Número 354 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 1 de
junho de 2016 |
«Eu vou amanhecer no cais da aurora, / Com
as minhas longas roupas de fumaça.» (Affonso
Manta) *
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Camões, Drummond (embaixo), Dante Milano e Oswald de Andrade (centro), Antonio
Brasileiro e Franciso Carvalho (alto)
Amigas e amigos,
No último verso do Paraíso, n'A Divina Comédia,
Dante Alighieri (1265-1321) refere-se ao "amor que move o sol e as outras estrelas". Por mais que, sete séculos depois, o sentido desse amor tenha mudado, somente aqueles que estão possuídos por esse sentimento são capazes de dizer se ele tem de fato tantos poderes cósmicos. É provável que sim. Afinal, em tempos bem mais próximos de nós, o poeta carioca Olavo Bilac
(1865-1918) não afirmava que só quem ama é "capaz de ouvir e de entender estrelas"?
Pois bem. Este boletim é dedicado ao amor, o mais celebrado de todos os sentimentos. Aqui no
poesia.net, este modesto boletineiro não domina as artes e as ciências necessárias para afirmar se esse nobre
estado d'alma é de fato capaz de promover tamanhas estripulias na ordem do Universo. Mas todos sabemos com certeza que ele é o grande tema em torno do qual poetas e cantores, filósofos e amantes já consumiram oceanos de tinta na vã tentativa de definir, classificar, explicar.
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Neste boletim selecionei alguns poemas nos quais os autores se arriscam a estabelecer uma delimitação desse sentimento tanto mais celebrado quanto menos definido. Vale deixar bem claro que não se trata de uma coletânea de poemas DE amor, porém uma busca de textos que
se arriscam a dizer O QUE É o amor. Não é difícil perceber que enquanto os primeiros são suficientes para
erguer montanhas de letras, os outros são muito mais escassos.
Mas vamos aos poemas.
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FOGO INVISÍVEL
Comecemos com um dos pais-fundadores da língua portuguesa,
Luís Vaz de Camões (1524?-1580). No soneto "[Amor é
um fogo que arde sem se ver]", o bardo quinhentista empreende uma verdadeira tour de force lírica para caracterizar as alegrias e apreensões do amor.
Dialético, ele destaca as contradições do ilustre sentimento. É satisfação desgostosa; dor que não dói; prisão voluntária
etc. E termina perguntando como o amor pode conquistar tanta simpatia se é assim tão bruxuleante e indefinido. Em certo sentido, Camões neste soneto oferece uma série de balizas e definições para o amor. Mas são definições que, a rigor, proclamam uma escancarada indefinição.
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ANEDOTA MODERNISTA
Vamos agora dar um salto arbitrário de alguns séculos e passar para o lado de cá do Atlântico. O pândego
e irrequieto modernista
paulistano
Oswald de Andrade (1890-1954) define amor com um poema de apenas uma palavra: "Humor". Claro, é um poema-piada. Mas, além da anedota, o amor certamente também inclui cenas humorísticas,
ou ridículas — como bem lembra Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) sobre as
cartas de namorados.
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ESSÊNCIA E APARÊNCIA
O poeta carioca
Dante Milano (1899-1991) não diz o que é o amor, mas explora
— em seu ponto de vista — uma das contradições do nobre sentimento. Para ele, o falso amor e o verdadeiro se equivalem. Ele não chega a afirmar que os dois são a mesma entidade. Mas confunde-os tanto que deixa no ar a impressão de que não adianta buscar a diferença
— em sua apreciação, ela é nula.
Nota-se no "Poema do Falso Amor" uma concepção seca, quase cruel, que se coloca no avesso das idealizações românticas. Também está presente no texto um tema caro a Milano, que é o da dificuldade de distinguir entre essência e aparência. "O falso amor é verdadeiro / E o verdadeiro falso". Ou seja, pode-se atribuir a um o adjetivo que caracteriza o outro. Então, qual é qual?
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FOGUEIRA NO FIM DO DIA
Vem agora, em dose dupla, um poeta obrigatório nesta discussão —
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). No soneto "Entre o ser e as coisas", do monumental
Claro Enigma (1951), o poeta sai em busca do amor, perguntando aos elementos naturais: onda, vento, rocha. Mas ele conclui que as almas na verdade não esquecem as lições aprendidas e "tornam amor humor". Aqui, sem anedota, a ideia de Oswald é retomada. Mas não só o amor se dilui em humor como sua corrosividade,
com o tempo, adquire natureza vaga e branda.
