Número 393 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

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«Sabe-se da dor, mas toda dor / dribla a alma — e a alma / só tardiamente aprende.» (Antonio Brasileiro)

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Myriam Fraga
Myriam Fraga



Amigas e amigos,

Este é o primeiro poesia.net de 2018. Terminamos o ano passado com a comemoração dos 15 anos do boletim, que ficou registrada num site especial, o poesia.net 15 anos. Agora, após o recesso de verão, voltamos às edições quinzenais regulares.

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Nesta edição, o poesia.net destaca a poeta baiana Myriam Fraga (1937-2016). A autora já esteve aqui em três outras oportunidades, nos boletins n. 13; n. 273; e n. 347. Nesta última, publicada há dois anos, o boletim homenageou a poeta dias após sua morte, em fevereiro de 2016.

Agora, Myriam Fraga retorna ao boletim por causa da publicação de seu livro póstumo Poemas, lançado em 2017 pela Editora 7Letras, do Rio de Janeiro.

Não é difícil perceber que esse volume foi organizado (pela própria autora, conforme o site da editora) como uma despedida ou, como diz o prefaciador Eduardo de Assis Duarte, uma “cerimônia do adeus”. Em substancial parte dos poemas, a poeta revela a preocupação com os mistérios da morte.

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No livro, somente alguns textos exibem a data de composição. Portanto, é difícil dizer com precisão quais deles foram escritos depois que a poeta tomou conhecimento de que era portadora de leucemia, a enfermidade que iria abatê-la. Um poema que certamente é posterior à doença é “O país invisível”.

Nesse texto, a poeta parece já despida de toda esperança. “Espreito a minha morte / Colada nos espelhos...”, diz ela nos primeiros versos. E o poema prossegue, afirmando que “o tempo dói / Como espinhos no peito...” e termina fazendo referência ao “infinito azul / Dos últimos instantes”.

Outro texto que sem dúvida foi escrito quando a poeta já tinha consciência de seu terrível diagnóstico é “Leusemya” — a palavra escrita assim mesmo: com S e Y. Durante a leitura, fiquei imaginando por que a autora recorreu a essa grafia. Pode-se supor que a doença pareça tão aterrorizante que a vítima, apavorada, preferiu disfarçar o nome do monstro, como uma recusa a nomeá-lo e assim, quem sabe, exorcizá-lo.

No poema, a autora descreve sensações provocadas pela doença: “Um arrepio breve, um espasmo / Sutil e lânguido sob a pele”. Talvez isso explique o uso do S no título, para obter o elemento de formação “semia”, que dá a ideia de sinais e, portanto, de sintomas. Uma vez que estamos no campo das hipóteses, cabe ainda notar que a letra Y provoca o encontro “my”, as letras iniciais do nome da poeta.

Belo e emocionante, “Leusemya” é um poema que provoca arrepios no leitor. A poeta reage. Embora experimente “a solidão dos condenados”, entende que há um “prazer que não se esgota” nem mesmo com a proximidade da morte, “essa canalha”. É um texto que requer fôlego e atenção na leitura. As cinco primeiras estrofes (19 versos) constituem uma única frase, como se a autora precisasse desesperadamente despejar toda a angústia de uma só vez.

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O poema seguinte, “Sete Portas e Nenhuma Saída”, pertence a outra divisão do livro chamada “O caçador”. Nessa seção Myriam Fraga aproxima-se de conceitos do candomblé, um dos pilares da religiosidade popular afro-baiana. Isso fica evidente a partir do próprio título: o caçador refere-se ao orixá Oxóssi.

“Sete Portas e Nenhuma Saída” tem localização específica: Salvador, a cidade onde nasceu e viveu a poeta. A primeira estrofe diz: “Nesta cidade, há um deus em cada esquina. / Em cada encruzilhada, o sagrado se revela / Em farinha dourada e penas pretas de galinha”. Apesar da profusão de deuses e dos recursos para cultivá-los, ler a sorte, afastar os malefícios e abrir caminhos, o cômputo final não parece tão promissor: “O resto é a solidão e algumas portas”.

