Número 363 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 5 de
outubro de 2016 |
«Os deuses vendem quando dão. /
Compra-se a glória com a desgraça. / Ai dos felizes, porque são / Só o que
passa!» (Fernando
Pessoa) *
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Rosa Ramos
Amigas e amigos,
A escritora em foco nesta edição é Rosa Ramos, uma poeta estreante. Mas não se pense,
por causa do "estreante", que vamos encontrar alguém dando os primeiros e
indecisos passos na escrita. Trata-se, ao contrário, de uma autora dotada de mão firme e expressão madura.
Rosa Ramos — no registro civil, Rosane Ramos — é carioca de 1955. Há bastante tempo, publica poemas em jornais, revistas literárias e sites da internet. Participou também de algumas antologias poéticas, mas somente agora está lançando seu primeiro livro solo, Canto de Arribação (Editora da Palavra, Rio, 2016).
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Um traço que se pode observar na poesia de Rosa Ramos é a ausência de ilusões ou escorregadelas na ingenuidade, seja na técnica poética, seja na inocência diante de questões existenciais.
Em “Enredo”, o terceiro poema em Canto de Arribação, a poeta faz uma espécie de pequena profissão de fé. “Sim. Porque é disso que se trata. / Das baratas.” De saída, uma definição de território. Não estamos nas nuvens ou num edulcorado conto de fadas. O chão é este aqui, onde há baratas,
"estas salas escuras", "taras ancestrais".
E é para dentro desse ambiente que ela contrabandeia uma breve referência à arte poética: “[É disso que se trata.] / De rimas comuníssimas. / De preguiça”. Mesmo no desvio da arte, as rimas não são raras, não há rigor nem primor. Há preguiça. Ou seja, é a realidade tomada ao rés do chão, sem maquiagem. “Pois é disso que se trata. / Medo”.
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Dentro do mesmo clima desenvolvem-se poemas como “Respiração” e “Noite”. No primeiro, aparece um contexto urbano cru, irrespirável “(buzinas, tiros, freadas bruscas)”,
onde uma personagem feminina resiste. No outro, o ar não parece mais agradável: “Nem brilho nem encantamento. / A noite conclama seus assassinos”.
Em “Vigília”, o lugar é mais íntimo. O narrador — um(a) poeta? — insone está em seu quarto às voltas com um anjo. Mas, como se pode imaginar do que já foi visto até aqui, não se trata de um ente barroco, cheio de candura. É um anjo terrível, “contrário à beleza”, que se exibe como um enforcado pendente
num cordão. Um pesadelo.
“Dia” tem um andamento de crônica centrada no Rio de Janeiro. O personagem
central é a manhã, que desperta e vai caminhando pela cidade e, na pele de um trabalhador, embarca num trem da Central do Brasil.
Vem, por fim, o poema “Duo”, uma simpática brincadeira literária. Aqui os personagens são um equilibrista insólito apaixonado por uma moça sonâmbula. Na caracterização desse duo incomum já se observa o tom esdrúxulo que vai dominar toda a narrativa. Delicioso e excêntrico idílio.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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LANÇAMENTO
Evento nesta quinta-feira, em Porto Alegre-RS.
Musgo
• Jorge Béria
O
médico, professor universitário e poeta gaúcho Jorge Béria lança em Porto Alegre
no dia 06/10 sua nova coletânea de poemas, Musgo, que sai pela
Chiado Editora.
Quando: Quinta-feira, 06/10/2016,
às 19h00
Onde:
Instituto Ling
Rua João Caetano, 440 Três Figueiras
Porto Alegre, RS
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SOBRE AS PINTURAS NO POESIA.NET
Uma leitora do boletim escreveu-me sugerindo que eu desse mais informações sobre os artistas cujas obras são mostradas
em cada edição do poesia.net. Respondi-lhe que discorrer sobre artes plásticas não é bem a nossa praia, mas na
verdade o boletim já oferece o serviço sugerido.
