Número 382 - Ano 15

São Paulo, quarta-feira, 9 de agosto de 2017

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«Poesia é coisa / De mulheres. / Um serviço usual, / Reacender de fogos.» (Myriam Fraga)

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Nove poetas no feminino
De cima para baixo, da esq. para a dir.: Raiça Bomfim; Sônia Barros; Dalila Teles Veras / Adriane Garcia; Vera Lúcia de Oliveira; Quinita Ribeiro Sampaio / Líria Porto; Marize Castro; Adélia Prado


Amigas e amigos,

O poesia.net também tem, digamos, suas idiossincrasias. Ou, se quiserem, suas prescrições e manias. Uma delas, assumida nos últimos anos, é tentar equilibrar a presença de poetas homens e mulheres nos boletins. Apesar disso, como se sabe, esse preceito nem sempre é cumprido com êxito. Este ano começamos bem: nas cinco primeiras edições havia quatro mulheres. Nas seguintes, contudo, o primado das poetas ruiu fragorosamente.

Este boletim é uma tentativa de reduzir o desequilíbrio. Para isso, recorri ao acervo do poesia.net e de lá extraí nove poemas de nove mulheres contemporâneas, todos eles tratando de algum aspecto da vida feminina.

As nove autoras são: Raiça Bonfim; Sônia Barros; Dalila Teles Veras; Adriane Garcia; Vera Lúcia de Oliveira; Quinita Ribeiro Sampaio; Líria Porto; Marize Castro; e Adélia Prado. O critério de seleção foi a autora já ter publicado aqui no poesia.net algum poema dando notícia da condição feminina.

Os textos das poetas são apresentados na ordem em que apareceram no boletim. Como sempre faço nessas “antologias”, não usei nenhum poema publicado no ano corrente.

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Como diz a poeta baiana Myriam Fraga (1937-2016), “Poesia é coisa / De mulheres. / Um serviço usual, / Reacender de fogos” (o poema inteiro, “Ars Poetica”, está aqui). De fato, ninguém melhor do que as mulheres para acender e reacender as fogueiras da vida. Usei esses versos de Myriam Fraga também como epígrafe deste boletim.

Mas vamos aos poemas. Para facilitar a identificação de onde eles vieram, coloquei, nos comentários, o número do boletim logo abaixo do nome da autora.

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Raíça Bomfim
poesia.net n. 226

Atriz profissional e estudiosa do teatro, Raíça Bomfim (Vitória da Conquista-BA, 1986) é uma artista que se divide entre o palco e a criação poética. No poema "Sinuosidades", ela desenvolve um texto de autoafinação e afirmação feminina diante de um parceiro que parece excessivamente tímido e cauteloso. O texto, no qual fala uma jovem, é decidido e provocante desde o início: "quando vi sua hesitação, eu já sabia / é que tenho jeito de moça pura / e cara de mulher vadia".

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Sônia Barros
poesia.net n. 327

Nome respeitado na literatura infantil, a poeta Sônia Barros (Monte Mor-SP, 1968) preocupa-se, no poema “Futuro”, com o destino de uma menina que busca matar a fome catando lixo. Lamentavelmente, cenas como esta — que supúnhamos já relegadas ao passado — voltam agora ao nosso país com toda a sua brutalidade e injustiça. A pessoa que assiste à cena conclui que o futuro espia aquela menina faminta "com garras / e agulhas / sem linha". Triste.

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Dalila Teles Veras
poesia.net n. 331

Portuguesa e muito brasileira, Dalila Teles Veras (Ilha da Madeira, 1946) dirige seu olhar sensível para o trabalho de mulheres pobres. “As Faxineiras do Edifício” é um poema antológico. Apesar da jornada estafante, aquelas trabalhadoras ainda encontram motivo para cantar.

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Adriane Garcia
poesia.net n. 334

Sônia Barros olhou para a menina abandonada. Dalila Teles Veras observou as faxineiras dos prédios urbanos. A mineira Adriane Garcia (Belo Horizonte, 1973) voltou-se para as mães que protegem os filhos adormecidos no colo: “Pietás de carne e osso / Carregando destinos”, escreve a poeta.

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Vera Lúcia de Oliveira
poesia.net n. 341

A mulher retratada por Vera Lúcia de Oliveira (Cândido Mendes-SP, 1957) no poema “Para Dentro” encontra-se, possivelmente, num momento de angústia e autorreflexão. Sente-se “como águas que jorram / para dentro” e identifica a aquisição de hábitos como girar em volta dos próprios passos e “revolver os ossos”. Quer dizer, retornar a coisas passadas e já definitivamente perdidas. [Atenção: este poema de Vera Lúcia foi publicado aqui no poesia.net, não no boletim, mas como um cartão poético no Facebook. O boletim indicado acima mostra outros poemas do mesmo livro.]

