Número 362 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 21 de
setembro de 2016 |
«Calo-me, espero, decifro. / As coisas talvez
melhorem. / São tão fortes as coisas! // Mas eu não sou as coisas e me revolto.» (Drummond) *
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Gilberto Nable
Amigas e amigos,
Nesta edição, o poesia.net revisita a obra do médico, contista e poeta mineiro Gilberto Nable (Aiuruoca-MG, 1954). O autor já esteve aqui dez anos atrás — no
boletim n. 190, de 22/11/2006 —, após o lançamento de seu livro Percurso da Ausência, naquele ano. Depois, ele já deu a público outros
dois livros: O Mago sem Pombos, (2008) e O Tratador de Canários (2010).
Gilberto Nable estreou em 1988 com o volume Elegias Urbanas e Outros Poemas. Em seguida, publicou o livro de contos Menino Abstrato (1995).
Para o presente boletim, selecionei dois poemas de Percurso da Ausência (diferentes dos já mostrados aqui) e quatro de O Mago sem Pombos.
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Na orelha do primeiro desses dois livros o saudoso poeta
Donizete Galvão (1955-2014) escreve: “Gilberto Nable é daqueles homens que sentem a dor do tempo a atravessar o corpo como uma flecha. Esta ferida sempre aberta deve estar mesmo na raiz de sua vocação para a medicina, na busca da cura para a dor alheia”.
Eu não teria nada a acrescentar ao diagnóstico traçado por Donizete Galvão para sugerir de onde pode vir a poesia de Nable. Dono de uma sensibilidade sufocante diante das mazelas do mundo, Nable encontrou na elegia seu instrumento de expressão.
É em tom de lamento e tristeza que ele aprecia poeticamente os desconcertos da vida, pessoal ou social.
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No poema “VIII”, de “Percurso da Ausência” — divisão do livro homônimo —, Nable começa como um médico examinando o paciente: “Ponha o dedo na ferida. Dói?” Vêm depois as orientações para curar (ou enganar) a dor: “Abra as gavetas da alma, / deixe-as ventando na planície”. Não se sabe se o paciente — que afinal pode ser o próprio médico — detém as manhas e astúcias necessárias para manusear essas complicadas gavetas.
O outro texto de Percurso é “Fantasmas”. Nele o poeta trabalha com memórias de família num tom de fábula quase surrealista. São os bastidores da casa e as histórias inacreditáveis de avós e tios e primos e toda a parentalha estendida das velhas famílias do interior. “Então os fantasmas pularam das molduras / e cada qual reassumiu seu posto”.
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Passemos aos textos de O Mago sem Pombos.
Nesse livro, o tom permanece elegíaco, mas o poeta se volta mais para as perplexidades da vida humana. No poema “I”, destaca-se a fragilidade da existência. Ontem alguém “abria conta na poupança” e “dizia seguro: — Até amanhã!”. Não houve amanhã.
No poema “III”, o mesmo desconsolo. “Não nascem coelhos de cartolas. / Nem o beijo que te deram é teu. / Olhai a mão do mago, atrás do espelho, // movendo os invisíveis cordões”. Aqui, o homem pensativo tenta, a todo custo, dar de ombros para a realidade. Mas o tempo lhe pesa no dorso e não permite sequer esse gesto de alienação.
A tentativa é a mesma no poema “XIII”. Retorna o lamentoso pensador: “eu vejo a paisagem de Hiroshima, / o esqueleto descarnado do século, / e meus olhos não choram mais. / Não choram”. Sabemos que não é verdade. Talvez, como o Jeremias Sem-Chorar de
Cassiano Ricardo, ele não verta mais lágrimas, líquidas e visíveis, mas seu corpo e sua alma continuam em completo estado de pranto.
Vem, por fim, o poema “XVI”. Aqui, desesperado, trafegando em “corredores de escuridão e assombros”, o Jeremias de Nable tenta buscar consolo no vinho e em bordéis. Mas ele sabe que toda aquela alegria é falsa. Não dura, nem cura.
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Enfim, somos magos incapazes de extrair prodígios da cartola. Coelhos e pombos são falsos, não resolvem nossos dilemas. Mas a poesia de Gilberto Nable, aguda e pungente como uma injeção intravenosa, ajuda-nos a suportar nossas penas existenciais e a encarar, juntos, os escombros do dia.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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LANÇAMENTO
Evento no início de outubro, em Porto Alegre-RS.
Musgo
• Jorge Béria
O
médico, professor universitário e poeta gaúcho Jorge Béria lança em Porto Alegre
no dia 06/10 sua nova coletânea de poemas, Musgo, que sai pela
Chiado Editora.
Quando: Quinta-feira, 06/10/2016,
às 19h00
Onde:
Instituto Ling
Rua João Caetano, 440 Três Figueiras
Porto Alegre, RS
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SOBRE AS PINTURAS NO POESIA.NET
Uma leitora do boletim escreveu-me sugerindo que eu desse mais informações sobre os artistas cujas obras são mostradas
em cada edição do poesia.net. Respondi-lhe que discorrer sobre artes plásticas não é bem a nossa praia, mas na
verdade o boletim já oferece o serviço sugerido.
Observe-se que, no rodapé da página, sempre aparecem os créditos: os livros de onde foram extraídos os poemas (inclusive a
epígrafe do cabeçalho) e o nome do/a artista plástico/a "em cartaz", com um link para o site dele/a (se existir) ou uma
página com sua biografia.
Esse link está em todas as edições publicadas depois que o poesia.net passou a usar um único artista assinando todas
as ilustrações.
