Número 360 - Ano 14

São Paulo, quarta-feira, 24 de agosto de 2016

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«Porque os corpos se entendem, mas as almas não.» (Manuel Bandeira) *

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Alexandre Guarnieri Alexandre Guarnieri



Amigas e amigos,

Neste boletim, boa parte de vocês vai tomar contato com um jovem poeta, do qual talvez nunca tenham ouvido falar: Alexandre Guarnieri. Carioca, nascido em 1974, é historiador da arte e mestre em tecnologia da imagem.

Especificamente na área deste boletim, Guarnieri começou em 1993, participando de eventos de poesia falada no Rio de Janeiro. É autor de dois volumes de poesia: Casa das Máquinas (2011) e Corpo de Festim (2014), sendo este último o vencedor do Prêmio Jabuti de 2015.

O poeta é ainda um dos criadores e editores da publicação online Mallarmargens - Revista de Poesia e Arte Contemporânea.

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Quem se interessa pela história da poesia brasileira a partir dos anos 50 conhece bem o trabalho das vanguardas, nomeadamente a poesia concreta, liderada pelos paulistas irmãos Campos (Augusto e Haroldo), mais Décio Pignatari, e a poesia práxis, que teve à frente o também paulista Mário Chamie.

Ao abrir os dois livros de Guarnieri, vieram-me à cabeça as propostas teóricas de Mário Chamie (1933-2011) reunidas em seu livro Instauração Práxis (Quíron, 1974) e praticadas em livros como Lavra Lavra (1962) e Indústria (1964).

A ideia, nesses livros, era proceder ao estudo de uma área (a agricultura, em Lavra Lavra; e o ambiente fabril, em Indústria), fazer um levantamento do vocabulário, e daí produzir um volume de poesia temática.

Ao dizer que os trabalhos de Alexandre Guarnieri me remetem à poesia práxis, não estou afirmando que exista uma filiação do poeta carioca a essa vertente das vanguardas paulistas. Apenas constato certas similaridades.

•o•

Em Casa das Máquinas, livro de estreia do autor, ele trabalha com elementos da indústria eletromecânica. Temos, então, poemas recheados de referências a lâmpadas, parafusos, válvulas, engrenagens, motores, cilindros e rebites. Daí o autor evolui para as relações humanas construídas ao redor desses componentes técnicos.

No livro seguinte, em vez de equipamentos industriais, a máquina em foco é o próprio corpo humano. Mais ambiciosa que a obra de estreia, Corpo de Festim parte da formação do universo (o Big Bang), passa pela origem da vida e chega, num primeiro momento, ao parto de um ser humano.

Observe-se, por exemplo, que o poema "o átomo de carbono (ii)", integrante dessa sequência, termina com "// até que [...]" (veja ao lado). Vários outros também terminam assim. Foi a forma encontrada pelo autor para sinalizar que está tratando de apenas uma parte num processo que continua.

Em seguida, vem um bloco de poemas dedicados ao funcionamento dos órgãos internos do corpo. E ainda há lembranças do primeiro livro: vários textos sobre os líquidos do organismo humano (sangue, suor, lágrima, saliva, sêmen, pus) aparecem sob o título “mecânica dos fluidos”.

Fala-se também em doenças — ou seja, o mau funcionamento dessas peças. A terceira e última seção do livro volta-se para o entrosamento social: o corpo no trabalho, convivência, sexo e morte.

Há, portanto, perceptível parentesco entre os dois títulos. Corpo de Festim, no entanto, é mais sofisticado. Em Casa das Máquinas, todo o périplo eletromecânico é apresentado em textos que formam blocos retangulares bem marcados.

O premiado título mais recente tem ainda os blocos retangulares, mas incorpora vários outros formatos gráficos, com textos alinhados à direita ou à esquerda e composições espaciais variadas.

Além disso, os fenômenos da vida são, em si, infinitamente mais complexos que os eixos e pistões das máquinas. O autor também faz o texto refletir isso, com mais referências criativas a cientistas, artistas e obras de arte.

Nos dois livros, certamente fazendo jus à especialização do autor em tecnologia da imagem, nota-se o grande esmero em fazer o design — não só dos poemas, mas também das páginas — integrar a concepção da obra.

