Número 364 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 19 de
outubro de 2016 |
«Uma noite, sentei a beleza no meu colo. — E a
achei amarga. — E injuriei-a.» (Arthur
Rimbaud) *
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Ricardo Aleixo
Amigas e amigos,
Conheci o mineiro Ricardo Aleixo (Belo Horizonte, 1960) no início dos anos 2000.
Primeiro — não lembro em qual circunstância —, tive notícia do poeta. Depois,
encontrei-o em pessoa, num evento de literatura em São Paulo. Gentil, atencioso,
bom papo, fez questão de me oferecer seu livro Máquina Zero (2003),
que era então o mais recente.
Em seguida, fiz o primeiro boletim com Ricardo Aleixo, o
número 108, em 2005.
Alguns anos mais tarde, creio que em 2011, encontrei o poeta uma segunda vez — e,
por enquanto, última —, em mais uma tertúlia paulistana. Por fim, de longe, tomei
conhecimento de outra faceta do poeta, o cidadão Ricardo Aleixo.
Essa aproximação foi feita, aqui e ali, lendo seu blog, o Jaguadarte, ou
acompanhando entrevistas e performances no
Facebook, no
YouTube e em outras mil
e uma esquinas da internet. Conheci ali o cidadão, o artista que defende o
valor de sua arte e não se furta a empenhar sua voz no bom combate
em favor dos espaços democráticos e da cidadania para todos.
•o•
No poeta, vejo em Ricardo Aleixo um sujeito que não se cansa de pesquisar, descobrir,
correr atrás. Um artista que não se contenta com pouco ou, mesmo que seja muito,
com aquilo que representa apenas os mesmos roteiros já percorridos. Inquieto e experimentador, chamá-lo de poeta é pouco.
Melhor seria artista, ou multiartista.
Aleixo é músico, cantor e performer, e combina tudo isso em espetáculos que têm música, imagem, sons, vozes, cores, palavras. E, claro, poesia.
E sua arte vai — e já foi — longe. Além de apresentar-se em eventos culturais em todo
o Brasil, Aleixo tem corrido mundo (Argentina, Portugal, Alemanha, França, Espanha,
México...) mostrando suas intervenções.
Neste boletim em que revisito a obra poética de Ricardo Aleixo, lanço mão de minha
tesoura cega para fazer um recorte pessoal e arbitrário em sua poesia. Seleciono aqui
alguns poemas que, em meu ponto de vista, destacam principalmente o cidadão.
•o•
Escolhi poemas de Ricardo Aleixo extraídos de três de seus livros: Mundo Palavreado (2013),
Modelos Vivos (2010) e Trívio (2002). Vale registrar que o poeta lançou em 2015
sua mais recente coletânea de poemas, Impossível Como Nunca Ter Tido um Rosto, obra
que ainda não conheço.
De onde extraí a ideia de destacar o cidadão Aleixo em seus poemas? Primeiro, sem dúvida, por
causa de alguns textos nos quais o poeta parte de uma história pessoal ou observa o mundo com
um olhar no qual já está embutido um princípio ético de mal-estar e inconformidade diante da
injustiça.
Ao escolher estes poemas de Ricardo Aleixo, deixei de lado algumas criações mais de vanguarda,
como certos poemas gráficos que seriam difíceis de reproduzir aqui. Esse foi também um dos motivos
que me levaram a optar pelo critério de seleção adotado.
•o•
O primeiro poema da seleção é “Lema”, que está em Mundo Palavreado, um livro que o autor
diz ter sido escrito pelo menino que carrega dentro, ou muito perto, de si. “Lema” é, mesmo,
uma declaração ética que funciona como uma divisa pessoal.
Pinçado em Modelos Vivos, o poema “A Doença Como Metonímia” é uma reportagem cruel
das condições de trabalho dos operários das minas de ouro de Morro Velho, em Nova Lima,
na região metropolitana de Belo Horizonte. A silicose, doença profissional, é causada por
acúmulo de poeira no pulmão. A ironia, no poema, está no fato de os
trabalhadores terem orgulho de ser “duas vezes mineiros”,
trabalhando (e morrendo) na extração de ouro.
“Convivo Muito Bem Com os Cães da Rua”, que está presente tanto em Modelos Vivos como em
Mundo Palavreado, apresenta uma lição de vida aprendida com esses animais
que vagam na cidade.
Ricardo Aleixo aprecia os orikis, composições (originariamente em língua iorubá)
que no candomblé exaltam ou saúdam um orixá. Em vários de seus livros, encontram-se exercícios
que imitam o andamento poético dessas orações. Transcrevo aqui o poema “Obá Kossô”,
uma louvação a Xangô.
O poema “Rondó da Ronda Noturna” refere-se a uma terrível mazela social brasileira.
Trata-se do massacre diário de jovens negros nas periferias das grandes cidades.
Conforme relatório divulgado em junho último pelo
Senado Federal, todo ano, 23,1 mil jovens negros, de 15 a 29 anos, são assassinados
no Brasil. São 63 por dia. Um a cada 23 minutos. Uma hecatombe, mais ampla do que ocorre em guerras.
A “Ronda” do título refere-se à polícia, apontada pelo documento do Senado como responsável
por importante parcela dessas mortes. Em minha opinião, este poema de Ricardo Aleixo é uma
das construções artísticas mais criativas e contundentes da atualidade brasileira. Os recursos
gráficos dizem tudo: a noite, a rua, as luzes e as cruzes. E quanto mais negro mais alvo.