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O mago sem pombos
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Gilberto Nable
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Andrew Atroshenko, pintor russo, Paixão pela música
PERCURSO DA AUSÊNCIA - VIII
O que é? Já foi.
Ponha o dedo na ferida. Dói?
Não. Sempre doía.
Desce Morfeu sobre a dor,
mas com delírio e náusea.
Abra as gavetas da alma,
deixe-as ventando na planície.
E elas não recolherão nada,
a não ser tua solidão.
Andrew Atroshenko, Sax
FANTASMAS
Bobagem esperar outra coisa,
pois tudo deu no que deu.
Não sobrou uma migalha na mesa
quando o último convidado sumiu.
Mas esqueceram a lâmpada acesa,
algumas portas e janelas abertas.
Desfecho apressado de festa,
em casa, agora, abandonada.
Então, os fantasmas pularam das molduras
e cada qual reassumiu seu posto.
Vovó Marieta traz o pudim de leite.
Tia Celeste se espichou no terreiro,
e jaz, transfigurada pela luz da lua.
Vovô Nagib ameaça com a bengala,
atazanado com tamanha bizarria.
Donana e o eterno bordado
cheio de flores azuis e andorinhas.
Tio Vicenzo atravessa as paredes,
e bêbado, no terno lastimável,
aponta, rindo, para minha mãe,
dançando acima dos telhados,
com uma rosa negra na boca.
E dança de pés descalços,
como se ainda fosse criança.
Os mortos são malcomportados.
Bando de funâmbulos em fúria,
refazem o que foi minha família,
fadada ao desastre e à insânia.
Porque insano sempre fui.
E por não saber mendigar,
me reduziram à indigência das palavras,
onde me recolho com meus fantasmas.
De Percurso da Ausência (2006)
Andrew Atroshenko, Trompete
O MAGO SEM POMBOS - I
Para Júlio C. Machado de Paula
A vida é como dar comida
a peixes no aquário.
Dela não fica um cisco.
Não sobra um traço.
Ontem ria feliz na varanda,
olhava as flores no jardim,
fazia planos de viagens.
Abria conta na poupança
em esquisita avareza.
Dizia seguro: — Até amanhã!
Hoje, ninguém à mesa,
nem mesmo posta.
Comentam depois:
— Absurdo!
Contudo é assim
desde o princípio.
Desde a fundação do mundo.
Simples como uma certeza antiga
e sempre esquecida.
Andrew Atroshenko, Contrabaixo
O MAGO SEM POMBOS - III
Para Donizete Galvão
Desconsolado feito mago sem pombos,
a quem ninguém deu uma lição de calma,
procuro, ainda entre livros, alma e alento.
Coisas que eles — quase nunca — têm.
Ou teriam se fossem menos esquivos,
e o signo do tempo não fosse equívoco.
Vivi o bastante para saber, aos poucos:
o voo da coruja acontece à tarde, tarde,
entardece até mesmo o vento, os grilos.
Mas, outros rumos não pretendi de mim,
avesso, seco, muitas vezes cansado,
aparentado a becos, auroras, botequins.
Pouco se me dá — traga o dia seu lento
cortejo de breves notícias e mentiras,
os homens se devorem no tempo.
Erro meu, só meu, se esperei muito,
acreditei mais além do que devia:
do ar parado não nascem borboletas.
Nem nascem coelhos de cartolas.
Nem o beijo que te deram é teu.
Olhai a mão do mago, atrás do espelho,
movendo os invisíveis cordões.
Andrew Atroshenko, Guitarra
O MAGO SEM POMBOS - XIII
A glória passa, ao longe,
com seus tambores e penachos.
Mas a vida é tão-só desamparo.
Repare no céu imenso,
nesses infinitos vazios,
nas pirâmides do Egito:
magnificência e pó.
Não repare em mim,
que a tua mesa não trago pão,
nem vinho, nem animo festa:
apenas palavra e irrisão.
Como se o vento da Sibéria
soprasse no meu cabelo,
e da ponta de meu coração
pendesse o fogo do gelo,
eu vejo a paisagem de Hiroshima,
o esqueleto descarnado do século,
e meus olhos não choram mais.
Não choram.
Andrew Atroshenko, Música
O MAGO SEM POMBOS - XVI
Para Renata Pallottini
Percebo que não valeu a pena.
Foi apenas um tempo perdido.
Por que descobrimos, só depois,
o que antes parecia tão certo?
Atrás de ti fecharam-se as portas,
e abrem-se os turvos rios da memória:
escombros, gestos, palavras, mitos,
corredores de escuridão e assombros.
Entre eles volteias, o impróprio,
vindo de onde, dono sei lá de quê,
armado até os dentes de imposturas,
e sobre tua cabeça — o século.
Este século que muito desanima,
e te faz recolher, falto de estima,
a velhos bordéis e prostíbulos,
povoados duma fingida alegria.
Ali, onde os garçons são sérios,
e te servem o vinho pressurosos,
cheios de vênias e guardanapos.
Ali, onde remendas teu coração.
De O Mago sem Pombos (2008)
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2016
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Gilberto Nable •
"Percurso da Ausência - VII" e "Fantasmas" in Percurso da Ausência
7Letras, Rio de Janeiro, 2006 •
Todos os outros poemas in O Mago
sem
Pombos
7Letras, Rio de Janeiro, 2008 ______________
* Carlos Drummond de Andrade, "Nosso Tempo", in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens: quadros do pintor russo
Andrew
Atroshenko (1965-)
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