Este poema remete ao Mercado das Sete Portas, em Salvador, que abriga uma das feiras tradicionais da cidade e também dá nome ao bairro onde se localiza, as Sete Portas. Curiosidade: o número cabalístico de portas sugere que o lugar talvez faça parte dos mistérios de tantos deuses. Não é bem assim. Construído em 1940 por um empresário, o estabelecimento ganhou esse nome exatamente porque — por acaso? — tem sete portas.

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Saltemos agora para outra seção do livro, “As Sombras”, na qual a poeta faz homenagens a artistas de sua predileção. Os nomes incluem Virginia Woolf, Garcia Lorca, Pablo Neruda, Van Gogh, Chagall. Selecionei dois desses poemas, um dedicado ao memorialista mineiro Pedro Nava (1903-1984) e o outro ao poeta e ativista negro sul-africano Benjamin Moloise, executado na forca em 1985 pelo regime do apartheid.

“Elegia Numa Tarde de Maio”, o poema em memória de Nava, fala da morte do médico, poeta e prosador, que se suicidou com um tiro na cabeça no Rio de Janeiro, onde morava. “Apenas um estampido / E a luz / De uma mágoa secreta, // Última visão, último círio / Aceso / Na noite do poeta.” Com esse “último círio”, a poeta detalhista lembra que o volume 6 das memórias de Nava tem por título O Círio Perfeito.

Escrito em prosa, o poema dedicado a Benjamin Moloise chama-se “Réquiem para um Poeta Assassinado”. A poeta levanta a voz diante da morte do ativista e escritor. Em 1984, antes da execução, governos e entidades internacionais, inclusive a ONU, pediram clemência. Os chefes do apartheid não ouviram. Myriam Fraga se expressa com indignação: “Este é um tempo de lama, náusea e grito. O sangue coagulado clama por nós em Pretória”.

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Deixei para o fim dois poemas mais leves. Um é “Infância”, no qual a poeta mescla o faz de conta com a realidade — e conclui que, após a passagem do tempo, os dois são uma coisa só. O outro é um texto curtíssimo, uma breve definição de poesia.

Com Poemas, um belo e doído livro póstumo, a poeta Myriam Fraga reafirma seu lugar como uma das vozes mais representativas da poesia brasileira contemporânea. Uma poesia que passa ao largo dos modismos e cultiva a substância daquilo que é feito para durar.

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Nascida em Salvador, em 1937, Myriam Fraga destacou-se como poeta, biógrafa e administradora cultural. Diretora executiva da Fundação Casa de Jorge Amado desde sua criação em 1986, ela tomou parte em diferentes organismos, como o Conselho Federal de Cultura e o Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Era também membro ativo da Academia de Letras de seu estado.

Merece ainda destaque sua obra de divulgação histórica e cultural. Ela escreveu Leonídia, a Musa Infeliz do Poeta Castro Alves (2002) e uma coleção completa de livros infantojuvenis com biografias de escritores e artistas como Luiz Gama, Castro Alves, Jorge Amado, Carybé e Graciliano Ramos. Myriam Fraga faleceu em 2016.




Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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Canções do país invisível

• Myriam Fraga


              



Eugeniusz Zak - Bandolinista
Eugeniusz Zak, pintor polonês, Bandolinista


O PAÍS INVISÍVEL

Espreito a minha morte
Colada nos espelhos...

O poema que esqueci
Não mais existe,
E o tempo dói
Como espinhos no peito...

Havia um sonho...
Na última prateleira do desejo,
Havia um sonho,

Quando tudo era ainda possível,
E a vida, como o sol,
Explodia no horizonte,

No infinito azul
Dos últimos instantes.



Eugeniusz Zak - Busto de uma jovem - 1913
Eugeniusz Zak, Busto de uma jovem (1913)


LEUSEMYA

Aos poucos, devagar,
Como sombras na tarde,
Um arrepio breve, um espasmo.
Sutil e lânguido sob a pele

Escorre em minhas veias
Onde os dentes do tempo desenharam
A rota das ausências e os perigos da noite

E onde chorando, cumpro a solidão
Dos condenados, inexplorado território
Do prazer que não se esgota

Nem mesmo quando a morte, esta canalha,
Vai apagando o sol desse segredo
E lentamente escreve com sua marca
O que vivido ainda não foi e se repete,

Sofreguidão da carne que no tempo,
Entre artérias e músculos e segredos,
Tenta escrever em vão novos roteiros
Neste corpo febril que aos poucos se destroça
Explodindo em violetas sob a pele.

