Número 410 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 24 de outubro de 2018

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«A Dor humana busca os amplos horizontes,/ E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» (Cesário Verde) *

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Seis Poetas
Carlos Pena Filho; Alphonsus de Guimaraens Filho; Casimiro de Brito; Orides Fontela; Konstantinos Kaváfis; Paul Éluard



Amigas e amigos,

No próximo domingo, os brasileiros têm diante de si uma responsabilidade descomunal: escolher entre a luz e a treva; entre a liberdade e a sujeição; entre a democracia e o fascismo. Torço para que as pessoas, recusando mentiras e violências, saibam escolher a luz, a liberdade, a democracia.

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Dez edições atrás, ao preparar o número 400 — contei isso brevemente no próprio boletim —, tive a ideia de organizar uma edição com poetas já publicados, como faço de vez em quando. Só que, daquela vez, ocorreu-me usar um artifício matemático para escolher os poetas.

Montei, então, uma planilha Excel para gerar os números dos boletins sorteados com base em progressões aritméticas ou geométricas. Assim, forneço o número do primeiro boletim e uma razão de crescimento. O Excel dá, como resposta, a sequência de números.

Os poetas que fazem parte da presente edição foram determinados desse modo. Defini como primeiro boletim o número 4 (Carlos Pena Filho). Escolhi uma progressão geométrica de razão igual a 2. Vieram então os seguintes números: 8 (Alphonsus de Guimaraens Filho); 16 (Casimiro de Brito); 32 (Orides Fontela); 64 (Konstantinos Kaváfis); 128 (Paul Éluard); e 256 (outra vez, Alphonsus de Guimaraens Filho). Neste ponto, a sequência teve de parar, porque o próximo número cai num boletim que não existe: 512.

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E aqui vamos nós, portanto, para um boletim matemático e aleatório. Em cada edição sorteada, pincei um poema. Não me estenderei muito sobre os poetas, uma vez que o leitor pode consultar o boletim original, indicado abaixo do nome do autor. Obviamente, não há nada em comum entre esses seis poetas escolhidos ao azar dos números.


Carlos Pena Filho
poesia.net n. 4 (2003)

Começamos com o pernambucano Carlos Pena Filho (1929-1960). Morto num acidente automobilístico em Recife, aos 31 anos, o poeta deixou uma obra pequena mas genial, louvada pelos conterrâneos Manuel Bandeira e João Cabral de Melo Neto. O poema escolhido foi o soneto “Testamento do Homem Sensato”, talvez uma das páginas mais conhecidas de Pena Filho. Trata-se de um poema de pura e refinada sensibilidade.

A poesia de Carlos Pena Filho foi reunida num volume chamado Livro Geral, publicado em 1959 e relançado, com ampliações, em 1999. Tenho a sorte de ter adquirido um exemplar dessa preciosidade num sebo. Atualmente, contudo — salvo desconhecimento de minha parte —, a obra não está mais disponível. Uma pena para a poesia. A quem se interesse pelo trabalho do poeta, uma boa opção é a antologia Os Melhores Poemas de Carlos Pena Filho (Global Editora), organizada por Edilberto Coutinho.


Alphonsus de Guimaraens Filho
poesia.net n. 8 (2003) e n. 256 (2008)

Contemplado duplamente pela roleta da progressão geométrica, o mineiro Alphonsus de Guimaraens Filho (1918-2008) pertenceu a uma verdadeira dinastia literária. Filho do simbolista Alphonsus de Guimaraens (1870-1921), era sobrinho-neto de Bernardo Guimarães (1825-1884), o autor de A Escrava Isaura; irmão do contista João Alphonsus (1901-1944); e pai do poeta Afonso Henriques Neto (1944-).

O poema de Guimaraens Filho escolhido no boletim n. 8 foi “Cantiga de Praia”, publicado originalmente em 1947. Praticante de um lirismo místico, o poeta trabalha con sensações íntimas e momentos fugazes. Essa cantiga é bem um exemplo disso. O segundo poema, extraído do boletim n. 256, é o soneto “XVI”, do livro Sonetos da Ausência (1940-1943). Nele, o poeta discorre sobre a solidão essencial do ser humano. Grande sonetista, ele escreveu livros inteiros nessa forma poética, além de incluir sonetos em quase todas as suas obras.


Casimiro de Brito
poesia.net n. 16 (2003)

Português, nascido em 1938, Casimiro de Brito está aqui por ter saído no poesia.net n. 16. Essa edição, aliás, tem uma característica bem peculiar: é uma das quatro produzidas por colaboradores. Foi o jornalista Maurício Bonas quem apresentou o poeta e selecionou os poemas.

No texto “O Poema”, Casimiro de Brito faz uma brilhante e vibrante definição do que acredita deva ser a poesia. “Poemas, sim, mas de fogo / devorador. Redondos como punhos diante do perigo. Barcos decididos / na tempestade”. Confesso a vocês que nunca pus as mãos, eu mesmo, num livro de Casimiro. Mas é um poeta que eu gostaria de conhecer melhor.


