Número 349 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 16 de
março de 2016 |
Iara Maria Carvalho
Amigas e amigos,
Não faço nenhuma questão de ocultar minha satisfação quando este boletim tem a oportunidade de apresentar um poeta proveniente de uma região pela qual a grande mídia não revela interesse.
A alegria é ainda maior quando se trata de uma poeta, no feminino, e jovem. Isso traz a certeza de que, apesar de todos os ventos contrários, a poesia resiste e dá sinais de constante renovação.
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A poeta em foco nesta edição chama-se Iara Maria Carvalho. Nascida em 1980 na cidade de Currais Novos-RN, Iara é graduada em letras e mestra em estudos da linguagem pela UFRN. Ativista cultural, foi uma das fundadoras do grupo Casarão de Poesia em sua cidade e hoje faz parte do coletivo Novos Potiguares.
Como poeta, Iara participou de várias antologias coletivas, resultantes de premiações. Sua estreia em livro-solo deu-se em 2011 com a coletânea Milagreira. Os poemas da pequena seleção ao lado vêm de seu segundo livro, Saraivada, publicado em 2015.
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Não conheço o livro de estreia de Iara Maria Carvalho. Portanto, não sei dizer que tipo de evolução Saraivada, que tenho em mãos, representa em relação ao anterior. Não importa. O certo é que Saraivada contém um bom punhado de poemas luminosos que podem ensejar à autora uma auspiciosa trajetória no mundo da poesia. Desse livro pincei os seis poemas ao lado.
“Alegria da palavra é doer”. Com essa afirmação, Iara arremata o texto “E gemer”, um dos primeiros da coletânea. Nele a autora mostra uma das facetas de sua escrita, na qual se nota uma especial inclinação para a metapoesia. Iara revela extrair certo prazer na luta com as palavras: “O verbo me rangeu os dentes, / gostei”. Que dizer? Talvez aí se encaixe a velha lição drummondiana. Não há como encontrar poesia se o poeta mostrar-se acovardado diante do ranger de dentes das palavras. A autora currais-novense, ao que parece, não teme “a luta mais vã”.
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“Saraivada”, poema que dá título ao volume, é mais um metapoema. Nele o poeta, mais uma vez, é convidado à luta. Agora, o oponente não é o verbo ameaçador, rangendo os dentes. Pior: é o silêncio. Por isso, o texto recomenda: “desfira / um golpe / misericordioso / no corpo sem carne / do silêncio. // e com o sangue escorrido, / escreva um livro”. O poema, portanto, resulta das entranhas do silêncio”.
O poema “Desfeita” entra, com ironia, no universo feminino. Parece uma resposta a algum desafeto, talvez amoroso. A narradora corta tudo, menos os pulsos, fazendo uma desfeita ao adversário. Em catorze palavras, está contada — ou sugerida, quem quiser que imagine o resto — uma história de desavenças e desencontros.
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Em “Roleta Russa”, vem a descrição trágica de uma brincadeira com o “tambor da morte” e
a loteria sinistra, probabilística: “uma em seis”. Sim, há uma em seis chances de haver uma bala no caminho do cão e do gatilho. “Vermelho denso” na parede.
Outra cena da vida é mostrada em “Uma Lagartixa Louca”, uma peça que parece conter traços autobiográficos. O tempo passa e uma poeira (de construção) persistente “foi levando os meus trinta / anos pra debaixo do tapete colorido”. E lagartixa ali: “uma cárie a menos. / um sonho a menos. / um pai a menos.” Poeira, lagartixa, sufoco. O narrador escapa pela porta do delírio: “desengaiolo os lírios do meu cérebro de cimento / e deliro”.
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O último poema da seleção é um texto “publicitário” — “Out-dor”. Atente para o detalhe: não é erro de digitação. Trata-se de uma dor que deve ser colocada para fora, publicamente, em voz alta.
Armada com fartos recursos poéticos, Iara Maria Carvalho oferece em seu livro uma instigante saraivada lírica.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Saraivada lírica
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Iara Maria Carvalho
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Eduardo Lima, artista baiano, O Passeio
E GEMER
era uma armadilha,
nem pensei.
o verbo me rangeu os dentes,
gostei.
alegria da palavra é doer.
Eduardo Lima, A colheita do umbu
SARAIVADA
apresso o passo,
que lá vem o silêncio.
corra:
ele consome
suas melhores preces.
voar é grande
— então voe.
exploda
espalhe
ecoe.
não recolha os cacos de
memória e osso
nem amacie o dorso ferido
dos campos minados.
desfira um golpe
misericordioso
no corpo sem carne
do silêncio.
e com o sangue escorrido
escreva um livro.
Eduardo Lima, Sem Título
DESFEITA
cortei cabelo,
unhas
e todos os carboidratos.
os meus pulsos,
porém,
ainda estão intactos.
Eduardo Lima, O Contador de Histórias
ROLETA RUSSA
ouço o som do tambor da morte
rodopiando magnético,
tem ares de malandro, esse tambor,
é frio,
macambúzio,
lazarento.
gira o tambor com sua saia de cigana:
uma em seis, sou a bola da vez?
bate com força em minha têmpora insana
o tambor com seu gatilho
me amortece e me esgana.
cai no tapete o tambor da sorte
som que esvazia o vento
tristeza imensa no caldeirão suspenso
e na caliça da parede escorre
uma flor tão fria,
de um vermelho denso.
Eduardo Lima, A Grande Mãe
UMA LAGARTIXA LOUCA
de um lado para o outro.
a cerâmica da casa era a mesma.
a poeira, sempre a mesma poeira, era a construção
do vizinho.
o ano passou, a poeira foi levando os meus trinta
anos pra debaixo do tapete colorido.
e eu sobrevivi.
contando nos dedos cada dia.
desejando ser o último.
vá embora. ande. corra, sua lagartixa louca, acabe.
sobrevivi aos trinta anos com uma cárie a menos.
um sonho a menos.
um pai a menos.
e se é tempo de voar,
desengaiolo os lírios do meu cérebro de cimento
e deliro.
Eduardo Lima, O Menino que Amava o Pássaro
OUT-DOR
chega um tempo
em que a vida
precisa ser em voz alta.
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Carlos Machado,
2016
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Iara Maria Carvalho In Saraivada
Sarau das Letras, Mossoró, 2015 _____________
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Dante Milano, "Poemas de um verso", in Obra Reunida _____________ * Imagens: quadros de
Eduardo
Lima (1977), pintor baiano autodidata
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