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Quinita Ribeiro Sampaio
poesia.net n. 344

A poeta Quinita Sampaio (Campinas-SP, 1926) faz, no poema “Retrato”, uma bela reflexão diante da foto daquela menina que foi um dia. “Já habitei sua pele / mas dela nada mais sei / não conheço a menina do retrato”, escreve a poeta. Mais adiante, pateticamente, ela pergunta em que dia terá morrido aquela menina.

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Líria Porto
poesia.net n. 350

Talvez todas as mulheres e meninas citadas até aqui nos poemas sejam criaturas de cidades grandes. Mas a mulher que aparece no poema “Irreconhecível”, de Líria Porto (Araguari-MG, 1945), é uma criatura do interior. Canoeira, ela passa por baixo do arco-íris e se converte em homem. Contudo, essa transformação de gênero tem um objetivo bem banal, porém enorme para uma mulher submetida ao patriarcado nas lonjuras deste país. Na condição de homem, ela “bebia com os pescadores / contava vantagem” — atividades exclusivas dos varões sertanejos.

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Marize Castro
poesia.net n. 365

No poema “Néctar” a poeta potiguar Marize Castro (Natal-RN, 1962) fala da condição feminina partindo de histórias trágicas envolvendo mulheres da literatura. Ela não faz citações claras, mas possivelmente se refere à poeta americana Sylvia Plath (“aquela que abre o gás”) e à inglesa Virginia Woolf (“a loba que entra no rio / com os bolsos cheios de pedras”). De forma desconcertante, a mulher que fala no poema diz que não é nenhuma dessas: “Sou todas elas”.

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Adélia Prado
poesia.net n. 368

No poema “Neurolinguística”, Adélia Prado (Divinópolis-MG, 1935) cede a palavra a uma viúva sexagenária que experimenta ímpetos juvenis após o galanteio de um admirador.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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LANÇAMENTOS

Nova coletânea de poemas, no Rio de Janeiro e em São Paulo, e uma exposição de pinturas em Salvador.

Antologia Poetrix 5
• Goulart Gomes (org.)

Poetrix 5O poeta baiano Goulart Gomes (org.) lança a obra coletiva Antologia Poetrix 5. Poetrix, para quem não sabe, é um poemeto de três versos, estrutura criada por Goulart Gomes e adotada por muitos poetas, como prova a antologia. São dois lançamentos.

NO RIO DE JANEIRO

Quando:
Sexta-feira, 11/08/2017,
das 18h às 21h

Onde:
Livraria Cultura
Rua Senador Dantas, 45 - mezanino - Centro
Rio de Janeiro, RJ


EM SÃO PAULO

Quando:
Sábado, 12/08/2017,
das 17h30 às 20h30

Onde:
Espaço Scortecci
Rua Deputado Lacerda Franco, 96 - Pinheiros
São Paulo, SP


Crônica Sertaneja
— exposição
• Juraci Dórea, pintor

Dórea - Crônica SertanejaEstá em curso a exposição "Crônica Sertaneja", do pintor Juraci Dórea. Com essa mostra, o Museu de Arte da Bahia, fundado em 1918, dá início às comemorações de seus 100 anos de existência.

Quando:
De 26 de julho a 10 de setembro

Horários:
De terça a sexta-feira, das 13 às 19 horas; sábados, domingos e feriados, das 14 às 19 horas

Onde:
Museu de Arte da Bahia
Av. Sete de Setembro, 2340 - Vitória
Salvador, BA



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Nove poetas no feminino

• Raiça Bomfim  • Sônia Barros  
• Dalila Teles Veras  • Adriane Garcia  
• Vera Lúcia de Oliveira  • Quinita Ribeiro Sampaio
• Líria Porto  • Marize Castro  • Adélia Prado





Jennifer Yoswa - Her heart is full
Jennifer Yoswa, americana, Seu coração está cheio



• Raíça Bomfim

SINUOSIDADES

quando vi sua hesitação, eu já sabia
é que tenho jeito de moça pura
e cara de mulher vadia

por via das dúvidas, você, cauto,
convidou:
que tal um sorvete e alguns livros de poesia?
adorei a ideia
linda tarde a nossa

quando veio a noite, sugeri qual uma
dama:
que tal uma cachaça nas curvas da cama?

pra nossa delícia, baby
meu prazer tem mais vias que suas dúvidas

   Do blog Mãinha me deu lápis



Jennifer Yoswa - Beth
Jennifer Yoswa, Beth



• Sônia Barros

FUTURO

No esgoto,
catando restolhos,
a menina procura
cerzir o vinco
do estômago.

