Número 379 - Ano 15

São Paulo, quarta-feira, 21 de junho de 2017

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«Não: não quero nada./ Já disse que não quero nada.// Não me venham com conclusões!/ A única conclusão é morrer.» (Fernando Pessoa)

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Jayro José Xavier
Jayro José Xavier


Amigas e amigos,

Esta edição do poesia.​net põe em destaque o poeta fluminense Jayro José Xavier. Nascido em São Gonçalo do Amarante em 1936, Xavier graduou-se em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e é professor do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF).

O poeta estreou em 1974 com a coletânea Idade do Urânio, à qual se seguiu o livro Enquanto Vivemos (1981). Publicou também Estória de Uma Vaquinha (1987) e Ulisses: Canto para Ajudar um Menino a Atravessar a Noite (1988), título que recebeu o prêmio Associação Paulista de Críticos de Arte.

Em 2007, o poeta publicou uma seleção de seus trabalhos no volume Poemas, que apresenta quatro divisões: “Idade do Urânio”, com material do livro homônimo; “As Quatro Estações e Outros Poemas”; “Enquanto Vivemos”; e “Luz no Chapéu”. Destes dois últimos, o primeiro corresponde ao livro com o mesmo título. O outro, “Luz no Chapéu”, antecipa poemas de um livro que o autor na época planejava publicar.

Embora não tenha desenvolvido uma obra volumosa, Jayro José Xavier mereceu elogios de nomes destacados da crítica literária, como Antonio Houaiss, Alfredo Bosi e Carlos Felipe Moisés.

É importante dizer que até bem pouco tempo eu não tinha sequer notícia da poesia de Jayro José Xavier. Tomei conhecimento dela graças à gentileza do poeta niteroiense Henrique Augusto Chaudon, que me enviou cópias em PDF dos livros Enquanto Vivemos e Poemas, de Xavier.

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Para a miniantologia deste boletim, selecionei seis textos, todos incluídos no volume Poemas. Quatro provêm originalmente do livro Enquanto Vivemos e dois pertencem a Luz no Chapéu, o título não lançado.

O primeiro texto é “Notas para uma Poética”, no qual o autor confere à sua arte um status quase religioso: “Um poema se escreve com as mãos / como quem reza / como quem toma nas mãos um punhado de terra”. Em “Moda do Irmão Francisco” — provavelmente uma referência a São Francisco de Assis —, o poeta inventa uma ilha utópica na qual “os homens se descobrem / para saudar o sol / e os homens se descobrem”. Vale ressaltar aqui o duplo sentido do verbo "descobrir", em versos que aparentemente se repetem. No primeiro, “os homens se descobrem” — isto é, tiram o chapéu em reverência ao sol. No outro, o poeta propõe uma bela fantasia, essa de os seres humanos se descobrirem uns aos outros.

O tom religioso e angustiado retorna no poema “Clamor”. A lamentação é tão profunda que não se resume ao sentimento humano. Contamina até o mundo mineral. “E sobe, sobe / como se / das entranhas da terra”.

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Em “Quarenta Anos”, o poeta, ao completar essa idade, avalia ironicamente os metais preciosos com que o tempo o vai enriquecendo: “Blocos de ouro branco na boca / fios de prata na barba”. Apesar dos novos e opulentos cabedais “metálicos”, ele lamenta não ter se tornado mais sábio. Os poetas, de fato, não têm jeito: desprezam o “ouro” que têm na mão em nome de um pássaro abstrato, a sabedoria, que voa não se sabe onde, nem como. Se é que voa.

O poema “O caracol” apresenta uma análise lírica da vida desse molusco. “Nem é um bicho, é / um silêncio /lentíssimo — mucosa e casa / movendo-se”. Coisa de observador minucioso que se debruça sobre o animalzinho para de seus passos extrair a seiva do poema.

