Número 407 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 12 de setembro de 2018

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«Todos os poemas são um mesmo poema.» (Mario Quintana) *

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Raymond Carver
Raymond Carver



Amigas e amigos,

O escritor americano Raymond Carver (1938-1988) já esteve aqui seis anos atrás, no poesia.net número 277, em abril de 2012. Na época, ainda não havia no mercado nenhum livro com a poesia de Carver traduzida para o português.

Agora, o que motiva este novo boletim é justamente a existência de uma coletânea de poemas do autor, Esta Vida (2017), traduzida e prefaciada pelo poeta e editor Cide Piquet. Aliás, Piquet foi também o tradutor dos poemas de Carver incluídos naquele boletim de 2012.

Como se sabe, Raymond Carver é muito mais conhecido como autor de contos do que como poeta. Contudo, além de ter começado sua produção literária publicando livros de poemas, o autor parece inserir na poesia muito da experiência acumulada como ficcionista.

No prefácio de Esta Vida, Cide Piquet destaca que, em registros de áudio e vídeo, “Carver lê seus contos e poemas de forma praticamente idêntica, sem nenhuma inflexão ‘especial’ para a poesia”. O tradutor revela também que há, na poesia do autor, o reaproveitamento de temas já visitados na prosa.

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Nesta edição, vou poupar os leitores da repetição dos dados biográficos de Raymond Carver, que estão razoavelmente bem delineados no boletim n. 277. Passo, então, aos poemas.

O primeiro desta nova seleção é “Fotografia do Meu Pai aos 22 Anos”, no qual o poeta dialoga com uma foto antiga do pai já morto. Ressalta aí um detalhe biográfico. O pai, segundo o poema, abusava do álcool, o que também ocorreu com Carver. Nos dez últimos anos de sua vida, após um ultimato de médicos, ele tornou-se abstêmio. Contudo, um câncer do pulmão abreviou sua jornada, aos 50 anos.

A mestria de Carver ao elaborar a quase-prosa de seus poemas está bem representada em “Um Passeio”. Ao entrar num cemitério, o narrador descobre o túmulo de um homem e de suas duas esposas. O relato tem todas as artimanhas do conto, mas funciona muito bem como poesia. A linguagem é direta, prosaica, sem lançar mão de nenhum efeito, digamos, “poético”. E no entanto o poema se move.

O próximo texto, “Os Jovens Engolidores de Fogo da Cidade do México”, tem o andamento de reportagem jornalística. Conta a história do brilho fátuo dos rapazes mexicanos que expelem fogo pela boca quando se fecham os sinais de trânsito. “Dentro de um ano perdem a voz”.

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O poema “A Cabine Telefônica” mantém o andamento de conto, com três personagens: o narrador, uma mulher e o marido. Os três se encontram no momento de usar um telefone público, daqueles anteriores à era do celular e que eram especialmente úteis em locais do interior. Na cena, os desencontros amorosos do narrador se juntam às lágrimas do casal, que acaba de receber uma notícia fúnebre. Amor e vida chegam ao fim.

Em “Beija-flor”, o último poema, Carver constrói um pequeno discurso lírico-amoroso numa carta, sem abrir mão da linguagem direta e prosaica. Até mesmo as palavras “verão” e “beija-flor”, que pooderiam ter certa carga subjetiva ou romântica, aparecem em tom trivial. A mágica, sugere o texto, deve se completar quando a pessoa que conhece as histórias de convivência com o remetente receber a mensagem.

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Temos aí uma pequena amostra da poesia de Raymond Carver. Resta agora dizer alguma coisa sobre o trabalho do tradutor. Basta ler os poemas em português para se ter ideia do cuidado com que foram traduzidos. Essa ideia fica mais firme quando se lê a “Nota do Tradutor”, usada à guisa de prefácio. Nela, ao discutir sobre os rumos que tentou dar à tradução, percebe-se ainda mais a seriedade do trabalho. Cide Piquet (1977-) é baiano de Salvador e desde 1995 mora em São Paulo, onde cursou Letras na USP.

