Número 404 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 1 de agosto de 2018

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«Poetas e escritores. / É assim que se diz. / Logo, poetas não são escritores, então o quê —» (Wislawa Szymborska) *

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Três Poetas
Heitor Ferraz Mello; Marcílio Godoi; Mia Couto (alto)



Amigas e amigos,

Este boletim está organizado segundo um critério bem diferente de tudo que já foi feito aqui. Não se trata de reunir um punhado de poemas sobre um mesmo tema. A ideia é fazer uma seleção de textos que representem momentos fugazes de poesia. Situações quase bobas, das quais o poeta consegue extrair partículas de emoção.

Ingenuidade. Simplicidade. Beleza pura.

De tudo isso, é fácil intuir que nesses poemas o que brilha não são as metáforas lancinantes, os inteligentes jogos de palavras, os paralelismos bem tramados, as invenções linguísticas. É quase como se o poema já estivesse feito e o poeta se limitasse apenas a recolhê-lo.

É como aquele instante em que a criança, entretida, esboça um gesto incrível, extraordinário. Se alguém tem à mão uma câmera, registra a cena. Se não, aquele momento único se perde para sempre. Com esses poemas também é um pouco assim.

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Tenho a impressão de que os poemas singelos — vamos chamá-los desse jeito — não resultam de um projeto do poeta. Existem muitos trabalhos nos quais o autor planeja formas, métricas, arranjos visuais, ou desenvolve certo número de textos em torno de um mesmo tema.

Na poesia moderna brasileira, um dos projetos mais bem-sucedidos é o Romanceiro da Inconfidência, no qual Cecília Meireles desenvolve poemas sensíveis recontando a história dos inconfidentes mineiros de 1789.

Mas o poema singelo, parece-me, não se enquadra em projetos. Textos assim representam pontos isolados na obra de qualquer autor. É difícil imaginar o poeta tomando a seguinte decisão: agora só vou escrever poemas que flagrem ou retratem situações de pura beleza.

Afinal, o poema de alta simplicidade não obedece a um tema, nem se pressupõe que haja pessoas, momentos ou lugares nos quais (ou com os quais) eles devam acontecer. Dei acima o exemplo de uma criança. Sim, as crianças podem ser uma fonte de beleza singela. Mas nada garante que aquele momento capaz de suscitar um texto especial irá acontecer.

O que se destaca no poema singelo não são os recursos poéticos agenciados para apresentar e descrever a cena, mas a própria cena.

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LIÇÃO

Tarde, a vida me ensina
esta lição discreta:
a ode cristalina
é a que se faz sem poeta.

Carlos Drummond de Andrade, in Corpo (1984)

Pode-se cair na tentação de associar o poema singelo a esta divagação drummondiana. Não procede. Drummond sugere aí um tipo de poema tão puro e tão impessoal que prescindiria até da intervenção do poeta. Mas tudo não passa de um suspiro, um frustrado ai.

Afinal, o simples ato de recolher aquele momento singular, mesmo que o poeta a rigor não elabore e não ponha no poema nada de seu, já implica alguma sensibilidade, uma presença de espírito que uns podem ter, outros não. A verdade é que o poeta sempre está presente, mesmo que finja o contrário.

Além disso, por mais simples que seja, o modo como a cena é apresentada em palavras conta muito para o “resultado” poético. Não fosse assim, qualquer pessoa seria um poeta. Qualquer usuário de celular, sempre com uma câmera na mão, seria um grande fotógrafo.

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Confesso que conceber este boletim foi fácil. Difícil mesmo foi achar os poemas que se enquadrassem na concepção. Passei meses tentando encontrá-los. E de fato não achei muitos. Nesta seleção listo apenas três poemas, escritos pelo paulista Heitor Ferraz Mello, pelo mineiro Marcílio Godoi e pelo moçambicano Mia Couto.

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Se você, que é atento leitor de poesia, conhece outros poemas que aparentemente se ajustam ao conceito de “alta simplicidade”, ajude-nos a aumentar a minguada coleção dessas aves raras da poesia. Conte-nos o que descobriu.

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SOBRE OS AUTORES

Jornalista e mestre em literatura brasileira pela USP, Heitor Ferraz Mello (França, 1964) é autor dos livros de poemas Coisas imediatas [1996-2004] (2004), Pré-desperto (2004), Hoje como Ontem ao Meio-Dia (2002), Um a Menos (2009) e Meu Semelhante (2016), todos publicados pela Editora 7Letras. Ferraz Mello já foi destaque na edição número 116 do poesia.net.

Também jornalista, Marcílio Godoi (Araguari-MG) é ainda arquiteto e mestre em crítica literária e literatura brasileira. Ganhou prêmios com textos em prosa, inclusive infantojuvenil, e publicou em 2016 Estados Úmidos da Matéria (Patuá), seu primeiro livro de poesia. O poema “A Moça Que Veio”, aqui destacado, está nessa coletânea.

O moçambicano Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto (1955-), é talvez o escritor mais conhecido de seu país. Embora se destaque pela criação em prosa, também escreve poesia, e lançou no Brasil a antologia Poemas Escolhidos (Cia. das Letras, 2016). Mia Couto já esteve aqui no boletim número 358.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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Alta simplicidade

• Heitor Ferraz Mello  • Marcílio Godoi
• Mia Couto 


              



Fabio Hurtado - Bus stop - 2000
Fabio Hurtado, pintor espanhol, Parada de ônibus (2000)



• Heitor Ferraz Mello

ÁLBUM DE FAMÍLIA

Então
ele se sentou
num banquinho
ajeitou
o chapéu de feltro
colocou o filho
mais velho
ao seu lado
em pé
e se deixou fotografar

Então
ela se sentou
no murinho
da casa
esticou o vestido
cobrindo os joelhos
sorriu
para a lente
e também
se deixou fotografar



Fabio Hurtado - El Expreso del Norte - 2008
Fabio Hurtado, O Expresso do Norte (2008)



• Marcílio Godoi

A MOÇA QUE VEIO

    A Márcia Bassetto Pires

ela estava contente
com o porta-retratos
que ganhara de aniversário.

tanto que o colocara
na sala de visitas,
sobre a mesinha de centro.

por que a senhora não põe
uma foto da senhora mesma ali,
perguntei sem receio.

ela disse, ah, meu filho,
deixa assim, tá tão bonita
essa moça que veio.




Fabio Hurtado - El deseo - 2009
Fabio Hurtado, O desejo (2009)



• Mia Couto

DOENÇA

O médico serenou Juca Poeira.
Que ele já não padecia da doença
que ali o trouxera em tempos.

E o doutor disse o nome
da falecida enfermidade:
“Arritmia paroxística supraventricular”.

Juca escutou, em silêncio,
com pesar de quem recebe condenação.

As mãos cruzadas no colo
diziam da resignada aceitação.

Por fim, venceu o pudor
e pediu ao médico
que lhe devolvesse a doença.

Que ele jamais tivera
nada tão belo em toda a sua vida.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2018



• Heitor Ferraz Mello
   in Coisas Imediatas [1996-2004]
   7Letras, Rio de Janeiro, 2004
• Marcílio Godoi
   in Estados Úmidos da Matéria
   Patuá, São Paulo, 2016
• Mia Couto
   in Poemas Escolhidos
   Seleção do autor. Apresentação de José Castello
   Cia. das Letras, São Paulo, 2016
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* Wislawa Szymborska, "Medo do Palco" in Um Amor Feliz,
  trad. Regina Przybycien
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* Imagens: obras de Fabio Hurtado (Madri, 1960-), pintor espanhol