Amigas e amigos,
Este boletim está organizado segundo um critério bem diferente de tudo que já foi feito aqui. Não se trata de reunir um punhado de poemas
sobre um mesmo tema. A ideia é fazer uma seleção de textos que representem momentos fugazes de poesia. Situações quase bobas, das quais o
poeta consegue extrair partículas de emoção.
Ingenuidade. Simplicidade. Beleza pura.
De tudo isso, é fácil intuir que nesses poemas o que brilha não são as metáforas lancinantes, os inteligentes jogos de palavras, os paralelismos
bem tramados, as invenções linguísticas. É quase como se o poema já estivesse feito e o poeta se limitasse apenas a recolhê-lo.
É como aquele instante em que a criança, entretida, esboça um gesto incrível, extraordinário. Se alguém tem à mão uma câmera, registra a cena.
Se não, aquele momento único se perde para sempre. Com esses poemas também é um pouco assim.
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Tenho a impressão de que os poemas singelos — vamos chamá-los desse jeito — não resultam de um projeto do poeta. Existem muitos trabalhos nos quais
o autor planeja formas, métricas, arranjos visuais, ou desenvolve certo número de textos em torno de um mesmo tema.
Na poesia moderna brasileira, um dos projetos mais bem-sucedidos é o Romanceiro da Inconfidência, no qual Cecília Meireles desenvolve poemas
sensíveis recontando a história dos inconfidentes mineiros de 1789.
Mas o poema singelo, parece-me, não se enquadra em projetos. Textos assim representam pontos isolados na obra de qualquer autor. É difícil
imaginar o poeta tomando a seguinte decisão: agora só vou escrever poemas que flagrem ou retratem situações de pura beleza.
Afinal, o poema de alta simplicidade não obedece a um tema, nem se pressupõe que haja pessoas,
momentos ou lugares nos quais (ou com os quais) eles devam acontecer. Dei acima o exemplo de uma criança. Sim, as crianças podem ser uma
fonte de beleza singela. Mas nada garante que aquele momento capaz de suscitar um
texto
especial irá acontecer.
O que se destaca no poema singelo não são os recursos poéticos agenciados para apresentar e descrever a cena, mas a própria cena.
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LIÇÃO
Tarde, a vida me ensina
esta lição discreta:
a ode cristalina
é a que se faz sem poeta.
Carlos Drummond de Andrade, in Corpo (1984)
Pode-se cair na tentação de associar o poema singelo a esta divagação drummondiana. Não procede. Drummond sugere aí um tipo de poema tão puro
e tão impessoal que prescindiria até da intervenção do poeta. Mas tudo não passa de um suspiro, um
frustrado ai.
Afinal, o simples ato de recolher aquele momento singular, mesmo que o poeta a rigor não elabore e não ponha no poema nada de seu, já implica
alguma sensibilidade, uma presença de espírito que uns podem ter, outros não. A verdade é que o poeta sempre está presente, mesmo que finja o
contrário.
Além disso, por mais simples que seja, o modo como a cena é apresentada em palavras conta muito para o “resultado” poético. Não fosse assim,
qualquer pessoa seria um poeta. Qualquer usuário de celular, sempre com uma câmera na mão, seria um grande fotógrafo.
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Confesso que conceber este boletim foi fácil. Difícil mesmo foi achar os poemas que se enquadrassem na concepção. Passei meses tentando
encontrá-los. E de fato não achei muitos. Nesta seleção listo apenas três poemas, escritos pelo paulista Heitor Ferraz Mello, pelo mineiro
Marcílio Godoi e pelo moçambicano Mia Couto.
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Se você, que é atento leitor de poesia, conhece outros poemas que aparentemente se ajustam ao conceito de “alta simplicidade”, ajude-nos a
aumentar a minguada coleção dessas aves raras da poesia. Conte-nos o que descobriu.
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SOBRE OS AUTORES
Jornalista e mestre em literatura brasileira pela USP, Heitor Ferraz Mello (França, 1964) é autor dos livros de poemas Coisas imediatas
[1996-2004] (2004), Pré-desperto (2004), Hoje como Ontem ao Meio-Dia (2002), Um a Menos (2009) e Meu Semelhante
(2016), todos publicados pela Editora 7Letras. Ferraz Mello já foi destaque na edição
número 116 do poesia.net.
Também jornalista, Marcílio Godoi (Araguari-MG) é ainda arquiteto e mestre em crítica literária e literatura brasileira. Ganhou prêmios com
textos em prosa, inclusive infantojuvenil, e publicou em 2016 Estados Úmidos da Matéria (Patuá), seu primeiro livro de poesia.
O poema “A Moça Que Veio”, aqui destacado, está nessa coletânea.
O moçambicano Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto (1955-), é talvez o escritor mais conhecido de seu país. Embora se destaque
pela criação em prosa, também escreve poesia, e lançou no Brasil a antologia Poemas Escolhidos (Cia. das Letras, 2016). Mia Couto
já esteve aqui no boletim número 358.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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