Orides Fontela
poesia.net n. 32 (2003)

O número 32 foi o quarto sorteado, trazendo para este boletim a poeta paulista Orides Fontela (1940-1998). O poema selecionado, “Herança”, vem do livro Rosácea (1986). Aqui, em poucas palavras, a poeta traça, de forma concreta e irônica, as raízes de sua pobreza material.

Orides Fontela já teve publicada três vezes a reunião de sua poesia. A primeira, ainda em vida da autora, foi o volume Trevo (1988), que saiu pela extinta editora Duas Cidades na famosa coleção Claro Enigma. Em seguida, a hoje também extinta editora CosacNaify publicou sua Poesia Reunida [1969-1996] em 2006. Depois, em 2015, saiu pela Editora Hedra o livro Poesia Completa [1969-1998], que inclui uma coleção de 22 poemas inéditos. No mesmo ano, a Hedra também publicou O Enigma Orides, uma biografia da poeta, escrita por Gustavo de Castro.


Konstantinos Kaváfis
poesia.net n. 64 (2004)

O grego Konstantinos Kaváfis (1863-1933) tornou-se conhecido no Brasil graças ao trabalho do poeta José Paulo Paes, que traduziu não apenas a coletânea Poesia Moderna da Grécia (1986) como dedicou um volume inteiro, Poemas (1982), ao trabalho de Kaváfis.

O poema selecionado aqui é o antológico “À Espera dos Bárbaros”. Há uma reunião de pessoas na praça de uma presumível cidade grega antiga. Discute-se, com preocupação, a chegada dos bárbaros. Não se define quem sejam esses invasores. E todos, da plebe às altas autoridades, se deixam envolver com o mito dessa invasão, que não acontece. Trata-se de uma espécie de Esperando Godot da Grécia clássica.


Paul Éluard
poesia.net n. 128 (2005)

O último número apontado por nossa roleta é o 128, que corresponde ao poeta francês Paul Éluard (1895-1952). O poema escolhido para esta revisitação foi “Lembrança Afetuosa” (Souvenir Affectueux), do livro La Vie Immédiate (A Vida Imediata), de 1932. A tradução, mais uma vez, é do poeta José Paulo Paes.

Para Paes, que organizou e publicou no Brasil a antologia Poemas de Éluard, o poeta francês tem toda a sua obra marcada pelo surrealismo. Mesmo quando se propõe a escrever poesia engajada, não abre mão das metáforas nas quais confunde o amor à mulher e o amor à liberdade. “Lembrança Afetuosa” foi escrito em sua fase tipicamente surrealista. O poema exibe um lirismo vago, triste e marcadamente pessoal.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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LANÇAMENTOS

Dois livros de poemas entram em circulação nesta semana, um em São Paulo e o outro em Recife.

A Casa & Outros Poemas
• Ecléa Bosi

Eclea Bosi - A casa“Se mora alguém nessa pequena casa / e vê o jardim atrás dessa janela / terá sentido o palpitar da asa / do sonho que esquecemos dentro dela?!” Estes são versos do livro A Casa & Outros Poemas, de Ecléa Bosi (1936-2017), lançado agora pela Editora Com-Arte e a Lis Gráfica.


Quando:
Quarta-feira, 24/10/2018, das 18 às 20h

Onde:
Livraria João Alexandre Barbosa
Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Espaço Brasiliana
Cidade Universitária - USP
São Paulo, SP


Estranha Beleza - Antologia Brasileira da Retranca
• Cláudia Cordeiro e Gustavo Felicíssimo (orgs.)

Antologia da retrancaCláudia Cordeiro e Gustavo Felicíssimo (orgs.) lançam Estranha Beleza - Antologia Brasileira da Retranca - Em Memória de Alberto Cunha Melo. Publicado pela Editora Mondrongo, o livro conta com a participação de 35 poetas que escrevem “retrancas” — forma poética inventada pelo poeta homenageado, o pernambucano Alberto da Cunha Melo (1942-2007).


Quando:
Sábado, 27/10/2018, das 16 às 20h

Onde:
Casa Cultural Villa Ritinha
Rua da Soledade, 35 - Boa Vista
Recife, PE

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Poesia ao azar dos números

• Carlos Pena Filho  • Alphonsus de Guimaraens Filho  • Casimiro de Brito  • Orides Fontela
• Konstantinos Kaváfis  • Paul Éluard


              



Stephen Baker - After Hours
Stephen Baker, pintor australiano, Depois do expediente



• Carlos Pena Filho

TESTAMENTO DO HOMEM SENSATO

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: “Ele era assim...”
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em voo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.



Stephen Baker - Uma noite
Stephen Baker, Uma noite



• Alphonsus de Guimaraens Filho

CANTIGA DE PRAIA

Estou sozinho na praia,
estou sozinho e não sei.
Que luz adormece a face
se em gritos já me afoguei?

