Número 366 - Ano 14 |
São Paulo, quarta-feira, 16 de
novembro de 2016 |
«De repente a mentira / põe os seus ovos de ouro
em nossa algibeira.» (Francisco
Carvalho) *
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António José Forte
Amigas e amigos,
O poeta português António José Forte (1931-1988) é praticamente
desconhecido no Brasil. Eu também o conhecia apenas de nome e de alguma referência passageira como autor ligado ao surrealismo.
No entanto, há alguns meses, uma amiga portuguesa me presenteou com um exemplar de Uma Faca nos Dentes, volume que reúne toda a poesia de António José Forte, prefaciado pelo poeta Herberto Helder e ilustrado pela pintora Aldina.
António José Forte trabalhou na Fundação Galouste Gulbenkian, entidade cultural na qual exerceu, durante mais de vinte anos, a função de encarregado das bibliotecas itinerantes.
Estreou em poesia com o título 40 Noites de Insônia de Fogo de Dentes numa Girândola Implacável e Outros Poemas (1958), ao que se seguiram Azuliante (1984), Caligrafia Ardente (1987) e Corpo de Ninguém (póstumo, 1989). Esses títulos estão reunidos no citado volume Uma Faca nos Dentes, de 2003. Ao que me conste, nenhum livro de Forte foi lançado no Brasil.
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Ligado ao movimento surrealista nos anos 1950, o poeta integrou o Grupo do Café Gelo, em Lisboa, do qual também fizeram parte nomes como os poetas Mário Cesariny e o já referido Herberto Helder, entre vários outros menos (ou não) conhecidos no Brasil.
O ambiente desses surrealistas portugueses é o pós-guerra, em plena ditadura salazarista. Maria de Fátima Marinho *, estudiosa do movimento, diz que Forte, não podendo responder à pergunta “O que pode um homem desesperado quando o ar é um vómito e nós seres abjectos?”, buscava refúgio no absurdo e no nonsense.
Obviamente, sentir-se um ser abjeto corresponde
à situação de mal-estar e impotência diante do arbítrio, “quando o ar é um vômito”. Não por acaso, Forte filiava-se à corrente surrealista portuguesa identificada como “abjecionismo”. Quem contestava o sistema de forma explícita estava na prisão ou no exílio. Aos abjecionistas restava, pois, o humor macabro e o contrassenso. Para a poesia, uma saída possível em tempos de infâmia.
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A obra poética de António José Forte não é extensa. Uma Faca nos Dentes, a reunião de seus textos, constitui um volume magro. Dele selecionei seis poemas.
Começo com “O Poeta em Lisboa”, que é exatamente o poema de Forte mais citado. Mesmo sem manter regularidade métrica, a leitura flui de forma natural e o despropósito das frases, pontilhado pelas rimas, confere ao texto um sabor todo especial. O poeta “não pensa no fim do mês. / A noite é a sua única certeza”.
“Desobediência Civil” é o próximo poema. Trata-se de um
texto longo, do qual transcrevo aqui apenas o trecho final. Em meio aos aparentes disparates costumeiros, o humor cáustico e as pequenas provocações: “porque a língua portuguesa não é a minha pátria / a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria”.
Num só jato, o poeta recusa a pátria sob o salazarismo e ainda inverte a frase do
maior ícone da modernidade lusa, Fernando Pessoa.
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Os textos seguintes têm todos o mesmo título: “Poema”. Para distingui-los, acrescentei, entre colchetes, os números de 1 a 4. Em “Poema [1]”, o poeta oferece um exemplo acabado de humor macabro. Alguém “escutou atentamente a música das esferas / e não lhe achou sentido”. Então, suicida, disparou um tiro no ouvido.
“Poema [2]” descreve outra cena de nonsense, esta sem morbidez e até com
alguma dose de graça. Trata-se de um banquete ao qual as musas comparecem nuas
e os poetas de gravata (vestidos ou nus?). O cardápio inclui vinhos, lagostas e
“carne de licorne” — ele mesmo, aquele animal fabuloso de chifre único. No final,
aqui a lógica prevalece, “os poetas e as musas / saem pelo espaço / em camas voadoras”.
No “Poema [3]” António José Forte nos conta a história de um sábio que não sabia fumar cachimbo. “Mas a mulher do sábio sabia”. E a vida segue. Vem, por fim o “Poema [4]”, mais um pequeno texto de completo nonsense. Vale observar que, nas criações de Forte, sempre aparecem “terras de ninguém” (veja-se “Desobediência Civil”), “mares de ninguém” (há
no livro um poema chamado “Mar de Ninguém”) e, neste último poema, “o corpo de ninguém”.
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Nesta edição, conforme se pode ver no cabeçalho desta página, o poesia.net começa a comemorar seus 14 anos de existência, que serão completados em 12 de dezembro.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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LANÇAMENTOS
Dois eventos ainda neste mês, um em São Paulo e o outro no Rio de Janeiro.
No Chão da Fábrica
• Roniwalter Jatobá
O escritor mineiro-baiano Roniwalter Jatobá comemora 40 anos de literatura com o lançamento
de No Chão da Fábrica – Contos e Novelas,
volume que reúne histórias centradas na classe operária. O livro sai pela
Editora Nova Alexandria.