A esse propósito, sou obrigado a dar uma explicação. Nos poemas transcritos ao lado — seis de Corpo e dois de Máquinas —, não respeitei cabalmente o jeito como aparecem nas páginas. No caso dos mais recentes, não repeti os alinhamentos à direita, devido a certas limitações de layout aqui no boletim. Também não reproduzi os blocos alinhados à esquerda e à direita (justificados) nos dois últimos textos, de Máquinas.

•o•

Os dois títulos de Alexandre Guarnieri não são livros de fácil degustação. É necessário ter certa intimidade com a poesia para reconhecer e apreciar o inegável talento, bem como o esforço empreendido pelo autor para produzir as duas obras, especialmente a mais recente. Mas Guarnieri, não há dúvida, também sabe disso.

Abraço, e até a próxima,

Carlos Machado



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LANÇAMENTO

As Cores Refletidas nas Lentes dos Seus Óculos Escuros
• André Caramuru Aubert


André Caramuru - Cores O poeta e romancista André Caramuru Aubert lança em São Paulo no dia 26/08 sua segunda coletânea de poemas, As Cores Refletidas nas Lentes dos Seus Óculos Escuros, que sai pela Editora Patuá.


Quando:
Sexta-feira, 26/08/2016,
a partir das 19h30

Onde:
Patuscada Livraria, Bar & Café
Rua Luís Murat, 40 - Vila Madalena
São Paulo, SP



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Corpo de festim

Alexandre Guarnieri


 


Hope Gangloff - Catherine Despont
Hope Gangloff, pintora americana, Catherine Despont (2012)



o átomo de carbono (ii)

sob o delicado aquário
de oceanos amnióticos
(ou a redoma de gaia
como a mais esbelta
esfera atmosférica),
é apenas este ventre
de inumeráveis entes
(a arca noética vaga
entre tantos outros
astros gravitacionais)
// até que [...]




Hope Gangloff - A night of partying
Hope Gangloff, Uma noite de festa



bem-vindo à terra firme

a carne humana, terrânea, é também marinha, e encerra,
na híbrida simetria dos membros, seu mistério anfíbio:
no corpo seco, oco e trêmulo, há água salgada por dentro;
este feto, em terra, recém-saído do útero materno,
sangra, urina e vaza, ou quando submetido a extremos
(caso o alimentem de mais ou de menos) /
imagens, palavras, ideias, nadarão no cérebro,
compartimento menos matérico; haverá
vermes e vírus hostis entre outras coisas vivas,
habitando seus muitíssimos interstícios;
oscila entre o quente/ o frio,
o rígido/ o maleável/ e líquido
(a carne se abisma nesse enigma) no que é vivo,
há algo entre se molhar e permanecer ressecado,
já quando o corpo tem início, como progredisse
— no íntimo —, um conjunto mecanismo.



Hope Gangloff - Vio et livres
Hope Gangloff, Vio et livres



mecânica dos fluidos

/o sangue


no corpo
há tão pouco espaço
entre um osso   e outro

só o óleo dos glóbulos
passa (o plasma)
quando não     é pálido

(na ampulheta viva /
sangue é tempo)

como a graxa
(da máquina)
escorre    entre

as engrenagens
               do   relógio
                bio    lógico



Hope Gangloff - Blaze 'n sauce - 2009
Hope Gangloff, Blaze 'n sauce (2009)



mecânica dos fluidos

/a lágrima


a glândula a carrega               cega
            (como na ostra    a pérola)
                   (como no arco a seta)
o sal na medida certa
(no escuro                algo coagula)
                                           pedra
até que a concha da pálpebra
                                            abra
é quando a gota vem à tona)
                           (fria e quente
                        (simultaneamente



Hope Gangloff - Queen Jane, approximately
Hope Gangloff, Rainha Jane, aproximadamente (detalhe)



a pele

homem-bomba vestindo roupa de escafandrista, seu
neoprene pressurizado capta estímulos, e por entre
pelos mínimos, válvulas regulatórias fazem-na suar
ou ressecar, contra as condições do habitat (algo
se interpõe aos poros, ou impermeabiliza as fibras);
seus sensores de calor, vigiados de uma sala
de controle, enquanto é mantida viva, (hidratado
adequadamente cada intrincado recanto) como
a máxima peça, de uma alfaiataria das mais complexas:
seria tão errado reduzi-la ao tato, costurando
ao tecido apenas um dos cinco sentidos?



