Número 361 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 7 de
setembro de 2016 |
«De repente a mentira / põe os seus ovos de ouro
em nossa algibeira.» (Francisco
Carvalho) *
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Cassiano Ricardo
Amigas e amigos,
Máquina do tempo desengonçada. Algumas piadas na internet dizem que o Brasil começou o último agosto em 2016 e terminou em 1964. Pode não ser verdade, dessas de 2+2, mas a metáfora é perfeita. Tanto que, em face dos últimos acontecimentos, como escreveu o mestre Drummond, passei a revisitar os livros de poesia que eu lia nos anos 70.
Nessa viagem bibliográfica no tempo, fiz uma nova incursão na obra do poeta paulista Cassiano Ricardo (1895-1974). Como já disse neste espaço em duas outras oportunidades — boletins
n. 2, de 2002, e
n. 295, de 2013 —, Cassiano foi uma das portas por onde entrei para a poesia moderna.
O que me encantava na poesia de Cassiano Ricardo era o fato de ele falar dos mitos clássicos e da vida comum, da guerra fria, da tecnologia e da automação. Entre a rua e a Lua, um de seus temas eram as viagens espaciais dos anos 60 e, por trás delas, o monumental embate propagandístico e ideológico entre os EUA e o (hoje finado) bloco soviético.
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A poesia de Cassiano Ricardo põe os pés na rua. E, nesse aspecto, lamentavelmente, continua atual. Atingida por um estilhaço de bomba lançada pela polícia, uma estudante em São Paulo perdeu a visão de um dos olhos. Isso ocorreu no último dia 31/8. No livro
Jeremias Sem-Chorar (1964), o personagem-título é apresentado assim: “Um coice de cavalo / no comício / e eu — Jeremias seco — / olho de vidro”. Entende-se, portanto, de onde vem o epíteto Sem-Chorar. E o cavalo, óbvio, é também da polícia.
Ao contrário de seu homônimo bíblico, conhecido como autor do livro das Lamentações, o Jeremias brasileiro não chora, por absoluta impossibilidade de fazê-lo. Diz ele: “Vi as faces, todas, / da injustiça, na terra, / no mar, no ar. / Mas Jeremias seco, / sem poder chorar”. Estes versos estão numa parte do livro Jeremias batizada como “Lamentações eletrônicas”. Raro era o poeta que,
naquela época, falava em eletrônica.
Vale observar que Cassiano sempre manteve alguma proximidade com o personagem bíblico chorão. Já em seu livro A Frauta de Pã (1917), anterior ao modernismo, há um soneto intitulado “Jeremias”, que no caso é uma árvore, o salgueiro-chorão: “Vós que vos descuidais só em viver de alegria / chorai e entendereis uma árvore que chora!”.
Atento ao movimento das ruas, Cassiano Ricardo também publicou no livro O Arranha-Céu de Vidro (1956) o poema “Gás Lacrimogêneo”: “Aplaudi o orador do comício. / Mas aplaudi, apenas, sem nenhuma / intenção de chorar. // (...) Mas a polícia compareceu rutilante. / A sua máquina de fazer chorar / funcionou / maravilhosamente, rutilantemente. / (...) E os meus olhos choraram lágrimas / inverídicas”.
São curiosos esses dois personagens de Cassiano submetidos à violência. Um chora forçado, derrama “lágrimas inverídicas”, “sem nenhuma intenção de chorar”. O outro, com sobejos motivos para
o pranto, não verte uma só gota, uma vez que foi destituído de sua “máquina” natural de prantear.
Citei esses poemas para mostrar a atualidade de Cassiano Ricardo com as ruas. Melhor seria se fossem apenas longínquas referências históricas. Infelizmente, não são.
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Para este boletim, selecionei textos representativos de outra vertente do poeta Cassiano Ricardo, sua poesia lírica. Começo com “O Sangue das Horas”, poema que abre e intitula o livro homônimo, de 1943. Note-se aí o tom queixoso — mais uma vez, à la Jeremias —, entremeado pelas metáforas calcadas na antítese tristeza, noite, café, treva (de um lado) e a luz da lua (do outro): “É a Noite que, de tão velha, / tão velha, / criou cabelos de luar...”
Em seguida, vem o poema “No Circo”, que integra o volume Um Dia Depois do Outro (1947), um dos livros em que o poeta se mostra mais inspirado. Aqui, destaca-se a condição humana, uma das grandes preocupações
de Cassiano em toda a sua obra. É o homem/mulher, sempre oscilando entre situações ou sentimentos extremos e trazendo “em cada mão um prato / da balança. // Num a dor, noutro a esperança”.
Vem a seguir “A Canção Mais Recente”, do livro A Face Perdida (1950). Já incluí
este poema na seleção de outro boletim, mas fiz questão de repeti-lo agora, porque nele Cassiano oferece uma de suas concepções do que seja o poeta. Este, conforme o poema, “está sempre / no começo das coisas”, ajudando as pessoas a descobrir seu próprio mundo. Mesmo que haja noite — palavra quase sempre associada à injustiça, à ocultação e ao silêncio —, a “lanterna mágica” do poeta é sempre matutina. E afirma a esperança: “o amanhã / nunca deixará de ter pássa-/ros”.
