Amigas e amigos,
Nesta quinzena, a foto no alto desta coluna é de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), um dos nomes mais destacados da poesia em Portugal.
Natural da cidade do Porto, Sophia foi a primeira mulher portuguesa a receber, em 1999, o Prêmio Camões — a principal láurea literária do idioma.
Descendente de dinamarqueses pelo lado do pai e de nobres portugueses no lado materno, Sophia foi criada num ambiente da velha aristocracia lusa. Na Universidade
de Lisboa, onde estudou filologia clássica (sem concluir), participou de movimentos universitários de católicos progressistas que se opunham à ditadura de Salazar.
Após a Revolução dos Cravos, de 1974, que pôs fim ao salazarismo, elegeu-se em 1975 para a Assembleia Constituinte numa lista do Partido Socialista.
Além de ter escrito cerca de duas dezenas de livros em versos, produziu também contos para adultos, contos infantis, peças de teatro e traduções. Admiradora da
literatura clássica, sempre usa em seus poemas nomes de lugares e pessoas na grafia antiga, tais como Delphos e Eurydice. Outro traço fundamental de sua poesia é
a criação de uma rica mitologia em torno do mar.
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Os quatro primeiros poemas da minisseleta ao lado contêm claros sinais dessa mitologia. O primeiro deles, “[As Ondas Quebravam Uma a Uma]” — texto sem título mas,
como sempre, tratado aqui pelo primeiro verso entre colchetes — introduz itens marinhos recorrentes na imaginação da poeta como ondas, espumas e areias.
“Espera-me” é o poema seguinte. Nele surge outro aspecto dessa mitologia. Como uma repetição lírica das antigas navegações portuguesas, temos aí o marinheiro que
parte, deixa amores em terra e jura que um dia há de regressar.
Combinada com a influência clássica, a fixação nas coisas marinhas também está presente no “Soneto de Eurydice”. Neste poema de amor e perda, Sophia retorna ao
mito grego de Orfeu e Eurídice. Poeta e músico, Orfeu casou-se com a ninfa Eurídice, que morreu após a picada de uma serpente.
Triste, Orfeu foi até o mundo dos mortos para tentar trazer a amada de volta e acabou também morto pelos dardos de um grupo de mulheres selvagens, as mênades.
No soneto de Sophia, Orfeu está no mar e Eurydice o espera. Inutilmente.
O último poema da série marinha é o dístico “Inscrição”. Nele, como um lema, a poeta assume sua infinita paixão pelo oceano. Esse sentimento expresso pela poesia
de Sophia de Mello Breyner Andresen é reconhecidamente tão intenso que aqui no Brasil a cantora baiana Maria Bethânia chegou a gravar um álbum musical chamado
Mar de Sophia (2006), em homenagem à artista portuguesa. Nesse disco, Bethânia apresenta versos marinhos de Sophia entremeados com canções populares brasileiras
também ligadas ao mar.
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Os três próximos poemas são marcados por outra faceta da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen. Trata-se de sua persona política e democrática. Em “Data” ela
descreve o que se supõe seja o ambiente opressivo criado pela ditadura salazarista, que sufocou a terra portuguesa por mais de 40 anos. Mas os regimes liberticidas
são parecidos em toda parte: “Tempo de solidão e de incerteza / Tempo de medo e tempo de traição / Tempo de injustiça e de vileza / Tempo de negação”. Medo, traição,
injustiça, vileza. São palavras aplicáveis até mesmo no Brasil de hoje, com a Constituição lançada ao lixo.
O texto “Nestes Últimos Tempos” é um poema escancaradamente político. O momento, conforme a data adicionada ao pé do texto, é julho de 1976,
no contexto da redefinição do país recém-saído do fascismo salazarista. A autora admite erros da esquerda. “Caiu em desmandos confusões praticou injustiças”. “Mas que
diremos diremos da meticulosa expedita / Degradação da vida que a direita pratica?”.
Por fim, o poema “Catarina Eufémia” faz referência a uma trabalhadora rural portuguesa da região do Alentejo assassinada a tiros por um policial durante uma discussão por
melhoria salarial. Isso foi em 1954, em plena ditadura. Catarina Eufémia, analfabeta, tinha 26 anos e três filhos, o mais novo de apenas oito meses. Ela transformou-se
num símbolo da luta contra a ditadura. Diz a poeta: “E a terra bebeu um sangue duas vezes puro // Porque eras a mulher e não somente a fémea / Eras a inocência frontal
que não recua”. [Veja, abaixo, um vídeo produzido pelo grupo português de cinema Script Factory com base neste poema de Sophia.]
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Sophia de Mello Breyner Andresen já esteve aqui no poesia.net n. 88, em
setembro de 2004, pouco após o seu falecimento. Salvo engano, não havia até agora livros dela publicados no Brasil. Este boletim foi motivado pelo lançamento de
Coral e Outros Poemas (Cia. das Letras, 2018), com seleção e apresentação do poeta carioca Eucanaã Ferraz.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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NOTA
Este boletim foi levemente alterado para incluir ao final o vídeo Catarina Eufémia, produzido pelo grupo português de cinema
Script Factory.