Será a vida apenas este ardor implacável,
Esta salsugem escorrendo das artérias?
Aquele que no escuro se avizinha
Envolto em sombras, o maldito, amor bandido,
Com seus dedos de pianista
Acendendo no teclado a sinfonia do desejo?

Escuros anjos do espaço, sujos anjos do insondável,
Estendam sobre mim as suas negras asas
Para que se faça a luz no oscilante coração
Antes que apague, antes mesmo que apague...



Eugeniusz Zak - Cabeça de mulher
Eugeniusz Zak, Cabeça de mulher


SETE PORTAS E NENHUMA SAÍDA

Nesta cidade, há um deus em cada esquina.
Em cada encruzilhada, o sagrado se revela
Em farinha dourada e penas pretas de galinha.

Uma força invisível domina as tempestades,
E, no mar encapelado, a oferenda dos barcos
Acalma a fúria da rainha.

Nesta cidade, o divino se adivinha
No mistério das folhas que eliminam
O mal que nos consome, a dor que nos oprime.

Ifá conduz o jogo, atiça os búzios,
Afasta o malefício e abre os caminhos.
O resto é a solidão e algumas portas.



Eugeniusz Zak - No cabaré
Eugeniusz Zak, No cabaré


ELEGIA NUMA TARDE DE MAIO

            Para Pedro Nava, in memoriam

Não a morte, fruta
Colhida ao acaso,

Mas a vida amputada,
Flor,
Por um golpe de espada.

Não o fio enrolado,
Novelo
Esticado e refeito,

Mas o rápido corte,
A seda,
Da moeda desfeita.

Não o clarão da aurora,
O fulgor de uma estrela.

Apenas um estampido
E a luz
De uma mágoa secreta,

Última visão, último círio
Aceso
Na noite do poeta.



Eugeniusz Zak - Pierrot - 1922
Eugeniusz Zak, Pierrô (1922)


RÉQUIEM PARA UM POETA ASSASSINADO

            Para Benjamin Moloise, in memoriam

Negro é o fundo do poço. E negro o instante para o acerto final. Lâmina entre os dentes, o canto prenuncia punhais. Teu canto; negro, como a noite refletida em mofados espelhos. Gritas. Não te ouvem. Nunca ouvem. No vazio absoluto, só o baque surdo do corpo e o olho vidrado da mãe. Agora todas as mães do mundo choram os filhos mortos: o peso no regaço. Negro é o fundo do poço, o alçapão que se abre. Cantas a última canção, e te levam para a morte. Estás sozinho no escuro, o escuro é o teu país. Mas o canto soa claro e é luz na sombra. Que pode afinal um poeta de mãos negras, de negro coração sequioso de vingança? A fome dos cães está completa. A fome dos punhais.

Canto agora teu canto. O que cantaste caminhando devagar em direção aos loucos patamares, aos degraus do suplício. Houve um minuto de assombro, bolha de silêncio. Depois, o choro amargo da mãe e um ódio longo como um rastilho de pólvora. Poetas rebelados de todos os quadrantes, uni-vos!

Este é um tempo de lama, náusea e grito. O sangue coagulado clama por nós em Pretória.



Eugeniusz Zak - Mulher de xale-c1910
Eugeniusz Zak, Mulher de xale (c. 1910)


INFÂNCIA

Faz de conta
Que tudo se passou
No campo do previsto.

Vestido de organdi,
Meias de seda,
Sapatos de verniz.

Faz de conta
Que eu sempre
Fui feliz.

Eu sempre fui feliz.
(Mas não sabia).



Eugeniusz Zak - Autorretrato - 1916
Eugeniusz Zak, Autorretrato (1916)


POESIA

Poesia é um sonho apenas.
Mais que um sonho,
É apenas.



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2018



Myriam Fraga
•  in Poemas
    7Letras, Rio de Janeiro, 2017
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* Antonio Brasileiro, "O Cavaleiro", in Dedal de Areia (2006)
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* Imagens: obras de Eugeniusz Zak (1884-1926), pintor
  pós-impressionista polonês