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CONVITE

Amigas e amigos: meu novo livro de poesia, A Mulher de Ló, foi lançado no último dia 30/8 em São Paulo. Vamos apresentá-lo também na 11ª Feira do Livro de Feira de Santana-BA, evento promovido pela UEFS. Será no próximo dia 26/9, na Praça Padre Ovídio - Centro, em Feira de Santana. Mais na seção Lançamentos, logo abaixo.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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LANÇAMENTOS

Um romance e um livro de poesia entram em circulação nos próximos dias.

Paralisia
• André Nigri

André Nigri - ParalisiaJornalista experiente na área cultural, o mineiro André Nigri lança seu primeiro romance, Paralisia — o autor prefere classificá-lo como uma novela. O livro sai pela Editora Reformatório, de São Paulo.


Quando:
Quinta-feira, 13/09/2018, às 18h

Onde:
Livraria Quixote
Rua Fernandes Tourinho, 274
Savassi
Belo Horizonte, MG




A Mulher de Ló
• Carlos Machado

Carlos Machado - A Mulher de LóCarlos Machado, editor deste boletim, lança o livro A Mulher de Ló, uma série de poemas que refletem sobre a condição feminina, partindo do episódio bíblico de Sodoma e Gomorra. O livro é produzido pela Editora Patuá/Selo Donizete Galvão.


Quando:
Quarta-feira, 26/09/2018, às 18h

Onde:
11ª Feira do Livro
Praça Padre Ovídio - Centro
Feira de Santana, BA


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Poesia com traços de conto

• Raymond Carver


              



Jeremy Lipking - Café
Jeremy Lipking, pintor americano, Café


FOTOGRAFIA DO MEU PAI AOS 22 ANOS

Outubro. Aqui nesta cozinha abafada e estranha,
estudo o rosto jovem e constrangido do meu pai.
Rindo sem jeito, ele segura numa das mãos uma fieira
de percas amarelas espinhentas, na outra
uma garrafa de cerveja Carlsbad.

Vestindo jeans e camiseta branca, apoia-se
no para-lama dianteiro de um Ford 1934.
Ele gostaria de posar confiante e enérgico para a posteridade,
com seu velho chapéu caído sobre a orelha.
A vida toda meu pai quis ser valente.

Mas os olhos o entregam, e as mãos,
que exibem hesitantes a fieira de peixes mortos
e a garrafa de cerveja. Pai, eu te amo, mas
como posso dizer obrigado, eu que também não sei controlar a bebida,
e nem sequer conheço os lugares bons para pescar?


PHOTOGRAPH OF MY FATHER IN HIS TWENTY-SECOND YEAR

October. Here in this dank, unfamiliar kitchen
I study my father’s embarrassed young man’s face.
Sheepish grin, he holds in one hand a string
of spiny yellow perch, in the other
a bottle of Carlsbad beer.

In jeans and denim shirt, he leans
against the front fender of a 1934 Ford.
He would like to pose bluff and hearty for his posterity,
wear his old hat cocked over his ear.
All his life my father wanted to be bold.

But the eyes give him away, and the hands
that limply offer the string of dead perch
and the bottle of beer. Father, I love you,
yet how can I say thank you, I who can’t hold my liquor either,
and don’t even know the places to fish?