Publicado originalmente em Um Dia Depois do Outro, o soneto “Ficam-me as penas” lembra a velha glosa de Camões para “Perdigão perdeu a pena”
e também trabalha com o duplo sentido dessa palavra, que indica, ao mesmo tempo, a pluma da ave e as aflições do ser humano ao longo da vida. “O pássaro fugiu, ficam-me as penas”.
Em “O Anjo Engraxate”, o poeta brinca com o lustrador de sapatos, humilde profissional que vai deixar os
“pés de barro” do narrador “resplandecentes / como os dos anjos / do Apocalipse”. Esse é o típico poema que resulta de um súbito lampejo de inteligência – uma grande “sacada”, como se diz informalmente.
“A Orquídea”, sonetilho de Um Dia Depois do Outro, é mais um poema que já apareceu aqui no boletim. Repriso-o porque nele reconheço outra brilhante sacada do poeta, que se inspira numa flor cujo formato lembra uma boca humana.
Agora, é a vez do poema “Velório”, incluído em Os Sobreviventes (1971), último livro publicado pelo poeta. Sempre capaz de inscrever em seu lirismo as preocupações da realidade, Cassiano Ricardo
reúne com mestria duas coisas que aparentemente não andam juntas. Velório é lugar de compunção e respeito, momento de reflexões transcendentais. Não é hora de pensar em dinheiro e dívidas, nem na perversa multiplicação do capital. Mas o poeta injeta no velório a correção monetária e os juros da dívida do finado — que crescem durante a noite de vigília.
Por fim, “Desenho rupestre”, um poema visual. Com
duas figuras como que traçadas em cavernas pré-históricas, o poeta revisita a fábula da cigarra e da formiga. Na verdade, ele apenas tomou a letra “g”
minúscula, presente nos nomes dos dois insetos, e colocou-a em posição normal, de pé, para simbolizar a cigarra no alto; e, deitada, para imitar a formiga. O título do “desenho rupestre” aparece embaixo: “A cigarra e a formiga”.
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Nascido em São José dos Campos, no interior paulista, Cassiano Ricardo formou-se em direito e atuou em cargos públicos. Foi inclusive chefe do Escritório Comercial do Brasil em Paris, entre em 1953 e 1954. Além de poesia, escreveu ensaios históricos e literários. Para mais informações sobre a obra do poeta, visite os dois boletins anteriores a ele dedicados:
* A multiplicação dos peixes,
poesia.net n. 295; e
* Jeremias Sem-Chorar,
poesia.net n. 2.
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Duas edições atrás, ao lembrar os 80 anos da morte do poeta Federico García Lorca, assassinado por fascistas, acrescentei: “Ainda mais num momento em que há no ar odores de fascismo dentro de nosso próprio país, que passa por enorme retrocesso no campo dos direitos sociais e das liberdades civis”.
Um amigo, leitor do boletim, teve a preocupação de me escrever, fazendo uma ressalva. Para ele, “não havia nenhum retrocesso nas liberdades”. Hoje, cerca de um mês depois, eu gostaria de estar errado e de ver confirmadas as expectativas do amigo. Desafortunadamente, os fatos dos últimos dias mostram que há, sim, flagrantes atentados às liberdades civis. Basta lembrar a profusão de prisões sem motivo, bombas, cassetetadas, gás-pimenta, gás lacrimogêneo e balas de borracha nas ruas.
Isso é o que me fez lembrar o Jeremias de Cassiano Ricardo.
Quanto aos direitos sociais, as pauladas prometidas são ainda maiores. Após destruir o ministério da Cultura, avançam sobre a educação com excrescências como a proposta Escola sem Partido. E prometem não deixar pedra sobre pedra nos direitos trabalhistas, previdenciários e na saúde.
Pelo jeito, lastimavelmente, os brasileiros precisarão ter, mais uma vez, “perna comprida e muita malícia / pra correr atrás de bola e fugir da polícia”, como registrou há mais de 40 anos o genial Chico Buarque.
Mas, de novo lembrando o poeta Cassiano, “o amanhã / nunca deixará de ter pássa-/ros”.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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LANÇAMENTOS
* O Príncipe das Nuvens
* Milênios e Outros Poemas
• Ruy Espinheira Filho
O escritor baiano
Ruy Espinheira Filho está lançando dois novos livros em Salvador:
* O Príncipe das Nuvens: Uma História de Amor Ditada pelo Espírito do Poeta C.A. Maior,
romance, que sai pela editora Descaminhos;
* Milênios e Outros Poemas, pela Editora Patuá.
Quando: Quinta-feira, 15 de setembro Das 17h às 21h
Onde:
Restaurante do Edinho
Ceasa do Rio Vermelho
Salvador, BA
O chão que em mim se move
• Carlos Barbosa
O contista e romancista baiano Carlos Barbosa lança — no mesmo lugar, data e hora
dos livros de Ruy Espinheira (acima) — sua nova coletânea de contos, O chão que em mim
se move, que sai pela Editora Penalux.