O último texto é “Evanilda”, uma terna recordação de infância. Uma personagem do passado que teima em continuar presente na memória do poeta, promovendo diálogos impossíveis e miradas que não pedem licença à lógica para embaralhar tempos e espaços no contexto da poesia.

Abraço, e até a próxima,

Carlos Machado

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Poemas em forma de prece

• Jayro José Xavier




vladimir volegov - at the piano - 2008
Vladimir Volegov, russo, Ao piano (2008)



NOTAS PARA UMA POÉTICA

Para Octavio

Um poema se escreve sob granizo, ou nas frentes de inverno,
     quando nos protegemos sob casamatas de zinco
Um poema se escreve quando a noite caiu e nem um fósforo
Um poema se escreve quando é preciso renascer das cinzas
     — quando todos, para ganhar a vida, se tornaram
     zelosos funcionários da Morte
Um poema não se escreve com a razão
Um poema se escreve com as mãos
     como quem reza
     como quem toma nas mãos um punhado de terra




vladimir volegov - at the city fountain - 2016
Vladimir Volegov, Na fonte da cidade (2016)



MODA DO IRMÃO FRANCISCO

A ilha que inventei
é quando os homens se encontram
é quando os homens reunidos
é quando todos os homens

(é quando e não onde)

Na ilha que inventei
os homens se descobrem
para saudar o sol
e os homens se descobrem





vladimir volegov - contrejour - 2012
Vladimir Volegov, Contraluz (2012)



CLAMOR

Esse clamor subindo
das gargantas da noite
como os acordes, graves,
de um órgão

Esse clamor feito um pranto
abafado.
     Todavia subindo
e prestes a romper
a treva

Escuta:
não é um cântico
(Já não se ouvem os loucos
que cantavam
na noite)

É talvez uma reza
uma última
súplica

E sobe, sobe
como se
das entranhas da terra




vladimir volegov - the letter - 2017
Vladimir Volegov, A carta (2017)



QUARENTA ANOS

Blocos de ouro branco na boca
fios de prata na barba
               Ó tempo
me torno valioso
e não me valho

Diz-que amor é urgente mas não corro
diz-que a vida é agora mas não ardo
— não tenho pressa, diante
de mim, no espelho

Ostento, claro, uma testa mais larga

Porém quem disse
que me tornei mais
sábio?

   De Enquanto Vivemos (1981)




vladimir volegov - portrait of elena - 2016
Vladimir Volegov, Retrato de Elena (2016)



O CARACOL

Mora entre as sombras eternas do fundo do pátio
e não canta. Antes inclina as antenas
e capta
a branda aspereza do dia

À noite sai,
tece uma seda líquida nos ladrilhos de cimento

Nem é um bicho, é
um silêncio
lentíssimo — mucosa e casa
movendo-se

Sábio molusco

No estio adverso encolhe-se feito feto
na valva em espiral. E adere
— úmido —
à dura pele da terra

(todo ele concha
e nostalgia
da unidade)




vladimir volegov - Maltese girl - 2007
Vladimir Volegov, Menina maltesa (2007)



EVANILDA

Evanilda bordava na varanda.
Tinha uns olhos tão negros Evanilda,
tão grandes, como a roda da ciranda
em que ainda lhe dou, trêmulo, a mão
depois de tantos anos. Ah o vento
nas ondas dos cabelos de Evanilda
que voava nas asas da ciranda!
Cessou o vento, já. Mas eu, nas ondas,
ainda me afundo, infante. Não, a vida
não perdoou, madrasta, essa menina
que sorri para o homem que lhe acena
da outra margem do tempo. Um que não soube
se o castelo habitou, que ela ainda borda
na fronha. Agora, quando todos dormem.

   De Luz no Chapéu (2007)




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2017


Jayro José Xavier
        • in Poemas
        Edição do autor, Niterói, 2007
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* Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), “Lisbon Revisited” (1923)
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* Imagens: quadros de Vladimir Volegov (1957-), pintor russo