Número 358 - Ano 14

São Paulo, quarta-feira, 27 de julho de 2016

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«O tempo / é escritura de estilhaços. A paz é um pássaro sem asas.» (Myriam Fraga) *

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Dez Poetas Mia Couto



Amigas e amigos,


Conhecido principalmente por seus escritos em prosa, Mia Couto – ou, no cartório, António Emílio Leite Couto – nasceu em 1955 na cidade da Beira, em Moçambique. Assim como muitos prosadores, começou escrevendo poesia e, aos 14 anos, publicou seus primeiros versos num jornal beirense.

Em 1971, mudou-se para a capital do país, Lourenço Marques, hoje Maputo (nome adotado em 1976, após a independência). Na capital, o jovem Mia Couto iniciou o curso de medicina, mas interrompeu-o no terceiro ano, quando passou ao exercício do jornalismo profissional. Militante de esquerda na época, participou ativamente da luta pela independência moçambicana.

Estreou em livro com a coletânea de poemas Raiz de Orvalho (1983) e, dois anos depois, voltou à universidade para continuar os estudos na área de biologia. Seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, publicado em 1992, começou a lhe render prêmios e notoriedade. Hoje Mia Couto é talvez o escritor moçambicano mais traduzido e mais conhecido internacionalmente.

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Mas essa notoriedade veio dos romances e contos. No Brasil, por exemplo, há anos se publicam livros de prosa de Mia Couto. Mas só agora, pela primeira vez, sai uma coletânea de sua poesia. A Companhia das Letras acaba de lançar Poemas Escolhidos, uma antologia que contém textos de todos os títulos do poeta até 2011. A saber: o já citado Raiz de Orvalho (1983); Raiz de Orvalho e Outros Poemas (1999); Idades, Cidades, Divindades (2007); e Tradutor de Chuvas (2011). Nesta seleção, organizada pelo próprio autor e apresentada pelo crítico carioca José Castello, só não está representado o título mais recente, Vagas e Lumes, de 2014.

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Com cerca de 190 páginas, os Poemas Escolhidos oferecem uma boa amostra da vertente lírica de Mia Couto. Na miniantologia ao lado, selecionei um pequeno punhado de textos que representam alguns aspectos dessa amostra.

Em linhas gerais, trata-se de uma poesia que parece lançar um olhar de espanto e de compreensão para os acertos e descaminhos da convivência humana. Neste sentido, diz José Castello na apresentação do livro: “Os poemas de Mia Couto são, antes de tudo, reflexivos e filosóficos. Remetem, porém, não a uma filosofia de escola — com seus conceitos e métodos —, mas, bem mais, a uma ruminação luminosa que precede a idade verbal. Abordam o ser e a incompreensível dor de existir”.

Nos poemas que pincei, destacam-se alguns pontos. Um é a descoberta da poesia em situações cotidianas, como se pode ver em “O Pecado do Rio” e em “Doença”. Ressalta também a solidariedade do poeta com as mulheres. Há traços francamente feministas em poemas como “Mulher” e “A Coisa”. Assim como na filosofia apontada por José Castelo, encontra-se aí não um feminismo programático ou de declarações teóricas, mas algo muito real, que parece extraído da observação cotidiana. “No leito, / já servido o marido, / as lágrimas vão colando os seus fragmentos”.

Outro ponto que me chamou a atenção é o tratamento dado por Mia Couto ao aspecto religioso ou da relação do ser humano com alguma divindade. Tanto em “Avesso Bíblico” como em “Falta de Reza”, nota-se que o autor tem uma visão bastante particular sobre esse ponto. Neste último poema, o narrador declara: “Não quero um deus / que vigie os vivos / e peça contas aos mortos”. Deseja, ao contrário, um deus amigo, “que nem precise existir”.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado



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Idades, cidades, divindades

Mia Couto

 
 
Fernando Botero - Homem com Violão - 1982
Fernando Botero, colombiano, Homem com violão (1982)




O PECADO DO RIO

Na igreja,
Rosarinho se confessou:
engravidei do rio, senhor padre.

Com gesto de água
arredondou o ventre.

O padre
se enrugou:
ela que não usasse desculpa
para os seus mortais pecados.

A ofensa tremia
na voz dela quando retorquiu:
— Desculpe, padre,
mas Nossa Senhora
não emprenhou de um feixe de luz?


Para mais, acrescentou Rosarinho,
o senhor padre
nem nunca, nem jamais viu esse rio.


