Hilda Hilst
Amigas e amigos,
O poesia.net já estava a dever uma revisitação à obra da poeta paulista Hilda Hilst (1930-2004). Ela esteve aqui pela primeira vez no
boletim n. 54, que circulou exatamente no dia 4 de fevereiro de 2004, data em que Hilda partiu para o país da Memória.
Faz, portanto, doze anos que Hilda não comparece a esta página. Recentemente, já a destaquei mais de uma dúzia de vezes no espaço do
poesia.net no Facebook, usando os trechos ilustrados que batizei como “cartões poéticos”.
Agora a poeta retorna ao boletim.
Como boletineiro de longo curso, desenvolvi o hábito de ler livros de poemas e, com um lápis, ir marcando os poemas ou trechos que eventualmente poderão entrar num boletim ou num cartão poético. Dessas marcações, resolvi agora pegar alguns dos poemas do livro
Da Morte. Odes Mínimas, lançado originalmente pelas editoras paulistanas Massao Ohno/Roswitha Kempf em 1980 e reeditado pela Globo em 2003.
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Os diálogos poéticos de Hilda Hilst nunca foram modestos. Como todo grande bardo, ela ousava. Falava de igual para igual com as mais altas e poderosas entidades, entre as quais Deus e a indesejada das gentes. E o livro
Da Morte. Odes Mínimas é um longo diálogo com essa senhora da qual muitos não gostam sequer de dizer o nome. Poeta que é, Hilda não se curva perante ela, embora sabendo que está envolvida numa peleja de cartas marcadas, na qual a megera sempre sai vencedora.
(A propósito, como escrevi acima “essa senhora”, é sempre interessante lembrar: em outros idiomas, como o inglês e o alemão, a Morte não tem gênero feminino. Nessas línguas, ela é Ele. Na verdade, a morte não tem gênero. Aliás, fico curioso para saber como terá sido traduzido para esses idiomas o romance de José Saramago
As Intermitências da Morte, no qual ela é mulher e tem sentimento humano.)
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Em suas Odes Mínimas sobre a morte, Hilda Hilst numera os poemas em sequência de números romanos. O primeiro texto que separei foi justamente o “I”, onde a poeta inicia o diálogo. E começa também o despropósito.
A poeta quer rebatizar a Morte, chamá-la de outros nomes (muitos). E, desdenhosa, pergunta: “Por que não?”
No poema “IX”, a Inimiga é tratada como um equídeo que oculta sua chegada: “Os cascos enfaixados / Para que eu não ouça / Teu duro trote”. A poeta, no entanto, continua a fustigar e mimosear a entidade-algoz, chamando-a de criança, rei, rainha.
No texto seguinte, continua a variação de tratamentos. Mas aí a vida já aparece como moeda de troca: “Te prometo, morte, / A vida de um poeta. A minha (...) / Se me tocares / Amantíssima, branda / Como fui tocada pelos homens”. E vem a próxima palavra-chave: se a morte cumprir o trato, até poderá ganhar o nome de Poesia.
No texto XXIX a poeta mostra que a morte ponteia a vida com numerosos de seus ensaios. São perdas, partidas, saudades, lembranças. Aperitivos do fim. No XXX, a poeta avança para novo ângulo de apreciação. Aí ela considera o ser vivo e a morte (sua morte) como “duas gargantas, dois gritos, dois cortes”. Mas a pessoa é só uma. Vivo e (potencial) morto, vida e morte são apenas um ser.
Vem, por fim, um texto de outra divisão do livro, “Tempo-Morte”. É o poema “I”, também em número romano. Nele, Hilda aproxima corpo, alma, caras, coração, breu, sentimento. E todas essas coisas têm apenas um nome: tempo.
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A poesia completa de Hilda Hilst é um tesouro para ser lido e estudado. Poeta de amplos espaços e de visão enorme, ela
— não tenho dúvida — permanecerá.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Diálogo sincero com a morte
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Hilda Hilst
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Francine Van Hove, francesa, Mulheres
DA MORTE. ODES MÍNIMAS
I
Te batizar de novo.
Te nomear num trançado de teias
E ao invés de Morte
Te chamar Insana
Fulva
Feixe de flautas
Calha
Candeia
Palma, por que não?
Te recriar nuns arco-íris
Da alma, nuns possíveis
Construir teu nome
E cantar teus nomes perecíveis:
Palha
Corça
Nula
Praia
Por que não?
Francine Van Hove, Os Domingos de La Rochelle (1993)
IX
Os cascos enfaixados
Para que eu não ouça
Teu duro trote.
É assim, cavalinha,
Que me virás buscar?
Ou porque te pensei
Severa e silenciosa
Virás criança
Num estilhaço de louças?
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?
Francine Van Hove, Chá e Croissant
XIX
Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro
Te tomaria
Úmida, tênue
E então descansarias.
Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono
Te prometo, morte,
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.
Se me tocares,
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens
Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, Palavra viva
Sorte.
Francine Van Hove, Chove (2016)
XXIX
Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perda, partidas
Memória, pó
Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.
Francine Van Hove, Tripla J
XXX
Juntas, tu e eu.
Duas adagas
Cortando o mesmo céu.
Dois cascos
Sofrendo as águas.
E as mesmas perguntas.
Juntas. Duas naves
Números
Dois rumos
A procura de um deus.
E as mesmas perguntas
No sempre
No pasmoso instante.
Ah, duas gargantas
Dois gritos
O mesmo urro
De vida, morte.
Dois cortes.
Duas façanhas.
E uma só pessoa.
Francine Van Hove, Sob o Olhar de Rafael (2016)
TEMPO-MORTE
I
Corroendo
As grandes escadas
Da minha alma.
Água. Como te chamas?
Tempo.
Vívida antes
Revestida de laca
Minha alma tosca
Se desfazendo.
Como te chamas?
Tempo.
Águas corroendo
Caras, coração
Todas as cordas do sentimento.
Como te chamas?
Tempo.
Irreconhecível
Me procuro lenta
Nos teus escuros.
Como te chamas, breu?
Tempo.
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