Amigas e amigos,
Nesta edição, trago a vocês um boletim focado num tema estranho: “poemas de tirar o fôlego”. Roubei esta expressão, meses atrás, de um
e-mail da poeta mineira Adriane Garcia. Mas o que
seriam esses poemas? Vou defini-los, tal como os entendo, usando um poema. Para isso, peço a ajuda do poeta curitibano
Marcelo Sandmann, que escreveu
“Poesia Versus Prosa”,
o primeiro texto da seleção ao lado.
Sandmann dá a pista:
de tirar o fôlego é o poema “feito tiro de misericórdia”, que liquida a fatura sem torturar o leitor ao longo de páginas e mais páginas. “É pá-buf!”.
Mas não basta atirar: é preciso acertar na testa da vítima, garantindo-lhe espanto e satisfação com o que acabou de ler.
Há casos em que um trecho de poema poderia funcionar como um poema isolado desse
gênero. Cito um exemplo,
de João Cabral de Melo Neto:
Dançar flamenco é cada vez;
é fazer; é um faz; nunca um fez.
Estes são os versos finais do poema “Uma bailadora sevilhana”, do livro Agrestes (1985). É a própria fala dessa
dançarina, a quem Cabral
atribui a ideia de sua arte como invenção do momento, sem repetição de passos
nem evoluções ensaiadas.
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Como se faz um poema de tirar o fôlego? Não acredito que algum poeta se recolha ao seu escritório e diga: agora vou escrever um
texto assim. Creio que tais poemas acontecem, sem planejamento, como aliás sugere a bailadora cabralina.
Dos poetas brasileiros, o mais inclinado à feitura desses minipoemas talvez tenha sido o gaúcho
Mario Quintana. Em sua obra, há
centenas de poemetos condensados. Decerto, nem todos têm a força do pá-buf preconizado por Marcelo Sandmann. Mas Quintana, em minha
opinião, é o que mais acerta o alvo. Suponho que isso se deva à sua aberta propensão ao aforismo.
O poema de tirar o fôlego é uma sacada genial, assim como, no futebol, um raro gol de bicicleta. Uma proeza de que o poeta é capaz, mas
que depende de contextos específicos — não pode ser executada a qualquer momento.
Observo também que há muitos poetas excelentes, autoras e autores de obras admiráveis, mas que nunca produzem um só poema de tirar
o fôlego. Ou seja, seus poemas podem ser monumentais, ponderados, filosóficos, construídos com profundo rigor, mas não têm essa, digamos,
eletricidade repentina, esse relâmpago — o pá-buf.
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Atrevo-me a levantar algumas hipóteses sobre quais sejam as características-chave dos poemas de tirar o fôlego. A primeira delas é a pequena
extensão. Poemas longos, conforme está dito no texto de Marcelo Sandmann, podem comunicar-se muito bem com o leitor de vários outros modos,
mas não produzem o efeito da instantaneidade, o curto-circuito repentino.
Para atingir esse efeito, o poema também não deve ser hermético, nem muito vago. Isso não significa que, para acertar o alvo, o poema pá-buf
tenha de se contentar com a indigência de ideias a fim de ser facilmente absorvido. Se a primeira quadra do célebre “Autopsicografia” de
Fernando Pessoa fosse um poema independente, seria, sem dúvida, um texto de
tirar o fôlego.
Nesse caso, o forte do poemeto não estaria na clareza do que diz o poeta, e sim
no próprio contorcionismo lógico do
enunciado. É estonteante encontrar um fingidor que finge até a dor verdadeira.
Aí está o projétil que atinge a cabeça do leitor
e o deixa atônito, extasiado.
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Uma distinção importante. Duas edições atrás, juntei num boletim o que chamei de
“poemas de alta simplicidade”. Seria esta edição uma repetição daquela? Com
certeza, não. A ideia da “alta simplicidade” coloca o poeta quase como uma testemunha do poema que se
desenrola diante de seus olhos. A ele cabe apenas a tarefa de contar o que viu, praticamente sem usar recursos de seu arsenal
poético.
A caracterização dos poemas de tirar o fôlego, feita até aqui, mostra que os dois objetos são bem diferentes. E acrescento:
é muito mais fácil encontrar poemas para uma edição como a atual do que para a dos poemas ultrassimples.
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Mas passemos a alguns exemplos que consegui juntar, pesquisando apenas no já alentado acervo do poesia.net.
Sugeri, mais acima, que o poema de tirar o fôlego não pode ser hermético.
Contudo, nada impede que
ele seja irônico, sarcástico, e até mesmo lírico. Exemplo de lirismo é o caso de “Andorinha”, de
Manuel Bandeira. A comparação entre o dia da
ave e a vida da pessoa que fala remete o leitor sensível a um inevitável estado de desamparo e melancolia.
Confesso que, ao
pensar em Bandeira, fiquei algum tempo na dúvida entre “Andorinha” e “Poema Tirado de Uma Notícia de Jornal” (“João Gostoso era
carregador de feira livre...”). Optei pelo passarinho por ser um poema menos comentado
e para dar um exemplo lírico.
Reflexão ainda mais pungente
que a de Bandeira em “Andorinha” é a de Hilda Hilst
(1930-2004) no poema “Do Desejo”. Afinal, o que é essa ânsia arrebatadora? A poeta Hilda pergunta e o próprio desejo responde, com uma completa
autobiografia, que vai do vulcão ao nada.