E rematou
com lânguida saudade: aquele ondear,
as tonturas que ele traz...


Pegou o padre pela mão
e o convidou a descer o vale.

Agora,
todas as noites
o padre se banha
nas águas do rio pecador.



Fernando Botero - Costureiras - 2000
Botero, Costureiras (2000)




DOENÇA

O médico serenou Juca Poeira.
Que ele já não padecia da doença
que ali o trouxera em tempos.

E o doutor disse o nome
da falecida enfermidade:
"Arritmia paroxística supraventricular"

Juca escutou, em silêncio,
com pesar de quem recebe condenação.

As mãos cruzadas no colo
diziam da resignada aceitação.

Por fim, venceu o pudor
e pediu ao médico
que lhe devolvesse a doença.

Que ele jamais tivera
nada tão belo em toda a sua vida.



MULHER

Solteira, chorei.

Casada, já nem lágrima tive.

Viúva, perdi olhos
para tristezas.

O destino da mulher
é esquecer-se de ser.



Fernando Botero - Flamenco - 1984
Botero, Flamenco (1984)




ELEMENTOS

Era água, mas ardia.

No centro do teu corpo
ardia.

Como um sol em plena chuva
ardia.

Era boca, mas navegava.

Entre beijo e barco se perdia,
água já sem viagem,
navegava.

Rumo a um destino
que fica depois do lugar derradeiro
navegava.

Pensei que era a noite,
mas era a terra.

Em mim se deitava um corpo
e era eu que me erguia
vazio como um rio nu.

Terra que entreabria e penetrava
e, afinal, era semente,
flecha de luz,
cinza antes do fogo,
semente

No falso suicídio da estrela-cadente
era terra,
água,
semente.
Tu.



Fernando Botero - Homem com Violão - 1987
Botero, Quatro mulheres (1987)




AVESSO BÍBLICO

No início,
já havia tudo.

Mas Deus era cego
e, perante tanto tudo,
o que ele viu foi o Nada.

Deus tocou a água
e acreditou ter criado o oceano.

Tocou o chão
e pensou que a terra nascia sob os seus pés.

E quando a si mesmo se tocou
ele se achou o centro do Universo.
E se julgou divino.

Estava criado o Homem.



PEQUENINURA DO MORTO E DO VIVO

O morto
abre a terra: encontra um ventre

O vivo
abre a terra: descobre um seio




Fernando Botero - Autorretrato com Sofía - 1986
Botero, Autorretrato com Sofía (1986)




A COISA

O silêncio é o modo
como o marido habita a casa.

Vencida a porta, ao final do dia,
o homem assume porte e posses.

A mesa é onde os seus cotovelos
derramam milenares cansaços.

Nesse cotovelório
vai trocando vida por idade.

Partilha a medonhez dos bichos:
medo do silêncio,
mais pavor ainda das palavras.

Para a mulher,
Porém, ele não é senão um menino
no aguardo de um agrado.

Em redor do silêncio
ela rodopia, sem voz, sem cheiro, sem rosto.

Em solidão,
o homem come,
merecedor do que lhe é servido.

Depois,
bebe como se fosse bebido,
tragado pelo vazio dos desertos.

Dono do seu despovoado,
então, ele a agride, com ferocidade de bicho.

A mulher se estilhaça no soalho,
sombrio retrato da parede tombado.

No leito,
já servido o marido,
as lágrimas vão colando os seus fragmentos.

E a esposa volta a ser coisa.



Fernando Botero - Maria Antonieta em visita a Medelin - 1990
Botero, Maria Antonieta em visita a Medellín (1990)




FALTA DE REZA

Por insuficiência de reza,
por falsidade de crença
meu anjo me culpou
e vaticinou eterna penitência.

Mas não ajoelho
nem peço desculpa.
Não quero um deus
que vigie os vivos
e peça contas aos mortos.

Um deus amigo
que me chame por tu
e que espere por mim
para um copo de riso e abraços:
esse é o deus que eu quero ter.

Um deus
que nem precise de existir.




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2016


 Mia Couto
   In Poemas Escolhidos
   Seleção do autor. Apresentação de José Castello
   Cia. das Letras, São Paulo, 2016
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* Myriam Fraga, "Olho de vidro", in O Risco na Pele (1979)
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* Imagens: quadros de Fernando Botero (1932-), pintor colombiano contemporâneo