Número 400 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 30 de maio de 2018

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«Outono é a estação em que ocorrem tais crises, / e em maio, tantas vezes, morremos.» (Carlos Drummond de Andrade)

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Donizete Galvão e Francisco Carvalho
Donizete Galvão e Francisco Carvalho


Amigas e amigos,

Este é um boletim especial. Aos 15 anos e meio de circulação, o poesia.net atinge a edição número 400. São quatro centenas de inserções via e-mail; no site Alguma Poesia; e, nos últimos quatro anos, também no Facebook.


Para marcar a passagem desta edição multicentenária, imaginei várias formas de organizar o presente boletim. Uma delas consistia em pinçar poemas de uma progressão numérica de boletins. Tentei, por exemplo, em base aritmética: 50, 100, 150 etc. Não deu certo. Experimentei, ainda, com avanços geométricos e, igualmente, não gostei do resultado.

Abandonei, então, os números e, após outros ensaios, resolvi homenagear poetas destacados em algum momento no boletim e que, infelizmente, faleceram. Vários poetas se enquadram nesse critério, mas afinal acabei ficando com dois: o mineiro Donizete Galvão (1955-2014) e o cearense Francisco Carvalho (1927-2013).

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Ambos os poetas apareceram mais de uma vez no poesia.net. Donizete Galvão esteve aqui nas edições (n. 19, de 2003), (n. 236, de 2007) e (n. 302, de 2014). Francisco Carvalho, por sua vez, foi destaque neste boletim nas edições n. 102 (2005), n. 212 (2007) e n. 287 (2013).

Também poderiam entrar neste boletim poetas como a baiana Myriam Fraga (1937-2016), a paulista Hilda Hilst (1930-2004) e a Prêmio Nobel polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012) — o que seria excelente para elevar a presença feminina no poesia.net. Contudo, as três poetas foram alvo de edições bem recentes: Myriam Fraga (n. 393, 2018), Hilda Hilst (n. 395, 2018) e Wislawa Szymborska (n. 372, 2017).

Assim, ficamos somente com Donizete Galvão e Francisco Carvalho. Fisguei, nos boletins em que os poetas apareceram, três poemas de cada um, que são comentados abaixo e transcritos ao lado.

Existe, aliás, uma ligação entre os dois poetas em relação ao poesia.net. Donizete Galvão é que me apresentou a poesia de Francisco Carvalho: emprestou-me o livro Quadrante Solar (1982), com o qual o poeta cearense ganhou o Prêmio Nestlé. Baseado nesse livro, organizei o primeiro boletim dedicado a Francisco Carvalho.

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DONIZETE GALVÃO

Vamos aos poemas de Donizete Galvão. Observo que escolhi três textos muito associados à biografia do autor. Em “Autorretrato como Boi”, o poeta externa seu mal-estar em viver na metrópole. Quem o conheceu sabe muito bem o quanto Donizete Galvão era um homem dividido entre a cidade grande, onde se estabeleceu, criou família e extensos laços de amizade, e a infância no sítio paterno em Borda da Mata, no sul de Minas.

Neste autorretrato [até hoje ainda estranho a nova grafia desta palavra], o poeta incorpora a condição de “boi” inadaptado. “Boi com crachá / e carteira assinada”, “Boi indistinto / na boiada da cidade”. Nos três versos finais, o poeta se desnuda, mais uma vez, revelando sua proverbial insônia e a vinculação de noites indormidas com o refino da poesia: ruminação de “palavras pastadas / na ribanceira dos dias”. Não é demais lembrar que este texto foi publicado originalmente num livro chamado Ruminações.

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No poema “Escoiceados”, o poeta reafirma sua origem. Conta a história de um burro, o Ligeiro, adquirido pelo pai, e as aventuras do trio pai, filho e  animal de carga. Antológico em sua profundidade humana (e social), “Escoiceados” já se transformou em livro independente, lançado postumamente em 2014 pela editora Casa de Virgínia, de Itajubá-MG.

Em “Vida Minúscula”, Donizete Galvão retorna ao tema da inadaptação pessoal/social. Mas agora o desencontro não se dá somente na cidade, mas também no ambiente familiar e na comunidade de origem.