Hope Gangloff - Stahl
Hope Gangloff, Stahl



cotidianometria

               fitter, healthier and more productive
               a pig in a cage on antibiotics

                      Radiohead (OK Computer, 1997)



suje as digitais de tinta /
não sorria na fotografia / cabelo cortado
apare quaisquer outros pelos /
dentifrício, desodorante / e necessário o asseio
remova óculos ou lentes / renove o ânimo
mantenha a cabeça a um determinado ângulo
sopre o bafômetro / prenda o fôlego
língua para fora, barriga para dentro
inspire, expire / (sexo oral à la marilyn manson)
nunca deixe para amanhã, faça hoje mesmo
submeta-se ao exame / não perca mais tempo
preencha corretamente os dados /
sempre recadastre-se no prazo
silicone nos seios / correção de septo
as quatro cópias no cartório / melhor prevenir
do que remediar / beba mais água, evite o álcool
livre-se da gordura hidrogenada
(opte pela salada crua) / não esqueça a data
se confesse com marcelo rossi
ao som do padre fábio de melo
guarde-se para o rapaz certo / sexo
só depois do casamento / não gaste água,
mas escove os dentes sempre
mocinhas vestem-se com decência
respeite a fila / pague em dia
seja condescendente diante da ignorância alheia
tome o remédio / tudo no horário
vá ao cinema (assista a um filme inédito)
em caso de vida ou morte: aperte o botão vermelho


          De Corpo de Festim (2014)



Hope Gangloff - Vera - 2013
Hope Gangloff, Vera (2013)



música de trabalho

enquanto dura a jornada diurna, um barulhário,
mas fora das fábricas, talvez o sono do operário
solitário o reconstrua quase à integralidade,
invadindo os tímpanos, sincopando, o ritornello
reclamado ad aeternum, um dentre tantos outros
pesadelos: o augúrio do contrato de trabalho.



nem sempre é gratuitamente lúgubre, ou longa,
a música regulatória da vida útil (nula, reclusa)
dos metalúrgicos na indústria, símiles a refis
vazios, ou quaisquer outros receptáculos defla-
grados, quando entregam dedo à fresa, vi-
nagre o sangue acre, tétano ou qualquer febre,
fusíveis sem brio ou viço, descartados, pinos
que por dispensáveis: necessário substituí-los.



Hope Gangloff - Study of Olga Alexandrovskaya - 2012
Hope Gangloff, Estudo de Olga Alexandrovskaya (2012)



rotinas

(repartição)


os rituais estoicos do escritório, entre móveis
sólidos, ásperos e numerosos módulos, e os
funcionários, do rh ou contas a pagar, "boa
tarde"
, "volte sempre", as tantas cobranças que
o chefe reclama, avulsas, ouvindo a secretária
soluçar, aplicada às duplicatas, enquanto
convulsionam os números (necessário é discá-los
todos), o monstro é um patrão eletrônico, ao
invés de mãos, há troncos telefônicos; inaptos,
se matando aos poucos estes homens que
trabalham: um por um, inúteis, caminham na calma
ao recinto sanitário, tomam pílulas diante dos
próprios rostos, projetados nos mictórios, findam
em suicídios tão limpos quanto burocráticos; as
máquinas permanecem a sós, sem ócio nem laços,
sem tempo, apenas relógios, sem sonho ou
delírio, apenas atrapalham, repetindo os mesmos
sinos; apenas trabalham, trabalham: com ódio.


          De Casa das Máquinas (2011)



poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2016


Alexandre Guarnieri
    • Os seis primeiros poemas in
       Corpo de Festim
       Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2014
    • Os dois últimos poemas in
       Casa das Máquinas
       Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2011
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* Manuel Bandeira, "Arte de Amar", in Belo Belo (1948)
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* Imagens: quadros da pintora americana Hope Gangloff (1974-)