Quando: Sexta-feira, 18/11/2016,
das 18h às 21h
Onde:
Casa das Rosas
Avenida Paulista, 37 - Metrô Brigadeiro
São Paulo, SP
No Reverso do Viés
• Amélia Alves
A poeta
fluminense Amélia Alves lança no Rio de Janeiro, no dia 28/11, sua quarta coletânea de poemas, No Reverso do Viés,
publicada pela Ibis Libris Editora.
Quando: Segunda-feira, 28/11/2016,
das 19h às 22h
Onde:
Blooks Livraria
Praia de Botafogo, 316, lojas D e E
Rio de Janeiro, RJ
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Poesia em tempos de infâmia
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António José Forte
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Golnaz Afraz, pintora iraniana, A sombra amarela (2016)
O POETA EM LISBOA
Quatro horas da tarde.
O poeta sai de casa com uma aranha nos cabelos.
Tem febre. Arde.
E a falta de cigarros faz-lhe os olhos mais belos.
Segue por esta, por aquela rua
sem pressa de chegar seja onde for.
Pára. Continua.
E olha a multidão, suavemente, com horror.
Entra no café.
Abre um livro fantástico, impossível.
Mas não lê.
Trabalha — numa música secreta, inaudível.
Pede um cigarro. Fuma.
labaredas loucas saem-lhe da garganta.
Da bruma
espreita-o uma mulher nua, branca, branca.
Fuma mais. Outra vez.
E atira um braço decepado para a mesa.
Não pensa no fim do mês.
A noite é a sua única certeza.
Sai de novo para o mundo.
Fechada à chave a humanidade janta.
Livre, vagabundo
dói-lhe um sorriso nos lábios. Canta.
Sonâmbulo, magnífico
segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado
Um luar terrífico
vela o seu passo transtornado.
Seis da madrugada.
A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.
Defende-se à dentada
da vida proletária, aristocrática, burguesa.
Febre alta, violenta
e dois olhos terríveis, extraordinários, belos.
Fiel, atenta
a aranha leva-o para a cama arrastado pelos cabelos.
Golnaz Afraz, A voz do silêncio (2014)
DESOBEDIÊNCIA CIVIL
(trecho final)
se a preguiça encantadora dos homens
deve acabar a sua obra e a sua língua de fogo
unir os dias e as noites do desejo
então saudemos as grandes afirmações:
«a poesia deve ser feita por todos» e
«a poesia é feita contra todos»
os devoradores de cultura podem sair pela esquerda alta
fiquem os amantes obscuros e o único os raros
todos os nus
porque a língua portuguesa não é a minha pátria
a minha pátria não se escreve com as letras da palavra pátria
Vede
sobre a coroa de silêncio do vulcão adormecido
uma ave a sua plumagem de cores trémulas
e as asas que escrevem letra a letra o nome definitivo do homem
e no entanto multidões de gnomos
cada qual com o seu estandarte
esperam à entrada dos cemitérios
para saudar o fogo-fátuo
eu passo de bicicleta à velocidade do amor
atravesso a terra de ninguém com um dia de chuva na cabeça
para oferecer aos revoltados
Golnaz Afraz, Aparência (2014)
POEMA [1]
Lá vai de viagem após o tiro no ouvido
o que escutou atentamente a música das esferas
e não lhe achou sentido
Afinal o problema que durante anos
lhe consumiu energias e o fez estudar como um bruto
resolveu-o num minuto
Uma fractura craniana
simples decidida no momento exacto
pô-lo frente à realidade, de facto
Golnaz Afraz, O homem transparente (2014)
POEMA [2]
Para o banquete com talheres de prata
chegam os poetas com as musas ao colo
elas todas nuas
eles de gravata
servem-se as lagostas
ao som do piano
e depois a carne
carne de licorne
desce de aeroplano
tudo com muitos vinhos
de vários sabores
por copos infindos
como são os amores
e após o banquete
entre aves canoras
os poetas e as musas
saem para o espaço
em camas voadoras
Golnaz Afraz, Encontre aqui (2015)
POEMA [3]
Um sábio
não sabia fumar cachimbo
mas a mulher do sábio sabia
quando o sábio chorava
por não saber fumar cachimbo
a mulher do sábio sorria
e assim durante meses e anos
até que
no dia em que o sábio sabia que morria
não disse à mulher que sabia
por isso quando ele chorava
a mulher do sábio sorria
Golnaz Afraz, Sem fim (2015)
POEMA [4]
Na paisagem que amanhece
jaz o corpo de ninguém
maior do que a noite
e os olhos que ela tem
jaz um pouco de lado
voltado para a lua
coberto de nada
na paisagem nua
nunca teve um nome
não espera o Além
o corpo que jaz
e é de ninguém
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2016
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António José Forte •
Uma Faca nos Dentes
Prefácio de Herberto Helder, ilustrações de Aldina
Parceria
A.M. Pereira, Lisboa, 2003 ___________________
* Maria de Fátima Marinho, citada na dissertação de mestrado “António José Forte 1931-1988:
Proposta de leitura amarrotada e ruminante ou Imitação dos bois sem ferro de engomar” (Lisboa, 2004),
de Maria José Vitorino Gonçalves.
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* Francisco Carvalho, "Tanatologia", in Rosa dos Eventos (1982)
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* Imagens: quadros da pintora
iraniana residente na França
Golnaz Afraz (1981-)
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