Quando: Quinta-feira, 15 de setembro Das 17h às 21h
Onde:
Restaurante do Edinho
Ceasa do Rio Vermelho
Salvador, BA
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A lanterna mágica do poeta
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Cassiano Ricardo
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Francis Picabia, pintor e poeta francês, Rosto de Mulher (1941-43)
O SANGUE DAS HORAS
Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a Noite me trouxe a lua...
Você tem sede, não é?
E a Noite me deu café.
São verdes como a esperança
as horas em que sou triste:
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.
Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura,
bebo a esperança, remédio
para as feridas sem cura...
Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar?
É a Noite que, de tão velha,
tão velha,
criou cabelos de luar...
A insônia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras...
Meus olhos são duas feridas
por onde
escorre o sangue das horas.
Entre o passado e o porvir
aqueles peixes de prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos...
Criei cabelos de luar.
De O Sangue das Horas (1943)
Francis Picabia, Morena e Loura (1941-42)
NO CIRCO
Entre o leste e o oeste
entre Deus e o Demônio
entre o ser e o não ser
entre o alguém e o ninguém
entre a hora
do coração e a do estômago,
ando na corda, e de braços
abertos,
em cada mão um prato
da balança.
Num a dor, noutro a esperança.
De Um Dia Depois do Outro (1947)
Francis Picabia, Hera (1929)
A CANÇÃO MAIS RECENTE
O poeta
com sua lanterna
mágica está sempre
no começo das coisas.
É como a água, eterna-
mente matutina.
Pouco importa a noite
lhe ponha a pena
do silêncio na asa.
Ele tem a manhã
em tudo quanto faça.
Além disso o amanhã
nunca deixará de ter pássa-
ros.
De A Face Perdida (1950)
Francis Picabia, A elegante (1942-43)
FICAM-ME AS PENAS
O pássaro fugiu, ficam-me as penas
da sua asa, nas mãos desencantadas.
Mas, que é a vida, afinal? Um voo, apenas.
Uma lembrança e outros pequenos nadas.
Passou o vento mau, entre açucenas,
deixou-me só corolas arrancadas...
Despedem-se de mim glórias terrenas.
Fica-me aos pés a poeira das estradas.
A água correu veloz, fica-me a espuma.
Só o tempo não me deixa coisa alguma
até que da própria alma me despoje!
Desfolhados os últimos segredos,
quero agarrar a vida, que me foge,
vão-se-me as horas pelos vãos dos dedos.
De Um Dia Depois do Outro (1947)
Francis Picabia,
Retrato de Suzane (1941)
O ANJO ENGRAXATE
(trecho inicial)
Como soubeste,
ó anjo da rua,
que tenho os pés
de crocodilo?
Como soubeste,
ó anjo da rua,
que o meu sapato
já foi lacustre?
e que preciso hoje
ficar ilustre?
Como soubeste,
ó anjo da rua,
que eu quero ter
(pra que ninguém,
hoje, me eclipse)
os pés de barro
resplandecentes
como os dos anjos
do Apocalipse?
De Um Dia Depois do Outro (1947)
Francis Picabia,
Retrato de Mulher
A ORQUÍDEA
A orquídea parece
uma flor viva, uma
boca, e nos assusta.
Flor aracnídea.
Vagamente humana,
boca, embora feita
de inocentes pétalas,
já supõe perfídia.
Já supõe palavra
embora muda.
Já supõe insídia.
Que estará dizendo
o lábio quase humano
da orquídea?
De Um Dia Depois do Outro (1947)
Francis Picabia, Autorretrato (1935-40)
VELÓRIO
1
O cadáver do devedor
e a mosca
da correção monetária
zumbindo
na flor
do caixão.
Aumentando seu débito
fiscal depois do óbito
(de minuto em minuto)
Cresce-lhe a barba.
Crescem-lhe
as dívidas nas faces
(lívidas)
depois de morto.
Silêncio tão tenso e
insólito
que se faz audível.
Que o ouvimos brotar
em nós. Como um caule,
na sala.
Até a flor do caixão
ficar fruto
no chão.
2
Manhã.
Suor frio no vidro
O cadáver exposto.
A mosca
da correção monetária
agora pousada em seu
rosto.
Já crescida.
E acrescida
com os juros
da noite.
De Os Sobreviventes (1971)
DESENHO RUPESTRE
Título: A CIgARRA E A FORMIgA
De A Difícil Manhã (1960)
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2016
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Cassiano Ricardo
• Todos os poemas de O Sangue das Horas;
Um Dia Depois do Outro; e A Face Perdida in
Poesias Completas
José Olympio, Rio de Janeiro, 1957
• "Velório" in
Os Sobreviventes
José Olympio, Rio de Janeiro, 1971
• "Desenho Rupestre" in
A Difícil Manhã
Livros de Portugal, Rio de Janeiro, 1960
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* Francisco Carvalho, "As
Curvas de Eros", in Rosa dos Eventos (1982)
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* Imagens: quadros do pintor
e poeta francês
Francis Picabia (1879-1953)
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