O próximo poema faz referência à bióloga e filósofa feminista norte-americana Donna Haraway,
autora do “Manifesto Ciborgue”. Ela defende a ideia de usar a tecnologia em benefício da construção
de novas identidades e sexualidades. É disso que fala o bem-humorado poema de Ricardo Aleixo.
Nesse aspecto, a proposta de Haraway está resumida na última estrofe do poema, com direito
a citação de Raul Seixas.
Por fim, um poemeto com traços autobiográficos. Intelectual refinado, Ricardo Aleixo é autodidata.
Eis por que, nesse texto, ele fala: “Abrigar / em mim // mesmo /o mestre // e o Emílio”. Aqui,
mais uma referência sofisticada à literatura. No romance pedagógico Emílio, ou Da Educação
(1762), Jean-Jacques Rousseau propõe como deve ser a educação de Emílio, o
aprendiz, e o
papel do mestre — figuras que no poema se resumem numa só pessoa.
"Fugi da escola para poder estudar com dedicação só o que me aprazia" — dizem,
fora do poema, o aluno e o professor
que residem no poeta Ricardo Aleixo.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
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•o•
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O mundo dentro das palavras
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Ricardo Aleixo
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Alexa Meade, pintora americana, Jaimie (2010)
LEMA
tem que ter palavra para ser humano
tem que ser humano para ter palavra
Alexa Meade, Retrato de um autorretrato (2016)
A DOENÇA COMO METONÍMIA
Trabalhadores da
St. John del Rey Mining
Company, em Nova Lima,
Minas, gabam-se
de sua origem
("mineiros duas vezes").
Mas descon-
fiam que viver
é para nada: morrem
cedo, antes de aprenderem,
p. ex., a soletrar pneumoultra-
microscopicossilicovulcanoconiose
(= silicose, simpli-
ficam os que ficam).
Alexa Meade, Dois homens
CONVIVO MUITO BEM COM OS CÃES DA RUA
Convivo muito bem com os cães da rua.
Me apraz o velho e bom modo de vida
que os faz, sem ter do que cuidar na vida,
medir distâncias de uma a outra rua.
Comparto com os cães o ar da rua.
Se um deles me dirige um riso cardo,
como quem dissesse "E aí, Ricardo?",
respondo-lhe: "Olá, irmão!" E a rua,
que até há pouco era só mais uma rua
por onde vadiavam um cão e um bardo
(cada um caçando, do seu jeito, a vida),
me obriga a distinguir, nela, o que é vida
real do que será, quem sabe, um tardo
sinal do quão são irreais o cão e a rua.
Alexa Meade, Abra os olhos (modelo realmente vivo)
OBÁ KOSSÔ
Xangô, Obá Kossô, cobre
a cabeça com sua coroa de cobre
e chega, portando a pedra do raio:
tudo brilhando nele, tudo
mudado em segredo, todas as
loas para ele — elefante
que anda com porte de rei,
cavalo que manda e desmanda
como um rei, pantera preta,
senhor rei de Agasu —, aganju
que bloqueia o rio e queima
a chuva com o raio.
RONDÓ DA RONDA NOTURNA
q uanto +
p obre +
n egro
q uanto +
n egro +
a lvo
q uanto +
a lvo +
m orto
q uanto +
m orto +
u m
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DONNA HARAWAY
um dia eu sentei
a mãe natureza no colo
quando o lance ia fluindo
mão aqui língua acolá
o prazer dando sem dó
na cara da culpa
a mama natura me diz
à queima-roupa
totalmente na dela
com aquela voz sexy
que só ela:
ricardo
filhinho
larga
dessa conversa
de retorno
a pindorama
patriarcado matriarcado
é tudo vice-versa
é tudo igual
só muda a forma
da coisa entre as coxas
de quem manda
e completou
para minha surpresa:
eu mesma já cansei
de ser tratada como deusa
mãe primitiva
fêmea primeva e tal
eu prefiro ser
uma ciborgue
corpo elétrico eletrônico
mutante
sem nexo
nem sexo definido
uma metamorfose ambulante
Alexa Meade, Jaimie and Alexa (a modelo pintada e a artista)
EXÍLIO
Escapar
da escola
e estender
ao mundo
meu
exílio.
Abrigar
em mim
mesmo
o mestre
e o
Emílio.
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2016
Foto de Ricardo Aleixo: Paulo Filho
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Ricardo Aleixo •
"Lema" in Mundo
Palavreado
Ilustrações: Silvana Beraldo
Peirópolis, São Paulo, 2013 •
"A Doença Como Metonímia", "Exílio", "Donna Haraway" e
"Convivo Muito Bem com Os Cães da Rua" in Modelos Vivos
Crisálida, Belo Horizonte, 2010 •
"Rondó da Ronda Noturna" e "Obá Kossô" in Trívio
Scriptum, Belo Horizonte, 2002
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* Arthur Rimbaud, in Uma Temporada no Inferno (1873)
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* Imagens: Trabalhos de
Alexa Meade (1986-), artista norte-americana que desenvolveu uma técnica de
pintar o corpo de modelos e depois fotografá-los. As pinturas vistas aqui
são fotos de tais instalações.
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