Amigas e amigos,
A poeta Rosana Chrispim (Carandaí-MG, 1958) é formada em jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo e trabalhou durante três décadas como produtora gráfica.
Na literatura, integrou o Grupo Livrespaço de Poesia, de Santo André-SP, com o qual publicou as antologias Coletânea Livrespaço II (1984), III (1985), IV (1988) e V (1990).
No período 1992-93, Rosana Chrispim foi uma das editoras da Revista Livrespaço, publicação distinguida com o Prêmio APCA como melhor realização cultural de 1993.
Seu primeiro livro solo, Semelhanças, veio à luz em 1986, seguido por Entretempo,
de 2003. Agora, ela acaba de lançar nova coletânea poética, Caderno de Intermitências,
publicada pela Editora Patuá.
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Neste boletim, transcrevo poemas de Entretempo e de Caderno de Intermitências. Li esses livros de Rosana Chrispim e fiquei com a impressão de que um fio lógico une os poemas
dos dois volumes, embora um intervalo de catorze anos separe seus lançamentos.
Em ambas as coletâneas a autora constrói um clima de desamparo e desconfiança. O poema “Nau”, de Entretempo, diz que céu, mar e embarcação são desfavoráveis, mas ainda há portos onde é possível restaurar o casco do navio e consertar as máquinas. Ou seja, todo o contexto é de dúvida. E ao navegador restam “(in)certeza e travessia”.
Os poemas do Caderno de Intermitências também são coerentes com esse clima de “(in)certeza”.
A própria ideia de “intermitências” já pressupõe falhas: sim e não, pelo caminho. A poeta, por sua
vez, revela especial inclinação para selecionar palavras de valor ambíguo, afirmando mediante o uso
de prefixos negativos.
Um exemplo é a própria palavra “(in)certeza”, na qual a partícula entre parênteses nega a palavra
principal, mas não o faz de modo incisivo. Cabe ao leitor a tarefa de aceitar ou não a negação
(ou dúvida) proposta, ou mesmo tentar equilibrar o sim e o não embutidos na palavra.
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Essa necessidade de manter um pé-atrás em relação às coisas do mundo leva a poeta a criar muitos
neologismos baseados em prefixos de negação. É o caso de “desdorme”, no poema “Transposição”:
“na calada do dia / a dor desdorme / em sobressalto / em silêncio convulso”. Suponho que, durante
o dia, quando o indivíduo está envolvido com os trabalhos, a dor faz de conta que não está ativa.
Mas não dorme: “desdorme”.
No poema “Sobre Voo”, o sujeito lírico apresenta queixas contra pessoas indeterminadas (“eles”),
seres já desprovidos de asas (quer dizer: tiveram-nas um dia) que se dedicam a cortar esses
membros voadores do sujeito lírico. Por isso, conclui: “sendo ave nunca / fui pássaro”.
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É talvez para fugir às armadilhas de um contexto sempre hostil que a poesia de Rosana Chrispim
tende a apostar na eloquência do silêncio. Na dúvida, melhor é dizer pouco, com extrema economia
de palavras. O poema “Eloquência” avisa: “o silêncio fala / às vezes / fala demais”. Contudo, mais
adiante, vem a afirmação aparentemente contrária: “o silêncio por vezes cala”.
São poemas concisos que demandam leitura cuidadosa. Não acredite na primeira palavra. Nem na segunda.
Leia, releia, e no íntimo invente a prova dos nove. Ou a prova de quanto o silêncio é capaz de dizer.
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Veja-se o caso do poema “Quirera”. Aqui, a autora, mineira, refere-se ao milho quebrado, esfarinhado.
Paixão, desejo, lembranças e suspiros (amorosos) são comparados a esse bagaço de cereal. Mas fiz questão
de citar esse texto por outro detalhe: observem que não há nele um só verbo ativo. Há, decerto,
“a paixão admitida / o desejo sublimado” (os destaques são meus). Sim, dois particípios:
verbos já “passados”, sem ação presente, sem promessa.
“Quirera” nos faz retornar à eloquência do silêncio. Praticamente, o que a poeta diz está ali, está vivo,
mas quase sem dizer, sem escancaramentos.
No poema “(In)disposição” vêm, mais uma vez, três negações deixadas em suspenso: a partícula (in) do título e,
mais adiante, “(des)ordenando” e “(des)arrumando”. Há ainda outros termos marcados pelo negativo, como
“desnecessidades”, “desolação”, “inação” e “dessaberes”. E o sujeito lírico, cansado ou covarde, cala-se.
É uma poesia na qual o silêncio é que(m) diz.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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