No alto,
o futuro a espia
com garras
e agulhas
     sem linha.

   De Fios (2014)



Jennifer Yoswa - But in her eyes he saw the summer
Jennifer Yoswa, Mas nos olhos dela ele enxergou o verão



• Dalila Teles Veras

AS FAXINEIRAS DO EDIFÍCIO

surpreendentemente
(não obstante os dez mil, quatrocentos e trinta e um degraus,
os oito mil, trezentos e vinte metros quadrados de piso, as
quatrocentas e quinze vidraças e as três toneladas de lixo à
espera de varrição, transporte e limpeza)
cantam...

   De Retratos Falhados (2008)



Jennifer Yoswa - Amelia
Jennifer Yoswa, Amélia



• Adriane Garcia

ESCULTURAS VIVAS

Repare nas mães
Tendo ao colo filhos dormindo:
Pietás de carne e osso
Carregando destinos.

   De O Nome do Mundo (2014)



Jennifer Yoswa - The hat she wore in jr. high
Jennifer Yoswa, A boina que ela usava no colégio



• Vera Lúcia de Oliveira

PARA DENTRO

como águas que jorram
para dentro

dei para pisar
o rangido dos ventos

dei para virar
em volta dos passos

dei para lavrar a veia
em que piso

dei para revolver
os ossos

   De Entre as Junturas dos Ossos (2006)



Jennifer Yoswa - The look
Jennifer Yoswa, O olhar



• Quinita Ribeiro Sampaio

RETRATO

Fui íntima um dia
mas como me distanciei
da menina do retrato.

Já habitei sua pele
mas dela nada mais sei
não conheço
a menina do retrato.

Como seria a sua voz
e o som do riso
e o seu choro?

Em vão busco em seu olhar
um vestígio, algum resto.

Um mistério opaco encerra
a menina no retrato.

Em que dia se rompeu
o elo que nos prendia?

Em que dia ela morreu?

   De Aprendizagem Pelo Avesso (2012)



Jennifer Yoswa - The muse
Jennifer Yoswa, A musa



• Líria Porto

IRRECONHECÍVEL

eu tinha uma canoa — minha
boa
com ela atravessava o rio
ria
ia
beirava o horizonte
e debaixo do arco-íris
virava homem
:
a barba crescia eu voltava
bebia com os pescadores
contava vantagem

   Poema inédito em livro



Jennifer Yoswa - Girl with black hat
Jennifer Yoswa, Moça com chapéu preto



• Marize Castro

NÉCTAR

A verdade aproxima-se.
Olha-me com os olhos
abismados da beleza.

Não sou a mulher
que corta os pulsos e se joga da janela
nem aquela que abre o gás
nem mesmo a loba que entra no rio
com os bolsos cheios de pedra.

Sou todas elas.

Escrever me fez suportar todo incêndio
— toda quimera.

   De Esperado Ouro (2005)



Jennifer Yoswa - Winter white
Jennifer Yoswa, Branco de inverno



• Adélia Prado

NEUROLINGUÍSTICA

Quando ele me disse
ô linda,
pareces uma rainha,
fui ao cúmice do ápice
mas segurei meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade,
vinte de casta viuvez,
quero estar bem acordada,
caso ele fale outra vez.

   De Oráculos de Maio (1999)






poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2017



Raiça Bomfim
 “Sinuosidades”
 Do blog Mãinha me deu lápis

Sônia Barros
 “Futuro"
 In Fios
 Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2014

Dalila Teles Veras
 “As Faxineiras do Edifício”
 In Retratos Falhados
 Escrituras, São Paulo, 2008

Adriane Garcia
 “Esculturas Vivas”
 in O Nome do Mundo
 Una, Natal-RN, 2005

Vera Lúcia de Oliveira
 “Para Dentro”
 In Entre as Junturas dos Ossos
 MEC, Brasília, 2006

Quinita Ribeiro Sampaio
 “Retrato”
 In Aprendizagem Pelo Avesso
 Pontes Editores, Campinas, 2012

Líria Porto
 “Irreconhecível”
 Poema inédito em livro.

Marize Castro
 “Néctar”
 in Esperado Ouro
 Una, Natal-RN, 2005

Adélia Prado
 “Neurolinguística”
 In Poesia Reunida
 Siciliano, São Paulo, 2001
______________
* Myriam Fraga, “Ars Poetica”, in Poesia Reunida (2008)
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* Imagens: quadros de Jennifer Yoswa, pintora americana contemporânea.