Para o poeta, “quem nasceu destinado / à terra / à enxada” e descobre os encantos da literatura engole “um veneno / que o aparta dos seus”. Pior: afastado dos seus, ele passa a viver num mundo que sempre lhe será estranho. Nesse aspecto, o poema reverbera o espírito drummondiano: “No elevador, penso na roça, / na roça, penso no elevador”.

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FRANCISCO CARVALHO

Passemos aos poemas de Francisco Carvalho. O poeta cearense nos apresenta uma dicção bem diferente da apresentada pelo colega mineiro. Mas há nos dois pelo menos um ponto comum, além da sensibilidade e da invenção poética: ambos têm as antenas bem ligadas para o difícil espetáculo do mundo.

Veja-se, por exemplo, o poema “Burocracia”, de Francisco Carvalho. Aqui, o indivíduo que fala dirige-se a uma segunda pessoa — um “tu” que é na verdade todo mundo — e procura chamar a atenção para “o corpo ensanguentado dos acontecimentos”. Observa também que “eles” governam cada passo de nossas vidas.

Eles — quem? Certamente, os donos do poder, aqueles que instilam em todos os poros da sociedade os venenos da ideologia dominante: consumo, individualismo, indiferença diante da injustiça e do sofrimento alheio.

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No poema “Estudo”, Francisco Carvalho reflete sobre as súbitas descobertas que “assaltam” o homem maduro. “De repente descobrimos que os espelhos nos evitam / que o amanhã pertence aos outros”. O indivíduo se dá conta, de maneira mais palpável, de que existe no horizonte a perspectiva do fim. E percebe, afirma o poema, que tudo envelhece — inclusive as palavras e o amor.

Em “Dialética do Poema” o poeta se propõe a definir o ato de escrever poesia. E chega a este precioso enunciado: “Fazer um poema / não é dizer coisas profundas. / É ver as coisas como as coisas não são”. Francisco Carvalho demonstra verdadeiro afã em descobrir frases assim. Em outro poema, não transcrito aqui, ele afirma: “Fazer o poema / é agarrar o agora / para pô-lo inteiro / dentro da metáfora”.

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SOBRE OS DOIS POETAS

DONIZETE GALVÃO nasceu na cidade de Borda da Mata, no sul de Minas, em 1955. Cursou administração de empresas em Santa Rita do Sapucaí, na mesma região, e depois mudou-se para São Paulo. Aí cursou jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e trabalhou por mais de duas décadas como jornalista e publicitário. Sua obra poética compõe-se de sete livros de poesia — de Azul Navalha (1988) a O Homem Inacabado (2010). Há ainda o volume Pelo Corpo, escrito em parceria com o poeta Ronald Polito, mais coletâneas de poemas para crianças. Donizete Galvão faleceu em 2014.

FRANCISCO CARVALHO (Russas-CE, 1927) escreveu mais de 30 livros de poesia, somente poesia. Estreou com Cristal da Memória em 1955 e produziu em ritmo incansável até a publicação de Mortos Não Jogam Xadrez (2008). O poeta faleceu em 2013.

É pena estarmos assistindo hoje a uma verdadeira destruição do Brasil. Trata-se de um momento no qual falar em poesia parece um atestado de cegueira e alienação. No entanto, mais do que nunca é hora de afirmar a poesia e ajudar o país a encontrar seu caminho de democracia e justiça social. E, ao afirmar a poesia, creio que é justo pensar na ampla divulgação, de norte a sul, da obra e do nome desses dois poetas, Donizete Galvão e Francisco Carvalho.



Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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Dois poetas no teatro do mundo

• Donizete Galvão  • Francisco Carvalho  





Emanuil Popgenchev - No café
Emanuil Popgenchev, pintor búlgaro, No café



• Donizete Galvão

AUTORRETRATO COMO BOI

Eu boi.
Boi de mim mesmo.
Boi sonso.
Boi de canga.
Boi de carro.
Boi de ônibus.
Boi de arado.
Boi sangrado por ferrão.
Boi de carreto
Boi em prédio de vidro.
Boi com crachá
e carteira assinada.
Boi comprovado.
Boi indistinto
na boiada da cidade.
Boi tangido.
Boi bernento.
Boi de joelhos
sem um mugido
na escuridão.
No curral da insônia,
rumino palavras pastadas
na ribanceira dos dias.