Jeremy Lipking - Vermillion Cliffs
Jeremy Lipking, Vermillion Cliffs (detalhe)


UM PASSEIO

Saí para caminhar pelos trilhos do trem.
Caminhei algum tempo por eles
e cheguei ao cemitério do povoado,
onde um homem descansa entre
duas esposas. Emily van der Zee,
Mãe e Esposa Amada,
está à direita de John van der Zee.
Mary, a segunda senhora Van der Zee,
também uma Esposa Amada, à sua esquerda.
Primeiro Emily se foi, depois Mary.
Anos mais tarde, foi a vez do velho camarada.
Onze filhos nasceram dessas uniões.
E eles, também, já devem estar todos mortos agora.
Este é um lugar tranquilo. Tão bom quanto qualquer outro
para interromper meu passeio, sentar e me preparar
para minha própria morte, que se aproxima.
Mas eu não entendo, não entendo.
Tudo o que sei sobre esta vida bela e fatigante,
a minha ou a de qualquer um,
é que daqui a pouco vou me levantar
e ir embora desse lugar espantoso
que dá abrigo aos mortos. Este cemitério.
E seguir. Caminhando primeiro sobre um trilho,
depois sobre o outro.


A WALK

I took a walk on the railroad track.
Followed that for a while
and got off at the country graveyard
where a man sleeps between
two wives. Emily van der Zee,
Loving Wife and Mother,
is at John van der Zee’s right.
Mary, the second Mrs van der Zee,
also a Loving Wife, to his left.
First Emily went, then Mary.
After a few years, the old fellow himself.
Eleven children came from these unions.
And they, too, would ail have to be dead now.
This is a quiet place. As good a place as any
to break my walk, sit, and provide against
my own death, which comes on.
But I don’t understand, and I don’t understand.
All I know about this fine, sweaty life,
my own or anyone else’s,
is that in a little while I’ll rise up
and leave this astonishing place
that gives shelter to dead people. This graveyard.
And go. Walking first on one rail
and then the other.




Jeremy Lipking - Danielle - Portrait-sketch-detail
Jeremy Lipking, Danielle - Retrato - Esboço (detalhe)


OS JOVENS ENGOLIDORES DE FOGO
DA CIDADE DO MÉXICO

Eles enchem a boca de álcool
e sopram sobre uma vela acesa
nos sinais de trânsito. Ou em qualquer lugar
onde carros fazem fila e motoristas
irritados e frustrados procuram
alguma diversão — lá vocês vão encontrar
os jovens engolidores de fogo. Fazendo o que fazem
por alguns pesos. No melhor dos casos.
Mas depois de um ano seus lábios
estão rachados, e suas gargantas, esfoladas.
Dentro de um ano perdem a voz.
Elas não podem falar ou gritar —
essas crianças caladas que caçam
pelas ruas carregando uma vela
e uma lata de cerveja cheia de álcool.
São chamadas de milusos. O que se traduz
por “mil usos”.


THE YOUNG FIRE EATERS OF MEXICO CITY

They fill their mouths with alcohol
and blow it over a lighted candle
at traffic signs. Anyplace, really,
where cars line up and the drivers
are angry and frustrated and looking
for distraction — there you’ll find
the young fire eaters. Doing what they do
for a few pesos. If they’re lucky.
But in a year their lips
are scorched and their throats raw.
They have no voice within a year.
They can’t talk or cry out —
these silent children who hunt
through the streets with a candle
and a beer can filled with alcohol.
They are called
milusos. Which translates
into “a thousand uses.”




Jeremy Lipking - Leann
Jeremy Lipking, Leann


A CABINE TELEFÔNICA

Ela desaba na cabine, chorando
no telefone. Perguntando uma coisa
ou outra, e chorando um pouco mais.
Seu companheiro, um camarada mais velho,
usando jeans e camiseta, aguarda em pé
a sua vez de falar, e chorar.
Ela passa o telefone para ele.
Por um minuto eles ficam juntos
na minúscula cabine, as lágrimas dele
rolando junto com as dela. Então
ela vai se encostar no para-choque
do sedan. E fica escutando
enquanto ele toma providências.

Assisto a tudo isso do meu carro.
Eu também não tenho telefone em casa.
Fico sentado atrás do volante,
fumando, esperando para tomar
as minhas próprias providências. Logo depois
ele desliga. Sai da cabine e enxuga o rosto.
Eles entram no carro e se sentam
com as janelas erguidas.
O vidro vai embaçando, enquanto
ela se ampara nele, e ele coloca
o braço em volta de seu ombro.
Os mecanismos do consolo naquele espaço apertado e público.

