Amigas e amigos,
Este é um boletim especial. Aos 15 anos e meio de circulação, o poesia.net atinge a edição número 400. São quatro centenas de inserções
via e-mail; no site Alguma Poesia; e, nos últimos quatro anos, também no Facebook.
Para marcar a passagem desta edição multicentenária, imaginei várias formas de organizar o presente boletim. Uma delas consistia em pinçar
poemas de uma progressão numérica de boletins. Tentei, por exemplo, em base aritmética: 50, 100, 150 etc. Não deu certo. Experimentei, ainda,
com avanços geométricos e, igualmente, não gostei do resultado.
Abandonei, então, os números e, após outros ensaios, resolvi homenagear poetas destacados em algum momento no boletim e que, infelizmente,
faleceram. Vários poetas se enquadram nesse critério, mas afinal acabei ficando com dois: o mineiro Donizete Galvão (1955-2014) e o cearense
Francisco Carvalho (1927-2013).
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Ambos os poetas apareceram mais de uma vez no poesia.net. Donizete Galvão esteve aqui nas edições
(n. 19, de 2003),
(n. 236, de 2007) e
(n. 302, de 2014).
Francisco Carvalho, por sua vez, foi destaque neste boletim nas edições
n. 102
(2005), n. 212
(2007) e n. 287 (2013).
Também poderiam entrar neste boletim poetas como a baiana Myriam Fraga (1937-2016), a paulista Hilda Hilst (1930-2004) e a Prêmio Nobel
polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012) — o que seria excelente para elevar a presença feminina no poesia.net. Contudo, as três
poetas foram alvo de edições bem recentes: Myriam Fraga (n. 393, 2018), Hilda Hilst (n. 395, 2018) e
Wislawa Szymborska (n. 372, 2017).
Assim, ficamos somente com Donizete Galvão e Francisco Carvalho. Fisguei, nos boletins em que os poetas apareceram, três poemas de cada um,
que são comentados abaixo e transcritos ao lado.
Existe, aliás, uma ligação entre os dois poetas em relação ao poesia.net. Donizete Galvão é que me apresentou a poesia de Francisco
Carvalho: emprestou-me o livro Quadrante Solar (1982), com o qual o poeta cearense ganhou o Prêmio Nestlé. Baseado nesse livro,
organizei o primeiro boletim dedicado a Francisco Carvalho.
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DONIZETE GALVÃO
Vamos aos poemas de Donizete Galvão. Observo que escolhi três textos muito associados à biografia do autor. Em “Autorretrato como Boi”, o
poeta externa seu mal-estar em viver na metrópole. Quem o conheceu sabe muito bem o quanto Donizete Galvão era um homem dividido entre a
cidade grande, onde se estabeleceu, criou família e extensos laços de amizade, e a infância no sítio paterno em Borda da Mata, no sul de Minas.
Neste autorretrato [até hoje ainda estranho a nova grafia desta palavra], o poeta incorpora a condição de “boi” inadaptado. “Boi com crachá /
e carteira assinada”, “Boi indistinto / na boiada da cidade”. Nos três versos finais, o poeta se desnuda, mais uma vez, revelando sua proverbial
insônia e a vinculação de noites indormidas com o refino da poesia: ruminação de “palavras pastadas / na ribanceira dos dias”. Não é demais
lembrar que este texto foi publicado originalmente num livro chamado Ruminações.
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No poema “Escoiceados”, o poeta reafirma sua origem. Conta a história de um burro, o Ligeiro, adquirido pelo pai, e as aventuras do trio pai,
filho e animal de carga. Antológico em sua profundidade humana (e social), “Escoiceados” já se transformou em livro independente, lançado
postumamente em 2014 pela editora Casa de Virgínia, de Itajubá-MG.
Em “Vida Minúscula”, Donizete Galvão retorna ao tema da inadaptação pessoal/social. Mas agora o desencontro não se dá somente na cidade, mas
também no ambiente familiar e na comunidade de origem.
Para o poeta, “quem nasceu destinado / à terra / à enxada” e descobre os encantos da literatura engole “um veneno / que o aparta dos seus”.
Pior: afastado dos seus, ele passa a viver num mundo que sempre lhe será estranho. Nesse aspecto, o poema reverbera o espírito drummondiano:
“No elevador, penso na roça, / na roça, penso no elevador”.
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FRANCISCO CARVALHO
Passemos aos poemas de Francisco Carvalho. O poeta cearense nos apresenta uma dicção bem diferente da apresentada pelo colega mineiro.
Mas há nos dois pelo menos um ponto comum, além da sensibilidade e da invenção poética: ambos têm as antenas bem ligadas para o difícil
espetáculo do mundo.
Veja-se, por exemplo, o poema “Burocracia”, de Francisco Carvalho. Aqui, o indivíduo que fala dirige-se a uma segunda pessoa — um “tu” que
é na verdade todo mundo — e procura chamar a atenção para “o corpo ensanguentado dos acontecimentos”. Observa também que “eles” governam
cada passo de nossas vidas.
Eles — quem? Certamente, os donos do poder, aqueles que instilam em todos os poros da sociedade os venenos da ideologia dominante: consumo,
individualismo, indiferença diante da injustiça e do sofrimento alheio.
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No poema “Estudo”, Francisco Carvalho reflete sobre as súbitas descobertas que “assaltam” o homem maduro. “De repente descobrimos que
os espelhos nos evitam / que o amanhã pertence aos outros”. O indivíduo se dá conta, de maneira mais palpável, de que existe no horizonte
a perspectiva do fim. E percebe, afirma o poema, que tudo envelhece — inclusive as palavras e o amor.
Em “Dialética do Poema” o poeta se propõe a definir o ato de escrever poesia. E chega a este precioso enunciado: “Fazer um poema /
não é dizer coisas profundas. / É ver as coisas como as coisas não são”. Francisco Carvalho demonstra verdadeiro afã em descobrir
frases assim. Em outro poema, não transcrito aqui, ele afirma: “Fazer o poema /
é agarrar o agora / para pô-lo inteiro / dentro da metáfora”.
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SOBRE OS DOIS POETAS
DONIZETE GALVÃO nasceu na cidade de Borda da Mata, no sul de Minas, em 1955. Cursou administração de empresas em Santa Rita do Sapucaí,
na mesma região, e depois mudou-se para São Paulo. Aí cursou jornalismo na Faculdade Cásper Líbero e trabalhou por mais de duas décadas
como jornalista e publicitário. Sua obra poética compõe-se de sete livros de poesia — de Azul Navalha (1988) a O Homem
Inacabado (2010). Há ainda o volume Pelo Corpo, escrito em parceria com o poeta Ronald Polito, mais coletâneas de poemas
para crianças. Donizete Galvão faleceu em 2014.
FRANCISCO CARVALHO (Russas-CE, 1927) escreveu mais de 30 livros de poesia, somente poesia. Estreou com Cristal da Memória em 1955 e
produziu em ritmo incansável até a publicação de Mortos Não Jogam Xadrez (2008). O poeta faleceu em 2013.
É pena estarmos assistindo hoje a uma verdadeira destruição do Brasil. Trata-se de um momento no qual falar em poesia parece um atestado de
cegueira e alienação. No entanto, mais do que nunca é hora de afirmar a poesia e ajudar o país a encontrar seu caminho de democracia e justiça social.
E, ao afirmar a poesia, creio que é justo pensar na ampla divulgação, de norte a sul, da obra e do nome desses dois poetas, Donizete Galvão e Francisco Carvalho.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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