Número 373 - Ano 15 |
São Paulo, quarta-feira, 22 de
março de 2017
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«Ó glória de mandar! Ó vã cobiça /
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!» (Luís
Vaz de Camões) *
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Iacyr Anderson Freitas
Amigas e amigos,
O poeta Iacyr Anderson Freitas (Patrocínio do Muriaé-MG, 1963) já visitou esta página em 2003 (boletim n. 29), no primeiro ano do poesia.net. Àquela altura, autor prolífico, ele já havia reunido seis livros no volume A Soleira e o Século (2002).
Daquele momento até agora, lá se vão cerca de 14 anos e o poeta continua produzindo com impressionante regularidade. Nesta edição, voltamos à poesia de Iacyr Anderson Freitas, com uma seleção de poemas extraída de três livros do autor publicados nesse período: Quaradouro (2007), Viavária (2010) e Estação das Clínicas (2016).
Quaradouro, na verdade, corresponde ao segundo volume da reunião da obra de Iacyr, iniciada com A Soleira e o Século. Os outros dois são livros independentes.
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O poema “E Sobre o Deserto” vem de Quaradouro. O tom elegíaco e a linguagem elevada dão ao texto um andamento solene. Em plena maturidade, o poeta mostra seguro domínio do verso.
A pessoa que fala está condenada a carregar os despojos da tarde, seja como
castigo que lhe é imposto por outrem, seja como autopunição para expiar alguma culpa.
O próximo poema, “Aqui nos Despedimos”, desenvolve-se em clima similar ao anterior. Trata-se agora de uma despedida. Não de um lugar ou de uma pessoa, mas aparentemente de uma situação existencial, como uma angústia ou sucessão de perdas.
A propósito desses dois poemas, observo que não é fácil pinçar textos na obra de Iacyr Anderson Freitas. Com frequência, o poeta
desenvolve projetos conceituais. Ou seja, os textos que compõem um livro, ou uma divisão, apresentam-se muito imbricados. Nem sempre a leitura de um poema isolado é suficiente para que se formar uma ideia de todo o contexto.
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Agora, mudamos de livro. O poema “Fala de Frei Tito aos Torturadores” foi extraído de Viavária. No texto, o poeta dá voz ao
frade dominicano Tito de Alencar Lima (1945-1974), uma vítima da ditadura
militar. Como se sabe, Tito foi preso em 1969, juntamente com outros padres dominicanos, pelo delegado Sérgio Fleury,
do DOPS. Tito passou dias sendo torturado. Traumatizado, nunca mais recuperou o equilíbrio. Suicidou-se em 1974, na França. No poema, ele diz: “Não pode morrer de novo / quem já morreu muitas vezes”.
Também integrante do livro Viavária, o poema “Entrever o Já Visto” abre uma série sobre cidades. O poeta, inspirado em Sérgio Buarque de Hollanda (Raízes do Brasil), citado
na epígrafe da série, traça uma aproximação entre as cidades e as pessoas que as constroem.
Vazado em tom irônico, o poemeto “Equação” brinca com a dificuldade de “ser
feliz”. A pessoa que fala dispõe-se a montar e resolver a equação da felicidade e, após
estafantes tentativas, desiste.
O último texto da seleção (agora, do livro Estação das Clínicas) é outro poemeto, também afinado na corda da ironia. O problema, aqui, é um acerto de contas entre o indivíduo presente e ele mesmo, no passado. Assim como no caso da felicidade, o esforço revela-se nulo — o que, aliás, já está anunciado no título do poema: “Da inútil reflexão”.
•o•
Iacyr Anderson Freitas é um poeta que desenvolve uma obra marcadamente reflexiva. Mas, embora não estejam mostradas aqui, sua poesia também apresenta outras facetas. Uma delas é a do retratista de figuras humanas, especialmente de pessoas do interior de Minas Gerais.
Outra faceta, de certa forma associada à primeira, são as hilariantes caracterizações de personagens, escritas em versos. Demonstrações dessa veia do humor estão presentes em mais de um livro do poeta.
Abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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O leitor Carlos Alenquer e também o poeta baiano Florisvaldo Mattos me sugeriram
incluir no boletim botões para que o leitor possa compartilhar com facilidade o poesia.net nas redes sociais.
A ideia foi implementada. Agora, você pode clicar nos botões (acima da foto do poeta) e compartilhar o boletim nas redes
Facebook, Twitter e WhatsApp. Agradeço a valiosa sugestão ao leitor Carlos Alenquer
e ao poeta Florisvaldo Mattos.
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Os despojos da tarde
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Iacyr Anderson Freitas
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Stanislav Plutenko, pintor russo, Damas e cavalheiros (2009)
E SOBRE O DESERTO
condenação primeira: carregar
os despojos desta tarde, arrastá-la
para fora do tempo,
enterrá-la onde não haja escape.
como os que buscam no alforje,
entre serpes, o alimento de seus mortos,
também ofertarei meu corpo
às figurações da chuva e do trópico,
também poderei ungir
as cartilagens nulas de seu nome.
e sobre o deserto
e sobre os despojos de tudo
o que restou da tarde em seu transporte
permanece a mesma busca,
incessante, de uma terra mais
profunda e gasta, cada dia mais distante
Stanislav Plutenko,
Com a respiração suspensa (2009)
AQUI NOS DESPEDIMOS
que a imagem de um lenço
fique gravada, no silêncio
deste campo, entre coisas
já perdidas pelo desgaste da aurora.
coisas, coisas não de todo
amanhecidas ainda, aqui
nos despedimos, perenidade
dos ventos, adeus, adeus.
que no silêncio
deste campo
fique apenas a imagem
de um lenço
branco
Stanislav Plutenko, Do alto (2007)
FALA DE FREI TITO AOS TORTURADORES
Não pode morrer de novo
quem já morreu muitas vezes.
Deixai descansar agora
um corpo exaurido há meses.
Um corpo que já provou
da vida os venenos todos.
Num colchão de urina e fezes,
a tortura e seus engodos.
Por isso a corda em meu corpo
(pois que suicídio não seja):
para que morram comigo
os que mataram a igreja
que deve ser qualquer homem,
antes que as feras o domem.
Stanislav Plutenko, Moça com sári vermelho (2005)
ENTREVER O JÁ VISTO
Cidades não se fazem
com nenhum improviso.
O que parece vago
teve traço preciso.
Não existe surpresa,
acaso ou acidente.
Só a justa medida,
melhor se inconsciente.
Só o fluxo, a rotina
de entrever o já visto
e dele retirar
até o último cisto.
As pessoas não fundam
as cidades que alinham:
fazem-nas com o barro
que elas mesmas continham.
Stanislav Plutenko, Estação das noivas abandonadas (2015)
EQUAÇÃO
Para Luiz Ruffato
a questão:
ser ou não
ser
feliz
em demanda
desse cálculo
me fiz
contas e contas
somatórios
vis
até desistir
do inacessível
x
Stanislav Plutenko, O espelho (2012)
DA INÚTIL REFLEXÃO
À memória de Donizete Galvão
o pior da idade
é o ágio
com os anos
volta à memória
o mesmo e velho
adágio
e a gente não pode processar
esse antigo eu
por plágio
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado,
2017
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Iacyr Anderson Freitas •
"Os Soterrados", "Aqui nos Despedimos" in
Quaradouro Nankin/Funalfa,
São Paulo/Juiz de Fora, 2007 • "Fala
de Frei Tito aos Torturadores", "Entrever o Já Visto", "Equação" in
Viavária Nankin/Funalfa,
São Paulo/Juiz de Fora, 2010 • "Da
Inútil Reflexão" in Estação
das Clínicas Escrituras/Funalfa, São Paulo/Juiz de Fora, 2016
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* Luís
Vaz de Camões, in Os Lusíadas, Canto IV
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* Imagens: quadros de
Stanislav Plutenko (1961-), pintor
russo
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