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O próximo poemeto, “Ressaca”, da poeta baiana Myriam Fraga
(1937-2016), é um parente próximo de “Do Desejo”, de Hilda Hilst. Os dois oferecem definições surpreendentes sobre sentimentos arrebatadores — o desejo e a
paixão —, com finais igualmente sombrios.
Vem a seguir o poema “Haikai”, do já citado Mario Quintana (1906-1994). Aqui, a surpresa é completa. Somente no último verso o leitor vem a
saber com clareza do que trata o poema, e descobre que a noite é uma galinha poedeira.
Em seu poema “As Faxineiras do Edifício”, a luso-brasileira
Dalila Teles Veras (1946-) inclui o título como parte
essencial do texto. Na verdade, o poema contém uma única frase, que começa com o título, passa ao primeiro verso e salta para o
último. Contudo, o efeito pá-buf é produzido pelo longo parêntese intermediário, dentro do qual são listados os estafantes
trabalhos que as faxineiras têm de enfrentar. Fecha-se o parêntese e abre-se a emoção — centelha desencadeada pela última palavra do poema.
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Suprassumo da compactação, o poema “Serenata Sintética”, do modernista paulista
Cassiano Ricardo (1895-1974), contém síntese até no nome.
Tem jeito de poesia concreta, mas é anterior ao movimento dos irmãos Campos, pois foi publicado pela primeira vez no livro Um Dia Depois do
Outro, de 1947. Felicíssima em sua fatura, essa seresta não tem verbos nem, a rigor, frases. O poeta compõe a cena com apenas seis palavras,
divididas em três dísticos monossilábicos.
Comparados os dísticos, cada um difere do outro apenas nas letras iniciais dos versos (Lua, Rua, Tua) e (morta, torta, porta). Portanto, com
variações mínimas nos signos, o poema consegue dizer (ou sugerir) muito. O leitor sabe que, além dessas palavras, há uma história de amor.
Há um homem (sim, só homens saíam à rua em serenatas) entoando canções apaixonadas para cortejar uma mulher. Vale notar ainda o deslocamento
espacial da segunda dupla de versos — procedimento que reforça visualmente a ideia de “rua torta”.
É importante observar que Cassiano não escreveu este poema de uma só vez. Em suas Poesias Completas (José Olympio, 1957), a “Serenata”
apresenta duas diferenças. Ali, o primeiro dístico era “Rua / torta”. Portanto, a sequência original
ficava assim: rua, lua, porta. Depois, em algum momento,
o poeta reordenou as estrofes de cima para baixo, ou do mais amplo para o mais específico: lua, rua, porta.
A outra diferença: na primeira publicação, as três estrofes eram alinhadas à esquerda. Essas duas mudanças introduzidas por Cassiano Ricardo mostram que, embora o poema
já fosse genial desde o início, o autor foi refinando-o pouco a pouco.
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Vem agora mais um haikai, o “Artefato Nipônico” da mineira
Adélia Prado (1935-). Neste objeto poético, publicado originalmente em A Faca no Peito (1988), a poeta expressa seu maravilhamento
religioso diante da exuberância colorida de uma borboleta.
Temos, por fim, o poema “Observando”, da paulista Eunice
Arruda (1939-2017). Com duas frases muito breves, a poeta faz uma confirmação taciturna. Nos três primeiros versos, afirma que existem as
tréguas (referindo-se, com certeza, aos embates da vida). Até aqui, uma afirmação positiva e confiante. Mas na última estrofe vem
a verdade: a suspensão das hostilidades só persiste enquanto se afiam as facas. Pá-buf!
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CONVITE
Amigas e amigos: renovo o convite para o lançamento de meu novo livro de poesia, A Mulher de Ló, que sai pela Editora Patuá.
Trata-se,
na verdade, de um lançamento duplo: no mesmo local e hora, e pela mesma editora, a poeta Vera Lúcia de Oliveira apresenta seu livro Minha
Língua Roça o Mundo. Será no dia 30/08, quinta-feira, às 19 horas, na Livraria, Bar e Café Patuscada. Rua Luís Murat, 40 - Vila Madalena
- São Paulo, SP. Vejam mais sobre os livros abaixo, na seção Lançamentos.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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LANÇAMENTOS
Dois livros de poesia entram em circulação
nesta semana.
Minha Língua Roça o Mundo
• Vera Lúcia de Oliveira
Paulista
radicada na Itália, a multipremiada
poeta Vera Lúcia de Oliveira lança nova coletânea de poemas,
Minha Língua Roça o Mundo. O volume sai pela Editora Patuá.
Quando:
Quinta-feira, 30/08/2018, às 19h
Onde:
Patuscada Livraria, Bar & Café
Rua Luís Murat, 40
Vila Madalena
São Paulo, SP
A Mulher de Ló
• Carlos Machado
Carlos Machado, editor deste boletim, lança o livro A Mulher de Ló, uma série de poemas que refletem sobre a
condição feminina, partindo do episódio bíblico de Sodoma e Gomorra. O livro é produzido pela Editora Patuá/Selo
Donizete Galvão.
Quando:
Quinta-feira, 30/08/2018, às 19h
Onde:
Patuscada Livraria, Bar & Café
Rua Luís Murat, 40
Vila Madalena
São Paulo, SP