Amigas e amigos,
Este é o primeiro poesia.net de 2018. Terminamos o ano passado com a comemoração dos 15 anos do boletim, que ficou registrada
num site especial, o poesia.net 15 anos. Agora, após o
recesso de verão, voltamos às edições quinzenais regulares.
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Nesta edição, o poesia.net destaca a poeta baiana Myriam Fraga (1937-2016).
A autora já esteve aqui em três outras oportunidades, nos boletins n. 13; n. 273; e n. 347. Nesta última, publicada há dois anos, o boletim homenageou a poeta dias após sua morte, em fevereiro de 2016.
Agora, Myriam Fraga retorna ao boletim por causa da publicação de seu livro póstumo Poemas, lançado em 2017 pela Editora 7Letras,
do Rio de Janeiro.
Não é difícil perceber que esse volume foi organizado (pela própria autora, conforme o site da editora) como uma despedida ou, como diz
o prefaciador Eduardo de Assis Duarte, uma “cerimônia do adeus”. Em substancial parte dos poemas, a poeta revela a preocupação com os
mistérios da morte.
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No livro, somente alguns textos exibem a data de composição. Portanto, é difícil dizer com precisão quais deles foram escritos depois que a poeta tomou conhecimento
de que era portadora de leucemia, a enfermidade que iria abatê-la. Um poema que certamente é posterior à doença é “O país invisível”.
Nesse texto, a poeta parece já despida de toda esperança. “Espreito a minha morte / Colada nos espelhos...”, diz ela nos primeiros
versos. E o poema prossegue, afirmando que “o tempo dói / Como espinhos no peito...” e termina fazendo referência ao “infinito azul
/ Dos últimos instantes”.
Outro texto que sem dúvida foi escrito quando a poeta já tinha consciência de seu terrível diagnóstico é “Leusemya” — a palavra
escrita assim mesmo: com S e Y. Durante a leitura, fiquei imaginando por que a autora recorreu a essa grafia. Pode-se supor que
a doença pareça tão aterrorizante que a vítima, apavorada, preferiu disfarçar o nome do monstro, como uma recusa a nomeá-lo e
assim, quem sabe, exorcizá-lo.
No poema, a autora descreve sensações provocadas pela doença: “Um arrepio breve, um espasmo / Sutil e lânguido sob a pele”.
Talvez isso explique o uso do S no título, para obter o elemento de formação “semia”, que dá a ideia de sinais e, portanto,
de sintomas. Uma vez que estamos no campo das hipóteses, cabe ainda notar que a letra Y provoca o encontro “my”, as
letras iniciais do nome da poeta.
Belo e emocionante, “Leusemya” é um poema que provoca arrepios no leitor. A poeta reage. Embora experimente “a solidão dos
condenados”, entende que há um “prazer que não se esgota” nem mesmo com a proximidade da morte, “essa canalha”. É um texto
que requer fôlego e atenção na leitura. As cinco primeiras estrofes (19 versos) constituem uma única frase, como se a autora
precisasse desesperadamente despejar toda a angústia de uma só vez.
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O poema seguinte, “Sete Portas e Nenhuma Saída”, pertence a outra divisão do livro chamada “O caçador”. Nessa seção Myriam
Fraga aproxima-se de conceitos do candomblé, um dos pilares da religiosidade popular afro-baiana. Isso fica evidente a partir
do próprio título: o caçador refere-se ao
orixá Oxóssi.
“Sete Portas e Nenhuma Saída” tem localização específica: Salvador,
a cidade onde nasceu e viveu a poeta. A primeira estrofe diz: “Nesta cidade, há um deus em cada esquina. / Em cada encruzilhada,
o sagrado se revela / Em farinha dourada e penas pretas de galinha”. Apesar da profusão de deuses e dos recursos para cultivá-los,
ler a sorte, afastar os malefícios e abrir caminhos, o cômputo final não parece tão promissor: “O resto é a solidão e algumas portas”.
Este poema remete ao Mercado das Sete Portas, em Salvador, que abriga uma das feiras tradicionais da cidade e também dá nome
ao bairro onde se localiza, as Sete Portas. Curiosidade: o número cabalístico de portas sugere que o lugar talvez faça parte dos
mistérios de tantos deuses. Não é bem assim. Construído em 1940 por um empresário, o estabelecimento ganhou esse nome exatamente
porque — por acaso? — tem sete portas.
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Saltemos agora para outra seção do livro, “As Sombras”, na qual a poeta faz homenagens a artistas de sua predileção. Os nomes
incluem Virginia Woolf, Garcia Lorca, Pablo Neruda, Van Gogh, Chagall. Selecionei dois desses poemas, um dedicado ao memorialista
mineiro Pedro Nava (1903-1984) e o outro ao poeta e ativista negro sul-africano Benjamin Moloise, executado na forca em 1985 pelo regime do
apartheid.
“Elegia Numa Tarde de Maio”, o poema em memória de Nava, fala da morte do médico, poeta e prosador, que se suicidou com um tiro na
cabeça no Rio de Janeiro, onde morava. “Apenas um estampido / E a luz / De uma mágoa secreta, // Última visão, último círio / Aceso /
Na noite do poeta.” Com esse “último círio”, a poeta detalhista lembra que o volume 6 das memórias de Nava tem por título O Círio
Perfeito.
Escrito em prosa, o poema dedicado a Benjamin Moloise chama-se “Réquiem para um Poeta Assassinado”. A poeta levanta a voz diante da
morte do ativista e escritor. Em 1984, antes da execução, governos e entidades internacionais, inclusive a ONU, pediram clemência.
Os chefes do apartheid não ouviram. Myriam Fraga se expressa com indignação: “Este é um tempo de lama, náusea e grito. O
sangue coagulado clama por nós em Pretória”.
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Deixei para o fim dois poemas mais leves. Um é “Infância”, no qual a poeta mescla o faz de conta com a realidade — e conclui que, após
a passagem do tempo, os dois são uma coisa só. O outro é um texto curtíssimo, uma breve definição de poesia.
Com Poemas, um belo e doído livro póstumo, a poeta Myriam Fraga reafirma seu lugar como uma das vozes mais representativas da poesia
brasileira contemporânea. Uma poesia que passa ao largo dos modismos e cultiva a substância daquilo que é feito para durar.
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Nascida em Salvador, em 1937, Myriam Fraga destacou-se como poeta, biógrafa e
administradora cultural. Diretora executiva da Fundação Casa de Jorge Amado desde
sua criação em 1986, ela tomou parte em diferentes organismos, como o Conselho
Federal de Cultura e o Conselho Estadual de Cultura da Bahia. Era também membro
ativo da Academia de Letras de seu estado.
Merece ainda destaque sua obra de divulgação histórica e cultural. Ela escreveu
Leonídia, a Musa Infeliz do Poeta Castro Alves (2002) e uma coleção completa
de livros infantojuvenis com biografias de escritores e artistas como
Luiz Gama, Castro Alves, Jorge Amado, Carybé e Graciliano Ramos.
Myriam Fraga faleceu em 2016.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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