Eu levo meus trocados até
a cabine, e entro.
Mas deixo a porta aberta, é tão
pequeno ali dentro. O telefone ainda está quente ao toque.
Detesto usar um telefone
que acabou de dar notícias de morte.
Mas preciso, já que é o único telefone
em quilômetros, e um que pode
ouvir sem tomar partido.

Insiro as moedas e aguardo.
As pessoas no carro também aguardam.
Ele dá a partida no motor, depois desliga.
Para onde? Nenhum de nós é capaz
de imaginar. Sem saber onde
o próximo golpe poderá cair,
ou por quê. O telefone para de chamar
quando ela atende do outro lado.
Antes que eu consiga dizer duas palavras, o telefone
começa a gritar: “Eu já disse que acabou!
Está tudo terminado! Por mim
você pode muito bem ir pro inferno!”

Ponho o fone no gancho e passo a mão
pelo rosto. Fecho e abro a porta da cabine.
O casal no sedan abaixa os vidros
das janelas e observa, suas lágrimas pausadas
por um momento em face daquela distração.
Depois sobem os vidros de novo
e se recolhem no carro. Por algum tempo
não vamos a parte alguma.
Depois vamos embora.


THE PHONE BOOTH

She slumps in the booth, weeping
Into the phone. Asking a question
or two, and weeping some more.
Her companion, an old fellow in jeans
and denim shirt, stands waiting
his turn to talk, and weep.
She hands him the phone.
For a minute they are together
in the tiny booth, his tears
dropping alongside hers. Then
she goes to lean against the fender
of their sedan. And listens
to him talk about arrangements.

I watch all this from my car.
I don't have a phone at home, either.
I sit behind the wheel,
smoking, waiting to make
my own arrangements. Pretty soon
he hangs up. Comes out and wipes his face.
They get in the car and sit
with the windows rolled up.
The glass grows steamy as she
leans into him, as he puts
his arm around her shoulders.
The workings of comfort in that cramped, public place.

I take my small change over
to the booth, and step inside.
But leaving the door open, it’s
so close in there. The phone still warm to the touch
I hate to use a phone
that’s just brought news of death.
But I have to, it being the only phone
for miles, and one that might
listen without taking sides.

I put in coins and wait.
Those people in the car wait too.
He starts the engine then kills it.
Where to? None of us able
to figure it. Not knowing
where the next blow might fall,
or why. The ringing at the other end
stops when she picks it up.
Before I can say two words, the phone
begins to shout, “I told you it's over!
Finished! You can go
to hell as far as I’m concerned!”

I drop the phone and pass my hand
across my face. I close and open the door.
The couple in the sedan roll
their windows down and
watch, their tears stilled
for a moment in the face of this distraction.
Then they roll their windows up
and sit behind the glass. We
don’t go anywhere for a while.
And then we go.




Jeremy Lipking - Skylar in blue
Jeremy Lipking, Skylar de azul


BEIJA-FLOR

    para Tess

Suponha que eu diga verão,
escreva a palavra “beija-flor”,
coloque-a num envelope
e desça a colina até a caixa
de correio. Quando você abrir
minha carta, você se lembrará
daqueles dias, e do quanto,
simplesmente do quanto eu te amo.


HUMMINGBIRD

    for Tess

Suppose I say summer,
write the word “hummingbird”,
put it in an envelope,
take it down the hill
to the box. When you open
my letter you will recall
those days and how much,
just how much, I love you.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2018



• Raymond Carver
   in Esta Vida
   — edição bilíngue —
   Seleção e tradução Cide Piquet
   Editora 34, São Paulo, 2017
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* Mario Quintana, “Pequeno Poema Didático”,
  in Apontamentos de História Sobrenatural (1976)
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* Imagens: obras do pintor norte-americano Jeremy Lipking (1975-)