente rural, porém não é mais. Como desespero ou consolo, resta ao longe o canto da seriema.

Um abraço, e até o ano que vem.

Carlos Machado




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Sem pedir licença aos deuses

Angélica Torres Lima


 
 


Yolanda Mohalyi - Figura feminina
Yolanda Mohalyi (1909-1978), húngaro-brasileira, Figura feminina




AGNI

Essa sanha titânica
que me leva a pôr fogo
no mundo sem pedir
licença aos deuses
essa sanha que alastra
a língua ardente
do arco-íris
na manhã do logos
toma de Prometeu
a tocha e com ela varre
o forro o foro o fundo
da casa os porões do corpo
os pilares da palavra
lava com a lava embaixo
em redor e sobre.



Yolanda Mohalyi - 1878-79
Yolanda Mohalyi, Avenida São João (anos 30)




CINZENTA

Observe o cérebro
doutor. O traçado
é inteiro labirinto.
Que caminho faço
pra dele chegar
onde preciso? Antes
tomo absinto?
Pela porta do peito
entreaberto avisto um
campo menos íngreme.
Se por ela atravesso
alcanço onde me espero
fundo um reino
e me ilumino?



Yolanda Mohalyi - Jovem mãe (1937)
Yolanda Mohalyi, Jovem mãe (1937)




CÓSMICA

Só lhe dão
o sol
no chão

semente de
ardente urdidura
vã iluminura

e a loba anseia
as luas cheias
da ursa maior.



Yolanda Mohalyi - Menino (1947)
Yolanda Mohalyi, Menino (1947)



RETIRO

Ai o tempo vivido entre raízes
e grimpas de flamboiãs. O pequi
a jabuticaba a goiaba perfumados.
De ninguém o amanhã.
O dia aceso no alpendre
de hortênsias antúrios
capim santo.
Tardinha e madrugada
a mesma luz de lampião
nos augúrios do campo.
O anel de noiva enterrado no pasto
e a boiada desandada no desfile
de sete de setembro.
Mas ouviam-se em hi-fi
as big bands.



Yolanda Mohalyi - Violão
Yolanda Mohalyi, Violão




ECOS

E o vento
maestro de folhagens
te incorpora pai
eu sinto e ouço
a sinfonia da fazenda
na cidade à beira-mar.
Algaravia
agoravia agorouvia
o seu fantasma
a conversar comigo
em meio à suave orgia
de rã sapo e jia
em tarde vegetal.



Yolanda Mohalyi - Autorretrato (1944)
Yolanda Mohalyi, Autorretrato (1944)




CERCANIAS

O silêncio sorve a poeira
da paisagem ancestral
e ela dando adeus ilhada
em seu curral federal.
Prisioneira de prancheta
prosa parafernália política
só entre o céu encarnado
e as ikebanas contorcidas
sabe lá a sua sina
traçada de Cruls
a Costa e cruz
      e sonha-se concreto de
      olhos d'águas e caliandras
      veredas e campos de lírios.
      Chora o vento uivando
      com Dilermando e o peixe
      apartado d'água fria
      (e agora Cerrado
      sem a sua companhia?)

Ao longe só seriema
com seu agourento
tristíssimo canto.




poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2016


Angélica Torres Lima
    In O Nome Nômade
    7Letras, Rio de Janeiro, 2015
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* Marcelo Sandmann, "Mora na Filosofia?", in A Fio (2014)
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* Imagens: quadros de Yolanda Mohalyi (1909-1978), pintora húngara
  naturalizada brasileira.