Estou dançando na praia?
Estou dançando? Não sei.
Eu colho com as mãos da ausência
a rosa que não beijei.

Que luz chega do outro lado,
do outro rio, do outro mar?
Estou sozinho na praia...
Ó mundo, vamos dançar!

XVI

Entre os ventos do sul como do norte
lá vou eu, lá vais tu, lá vamos nós.
Dor não existe que não se suporte
e estamos sós, terrivelmente sós...

Agradecemos, sim, tamanha sorte:
a vida passa rápida, veloz...
Quando menos se espera vem a morte
e ouve-se então a prometida voz.

E o mundo ora nos é suave e manso
ou então cruel, bem mais do que agressivo...
Lá vamos nós cantando ou soluçando...

Que importa exista o reino do descanso!
Que importa amar, que importa, morto ou vivo,
ouvir o vento uivando, uivando, uivando...



Stephen Baker - Commissioned portrait
Stephen Baker, Retrato



• Casimiro de Brito

O POEMA

Poemas, sim, mas de fogo
devorador. Redondos como punhos
diante do perigo. Barcos decididos
na tempestade. Cruéis. Mas de uma
crueldade pura: a do nascimento,
a do sono, a da morte.

Poemas, sim, mas rebeldes.
Inteiros como se de água, e,
como ela, abertos à geometria
de todos os corpos. Inteiros
apesar do barro e da ternura
do seu perfil de astros.

Poemas, sim, mas de sangue.
Que esses poemas brotem do
oculto. Que libertem o seu pus
na praça pública. Altos, vibrantes
como um sismo, um exorcismo
ou a morte de um filho.



Stephen Baker - Mural
Stephen Baker, Mural



• Orides Fontela

HERANÇA

Da avó materna:
uma toalha (de batismo).

Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.

Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.

    De Rosácea (1986)



Moise Kisling - Just leaving
Stephen Baker, Acabando de sair



• Konstantinos Kaváfis

À ESPERA DOS BÁRBAROS

O que esperamos na ágora reunidos?

  É que os bárbaros chegam hoje.

Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?

  É que os bárbaros chegam hoje.
  Que leis hão de fazer os senadores?
  Os bárbaros que chegam as farão.

Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?

  É que os bárbaros chegam hoje.
  O nosso imperador conta saudar
  o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
  um pergaminho no qual estão escritos
  muitos nomes e títulos.

Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos
de ouro e prata finamente cravejados?

  É que os bárbaros chegam hoje,
  tais coisas os deslumbram.

Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?

  É que os bárbaros chegam hoje
  e aborrecem arengas, eloqüências.

Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?

  Porque é já noite, os bárbaros não vêm
  e gente recém-chegada das fronteiras
  diz que não há mais bárbaros.

Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.

        [Antes de 1911]



Stephen Baker - Tough day
Stephen Baker, Dia difícil



• Paul Éluard

LEMBRANÇA AFETUOSA

Houve um grande riso triste
O pêndulo parou
Um bicho do mato salvava seus filhotes.

Risos opacos em quadros de agonia
Tantas nudezes transformando em irrisão a sua palidez
Transformando em irrisão
Os olhos virtuosos do farol dos náufragos.


SOUVENIR AFFECTUEUX

Il y eut un grand rire triste
La pendule s'arrêta
Une bête fauve sauvait ses petits.

Rires opaques dans les cadres d'agonie
Autant de nudités tournant en dérision leur pâleur
Tournant en dérision
Les yeux vertueux du phare des naufrages.

    De La Vie Immédiate (1932)




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2018



• Carlos Pena Filho
   in Os Melhores Poemas de Carlos Pena Filho
   Edilberto Coutinho (org.)
   Ed. Global, 4a. ed., São Paulo, 2000
• Alphonsus de Guimaraens Filho
   - “Cantiga de Praia”
   in Água do Tempo
   Ed. Nova Aguilar/INL, 1976
   - “XVI”
   in Só A Noite É Que Amanhece (Poemas Escolhidos e Versos Esparsos)
   Record, Rio de Janeiro, 2003
• Casimiro de Brito
   in Jardins de Guerra
   Assírio & Alvim, Lisboa, 1974
• Orides Fontela
   in Trevo (1969-1988)
   Livraria Duas Cidades, São Paulo, 1988
• Konstantinos Kaváfis
   in Poesia Moderna da Grécia
   Seleção, tradução direta do grego, prefácio,
   textos críticos e notas de José Paulo Paes
   Editora Guanabara, Rio de Janeiro, 1986
• Paul Éluard
   - Texto em português:
   in Poemas
   Seleção e tradução de José Paulo Paes
   Ed. Guanabara, Rio de Janeiro, 1988
   - Texto original, em francês:
   in Œuvres Complètes
   Éditions Gallimard, Paris, 1968
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* Cesário Verde, "O Sentimento de Um Ocidental" in Poesias Completas de Cesário Verde
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* Imagens: obras de Stephen Baker, pintor e ilustrador australiano
  contemporâneo