Amigas e amigos,
O boletim desta quinzena traz, depois de largo tempo, uma poeta estreante. Independentemente de qualquer outra consideração,
os novos poetas precisam ser saudados com vivas, hurras e boas-vindas. Afinal, em vez de “perder tempo com poesia”, há tantas
atividades mais vantajosas e coerentes com as ideias dominantes...
Portanto, bem-vinda seja a jovem poeta gaúcha Ana Santos (Porto Alegre, 1984) e bem-vindo seu livro de estreia, Móbile,
lançado em 2017 pela Patuá. Que seja o primeiro de uma longa série.
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A poesia de Ana Santos é como esses discretos ventos benfazejos, que chegam sem alarde e sem aviso. Apenas chegam e instalam
uma sensação de sutil bem-estar. No livro dela não há poemas em voz alta, ninguém sofre de forma desabrida, não há prazeres
celestes nem sofrimentos do inferno. Há, sim: sorrisos tímidos, dores pequeninas e principalmente momentos de poesia pura e singela.
Do livro Móbile selecionei oito poemas para este boletim. O primeiro deles é “Macieira”. Leve e breve, descreve uma
transmutação vegetal ou uma “incorporação” de árvore frutífera. Com pouquíssimas palavras, a poeta convence o leitor da
realidade desse inusitado fenômeno. A mulher do texto amanhece com os cabelos cheios de maçãs.
No texto “Medo”, a pessoa que fala assume uma sensibilidade extrema e revela séria preocupação com "a tesoura / que corta o
fio da vida". Sutileza é talvez a palavra-chave de poemas como este. Que o leitor não espere frases de efeito ou flores de
retórica. É tudo simples e discreto e, mesmo em voz baixa, dá o recado.
No próximo poema, “Os Cardumes”, Ana Santos trata do cotidiano das pessoas que passam boa parte da vida nos escritórios.
“Secamos / em repartições”, diz ela. E conclui que falta água nos tórridos aquários da burocracia. “Todo um cardume /
morre nas gavetas”. O que seriam esses peixes sufocados? Talvez os sonhos de toda aquela gente que navega em seco dia
após dia nesse ambiente de gavetas estéreis.
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Ao ler o poema “Alvissareira”, lembrei-me de um velho clássico do cancioneiro norte-americano, “I’m gonna sit right down
and write myself a letter”. Nessa canção, a desconsolada pessoa que fala decide escrever uma carta a si mesma fingindo
tê-la recebido de alguém distante. O sentimento expresso no poema é similar. Nele, o eu poético confessa ter “fome de boas
novas” e quer receber postais de lugares distantes. Por falta disso, lança aviões de papel de cima dos telhados. Um poema
que dilui num copo de mágoa algumas gotas de fina ironia.
“Verde-relva” é um poema bonito. Pura tristeza. Pura constatação desses embustes que a vida e a morte nos aplicam: “Quando
compraste essa blusa / verde-relva / (...) / como poderias supor / que ela seria teu traje último?”
Em “Poda”, três versos curtos exprimem mais uma intrigante contradição. Às vezes é necessário amputar o paciente para
garantir-lhe vida mais forte e saudável.
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No último poema, “Tavessia”, um momento de delicadeza lírica. Dois casais, um de jovens (que observam) e o outro de velhinhos
(que são observados), encontram-se em lados opostos da rua. Cria-se toda uma onda de simpatia e cumplicidade. Passado e
futuro miram-se no espelho.
Neste poema observo um dos procedimentos poéticos desenvolvidos por Ana Santos, também encontráveis em outros textos.
A poeta não se estende em expressar os sentimentos envolvidos na cena. Ela apenas fixa a fotografia. Os espectadores, depois,
vão usar sua própria sensibilidade para sintonizar os sentimentos e outros detalhes.
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Nascida em Porto Alegre, onde mora e trabalha como revisora de textos, Ana Santos é graduada em jornalismo pela UFRGS. Também
nessa entidade atualmente finaliza o mestrado em Estudos Literários Aplicados. É autora do livro de contos e prosa poética
O que faltava ao peixe (Libretos, 2011), contemplado com a Bolsa Funarte de Estímulo à Criação Artística.
Móbile (Patuá, 2017) é seu primeiro livro de poesia.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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