No primeiro terceto, registram-se, de certo modo, aquelas mesmas contradições camonianas. O amor grava hieróglifos na água e na pedra, assim como "suas verdades mais secretas e mais nuas". Contudo, mesmo tocados
pelos distúrbios amorosos, nem os elementos naturais o compreendem. E o que é o amor? Uma (pungente) fogueira a arder no dia findo.
Este é um dos muitos poemas em que Drummond apresenta sua visão sobre o amor e as dificuldades da relação amorosa. Está aqui o mesmo poeta que, em outro texto, pergunta: "Amor é compromisso / com algo mais terrível que amor?" Ou ainda aquele que diz: "Dois amantes que são? Dois inimigos".
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RELÂMPAGO CIFRADO
O segundo poema drummondiano, "Amor e Seu Tempo", é também um soneto e vem do livro
As Impurezas do Branco, publicado duas décadas depois do outro, em 1973.
Septuagenário, o poeta já enxerga o fenômeno amoroso com olhos da alta maturidade. Agora, o
amor é "privilégio de maduros" que roçam, "em cada poro, o céu do corpo".
E mais uma vez surge a impossibilidade da compreensão do que seja esse sentimento ambíguo. Amor é "leitura de relâmpago cifrado, / que, decifrado, nada mais existe / valendo a pena e o preço do terrestre (...)". E o que se aprende de amor é algo que está fora da ciência e de tudo que se herdou e que se ouviu. Além disso, é algo que, quando se aprende, perde o valor.
"Amor começa tarde". Aqui, um fechamento que aponta para duas direções. O início tardio do amor
talvez se deva à impossibilidade natural de compreendê-lo antes. Mas também se pode pensar que aí reside um lamento: por que só começou agora, quase no fim do caminho?
Com sua poesia pensante, Drummond mergulha nas reflexões sobre o amor. E traz lá do fundo pérolas líricas e também o inevitável calcário da dificuldade de apreender com palavras o escorregadio sentimento amoroso.
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RIO SECRETO
Outra "definição" está no poemeto "Calafrio", do vate cearense
Francisco Carvalho (1927-2013). Numa frase única, o poeta
descreve o amor como um calafrio que atravessa o corpo dos amantes e desaparece nas águas de um rio secreto, que certamente não está mapeado em nenhum compêndio de geografia.
Mais uma vez, o que se destaca na visão de Francisco Carvalho não são as doçuras e venturas do amor, mas a febre que provoca no corpo e a obscuridade de seu destino.
Em certo sentido, o calafrio de Francisco Carvalho se aproxima dos traços com que a poeta baiana
Myriam Fraga (1937-2016), recentemente desaparecida, pinta
um dos estados mais afogueados do amor, a paixão: "A paixão é como o vinho / Passada a embriaguez / Resta um co(r)po vazio".
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CANGA DE NUVEM
No soneto "Canção do Amor Imprestável", o poeta baiano
Antonio Brasileiro
(1944-) nos oferece novo ponto de vista. Em linhas gerais,
ele segue pela mesma estrada de Drummond. De saída, define o amor como "trem de ferro" e como "animal montado em pelo",
coisas praticamente impossíveis de manejar. Também destaca as lendas que existem em torno do amor, seus melodramas e as
angústias que o controverso sentimento provoca nos poetas.
Para Brasileiro, o amor tem os "tons rubros" do fogo e do sangue e também os róseos, de seu lado mais ajardinado.
Depois dos noves fora, o amor não passa de uma "canga de nuvem" (utensílio ilusório, inexistente) e é declarado imprestável.
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Não sei se todas essas tentativas de definição permitem formar, mesmo incompleta ou semiapagada, uma imagem
válida ou pelo menos uma caricatura do amor. É bem provável que não. Mas poesia é isso: mais perguntas
do que respostas. Mais cutucões em nossa sensibilidade do que certezas ou palavras de consolo
e acomodação.
Ao final desta perambulação poética, tenho apenas um ponto a lamentar: à parte a
breve citação de Myriam Fraga, são todos homens os poetas citados nesta
lista. Infelizmente, não encontrei no caminho outra voz feminina, nem mesmo na poesia completa de Cecília Meireles, que contém um
inesgotável manancial
de canções DE amor.