Observe-se que, no rodapé da página, sempre aparecem os créditos: os livros de onde foram extraídos os poemas (inclusive a
epígrafe do cabeçalho) e o nome do/a artista plástico/a "em cartaz", com um link para o site dele/a (se existir) ou uma
página com sua biografia.
Esse link está em todas as edições publicadas depois que o poesia.net passou a usar um único artista assinando todas
as ilustrações.
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É disso que se trata. Medo.
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Rosa Ramos
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William Schneider, pintor americano, Rainha de Copas
ENREDO
Sim. Porque é disso que se trata.
Das baratas.
Destas salas escuras.
Da loucura.
Das taras ancestrais.
Dos cristais.
De postigos ao vento.
Pentimento.
De rimas comuníssimas.
De preguiça.
De um homem, uma ilha.
Redondilhas.
E de ainda muitas coisas
que não cabem nesse enredo.
Pois é disso que se trata
Medo.
William Schneider, Convite para dançar
RESPIRAÇÃO
Necessário é respirar,
sorver a música que nos circunda
(buzinas, tiros, freadas bruscas)
sem receio ou torcer de narizes.
Sejam odores de rosas,
seja catinga nauseabunda,
tudo é parte da vida.
Necessário erguer o rosto
para o além-tudo,
soltar a voz
para louvar-te,
senhor das moscas
e pesar os seios,
aconchego e alimento
de meninos.
William Schneider, Mas a que preço? (detalhe)
VIGÍLIA
Um anjo plana
sobre a cama
com a asa esquerda depenada.
Preso a um fio
brinquedo
móbile
ele me olha
e não suporto a sua mirada
Plana, gira,
a asa íntegra
em labaredas.
Ígnea chama sobre minha cabeça.
E se por temor se guarda
a arte e a poesia nos armários
é que o anjo — terrível! —
contrário à beleza
transfigurou-se no enforcado.
A cabeça pende para um lado
o fino fio torna-se cordão
onde havia asas
braços e mãos
que se alongam como um rastilho
atrás da sombra.
A noite tarda em despertar-me da insônia.
O anjo, este
resta desarticulado
no ar.
Despido de suas vestes,
tão vivo
que o posso tocar.
William Schneider, Moça espanhola
NOITE
A noite basta ao veneno das horas.
Pelas calçadas, mulheres tristes
com os seios à mostra, sorriem.
As paixões exalam seus cheiros,
camundongos saem dos bueiros,
homens se escondem pelos becos
a vomitar seus estercos.
A noite basta a seus comparsas.
Os poetas já se foram, e os violeiros.
Sobrou à lua iluminar os travesseiros
de papelão dos meninos nas calçadas.
Nem brilho nem encantamento.
A noite conclama seus assassinos.
William Schneider, Princesa
DIA
A manhã desperta vermelha
sobre a Lagoa Rodrigo de Freitas,
carpindo a noite morta
entre telhados e parabólicas.
Caminha Enseada e Baía
acima da rouca litania
dos rebanhos de quatro rodas.
Aquece o vendedor de pipoca
os homens de muitas gravatas
e a cavalaria da madrugada.
Depois segue, apressada e morna,
a turba do "em-cima-da-hora"
que chega suada à Central
e já no ventre do trem tenta ler o jornal.
William Schneider, Tradições
DUO
O trágico
funâmbulo
com seu
tentáculo
insólito
vai trôpego
ao encontro
da moça
sonâmbula.
Sua nádega
balança
na corda
nem firme
nem bamba
a linha
dinâmica.
Das faces
as pálpebras
caem
no etéreo
instante.
Caem
unânimes
os dedos
de plasma.
Joelhos
desmontam.
Dois pés
falseiam
diante
da moça
fantasma.
O trágico
funâmbulo
desmaia.
Desaba
no vácuo
de amor
que a moça
inventa
com passos
de pânico.
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2016
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Rosa Ramos • Canto de Arribação
Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2016 ______________
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Fernando Pessoa, "Segundo / O das quinas", in Mensagem (1934)
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* Imagens: quadros do pintor americano
William Schneider (1945-)
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