   De Ruminações (1999)



Emanuil Popgenchev - Senhora e menina
Emanuil Popgenchev, Senhora e menina



ESCOICEADOS

Meu pai e eu
nunca subimos
num alazão
que galopasse
ao vento.
Tínhamos
um burro
cinza malhado:
o Ligeiro.
Foi apanhado
de um conhecido
por ninharia.
Chegou com fama
de sistemático,
cheio de refugos.
De trote tão curto
que dava dor
nas costelas.
De certa vez,
caímos do burro.
Meu pai e eu.
Eu e meu pai.
Embolados.
Joelhos esfolados
no pedregulho.
Levamos
bons coices.
Meu pai e eu.
Os dois
nunca subimos
na vida.

   De Ruminações (1999)



Emanuil Popgenchev - Última reunião
Emanuil Popgenchev, Última reunião



VIDA MINÚSCULA

para quem nasceu destinado
à terra
à enxada
às tarefas
às lidas com o gado
         a descoberta da língua,
         para além do uso ordinário,
         e dos livros
traz um veneno
que o aparta dos seus

         extravia-se
         vive-se à margem
         deseja sem saber o quê

tateia em um mundo
que sempre lhe será estranho

   De O Homem Inacabado (2010)



Emanuil Popgenchev - Após o concerto
Emanuil Popgenchev, Após o concerto



• Francisco Carvalho

BUROCRACIA

Eles te advertem que a aurora foi abolida
por tempo indeterminado.
Eles te comunicam que o trigo e o vento
vão ser exportados para o arco-íris.
Eles te aconselham a esquecer
o corpo ensanguentado dos acontecimentos.
Eles te ensinam que o orvalho não cai
sobre aqueles que semeiam dúvidas.
Eles te mandam esvaziar as palavras
de toda a possível reminiscência.
Eles te fiscalizam do alto dos edifícios
escanchados nalgum dragão lunar.
Eles te dão um ataúde azul
e te ordenam que é tempo de morrer.

   De Quadrante Solar (1982)



Emanuil Popgenchev - Mulher com papagaio
Emanuil Popgenchev, Mulher com papagaio



ESTUDO

Subitamente descobrimos o acaso
na nuvem que passa pelo pássaro
ou no pássaro que soturnamente percorre a nuvem.

De repente aprendemos a flor das coisas
e os seus movimentos na paisagem.
De repente trocamos a imagem pela paisagem
a palmatória pela parábola.

De repente descobrimos que os espelhos nos evitam
que o amanhã pertence aos outros
que da janela somos observados
por super-homens de celuloide.
De repente é o metal do amor que silencia
no coração onde tudo é paisagem.

Subitamente compreendemos
que as palavras envelhecem com os homens
que o amor também envelhece
quando as palavras envelhecem.

   De Os Mortos Azuis (1971)



Emanuil Popgenchev - Menina com gato
Emanuil Popgenchev, Menina com gato



DIALÉTICA DO POEMA

Fazer um poema
não é dizer coisas profundas.
É ver as coisas como as coisas não são.

Fazer um poema não é viajar no espelho.
É ir à procura do rosto do homem
perdido na escuridão.

É descer às raízes do sangue e do mito.
Fazer um poema é estar em conflito
com os dedos da mão.

   De O Silêncio é uma Figura Geométrica (2002)




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2018



Donizete Galvão
 • “Autorretrato como Boi”, “Escoiceados”
      in Ruminações
      Nankin Editorial, São Paulo, 1999
 • “Vida Minúscula”
      in O Homem Inacabado
      Portal Editora, São Paulo, 2010

Francisco Carvalho
 • “Burocracia”
      in Quadrante Solar
      Prêmio Nestlé/ L R Editores, São Paulo, 1982
 • “Estudo”, “Dialética do Poema”
      in Memórias do Espantalho - Poemas Escolhidos
      Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004

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* Carlos Drummond de Andrade, “Tarde de Maio”, in Claro Enigma (1951)
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* Imagens: quadros de Emanuil Popgenchev (1942-2010), pintor búlgaro