De todo modo, amar é sempre melhor que definir o amor. Portanto, deixemos de lado
as definições e fiquemos com o velho e sábio
Joaquim Maria Machado de Assis, que avisa:
"A melhor definição de amor não vale um beijo de moça namorada".
Ou, para terminar com uma voz feminina, podemos nos acomodar ao conselho de uma
contemporânea de Machado de Assis, a americana
Emily Dickinson: "Que o amor é tudo que há, /
isso é tudo que sabemos do amor; / e basta". (A tradução, imperita e prosaica,
é minha.)
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Poeta, o que é o amor?
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• Camões • Drummond •
Oswald de Andrade • Dante Milano • Francisco Carvalho • Antonio
Brasileiro
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Sandro Botticelli, italiano, O Nascimento de Vênus (1484)
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Luís Vaz de Camões
[AMOR É UM FOGO QUE ARDE SEM SE VER]
Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
Botticelli, Retrato de Simonetta Vespucci (1484)
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Oswald de Andrade
AMOR
Humor
De Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade (1927)
Botticelli, A Primavera (detalhe, 1477)
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Dante Milano
POEMA DO FALSO AMOR
O falso amor imita o verdadeiro
Com tanta perfeição que a diferença
Existente entre o falso e o verdadeiro
É nula. O falso amor é verdadeiro
E o verdadeiro falso. A diferença
Onde está? Qual dos dois é o verdadeiro?
Se o verdadeiro amor pode ser falso
E o falso ser o verdadeiro amor,
Isto faz crer que todo amor é falso
Ou crer que é verdadeiro todo amor.
Ó verdadeiro Amor, pensam que és falso!
Pensam que és verdadeiro, ó falso Amor!
De Obra Reunida (2004)
Botticelli, Retrato de Uma Jovem (1480)
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Carlos Drummond de Andrade
AMOR E SEU TEMPO
Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.
É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe
valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.
Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.
De As impurezas do branco (1973)
Botticelli, Vênus e Marte (c. 1483)
ENTRE O SER E AS COISAS
Onda e amor, onde amor, ando indagando
ao largo vento e à rocha imperativa,
e a tudo me arremesso, nesse quando
amanhece frescor de coisa viva.
As almas, não, as almas vão pairando,
e, esquecendo a lição que já se esquiva,
tornam amor humor, e vago e brando
o que é de natureza corrosiva.
N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.
E nem os elementos encantados
sabem do amor que os punge e que é, pungindo,
uma fogueira a arder no dia findo.
De Claro Enigma (1951)
Botticelli, Atena e o Centauro (1482)
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Francisco Carvalho
CALAFRIO
O amor
é um calafrio
que nos percorre
o corpo
e deságua
na foz
de um secreto rio.
De As Verdes Léguas (1979)
Botticelli, Fortaleza (1470)
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Antonio Brasileiro
CANÇÃO DO AMOR IMPRESTÁVEL
O amor é trem de ferro,
animal montado em pelo:
envolve-nos em mil novelos,
despede-nos, desperdiça-nos.
Diz-se que tem lendas raras
impregnando seu corpo.
E que um poeta, absorto,
o prostrou com sete tiros.
Amor, o melodramático,
que tange a alma dos bichos.
Canga de nuvem em bois magros.
Com tons rubros, seus trâmites;
com róseos, seus ambulacros.
Ah o amor, pouso imprestável!
De Longes Terras (2014)
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2016
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Luís Vaz de Camões "[Amor é um fogo que arde sem se ver]" In Sonetos
• Oswald de Andrade "Amor" In Cadernos de
Poesia do Aluno Oswald (Poesias Reunidas) Círculo do Livro, São Paulo, s/data •
Dante Milano "Poema do
Falso Amor" In Obra Reunida
ABL, Rio de Janeiro, 2004 • Carlos Drummond de Andrade
"Amor e Seu Tempo" e "Entre o Ser e As Coisas" In Poesia
Completa
Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2003 • Francisco Carvalho
"Calafrio" In Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos
Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004 • Antonio Brasileiro
"Canção do Amor Imprestável" In Lisboa 1935
Mondrongo, Itabuna, 2016 _____________
* Affonso Manta, in Antologia Poética (2013) _____________ * Imagens: quadros de
Sandro
Botticelli (1445-1510), pintor renascentista italiano
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