Número 413 - Ano 16

São Paulo, quarta-feira, 28 de novembro de 2018

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«Nenhuma presença é mais real que a falta.» (Myriam Fraga) *

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Adão Ventura
Adão Ventura



Amigas e amigos,

Nascido na pequena Santo Antônio do Itambé, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, o poeta Adão Ventura (1939-2004) formou-se advogado pela UFMG em 1971. Marcado pela rica cultura popular de sua região, Ventura desde cedo se interessou pela arte e a poesia.

Contemporâneo de jornalistas e escritores como Luiz Vilela, Ivan Ângelo, Libério Neves e Jaime Prado Gouvêa, Ventura trabalhou na redação do Suplemento Literário de Minas Gerais. Em 1970, publicou seu primeiro livro, Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir-se dele o azul, um poema em prosa de tom fantástico-surrealista.

Em 1973, foi convidado a lecionar Literatura Brasileira Contemporânea na University of New Mexico, nos Estados Unidos. Lá tomou contato com a cultura afro-americana e as lutas pelos direitos civis. Segundo ele próprio revelou, esse período estadunidense foi fundamental para seu amadurecimento artístico e compreensão de sua afrodescendência, sendo ele mesmo neto de trabalhadores escravizados em fazendas e minas.

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A Cor da Pele, coletânea de poemas de 1980, é seu livro de maior destaque: põe em evidência pontos de vista e sentimentos do negro brasileiro, com explícita denúncia do racismo. Entre 1990 e 1994, Adão Ventura foi presidente da Fundação Palmares. O poeta faleceu em 2004, em decorrência de um câncer.

(Um parêntese de dúvida. A maioria das referências a Adão Ventura na internet localiza sua data de nascimento em 1946. Contudo, também se encontram, inclusive em sites confiáveis como o da Letras da UFMG, indicações de 1939. Consultei fontes do Suplemento Literário de Minas Gerais, onde o poeta trabalhou, e eliminei a dúvida: ele nasceu em 1939.)

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Além dos títulos já citados, Ventura publicou os seguintes livros de poesia: As Musculaturas do Arco do Triunfo (1976); Jequitinhonha - Poemas do Vale (1980); Texturaafro (1992) e Litanias de Cão (2002).

Na miniantologia ao lado, tomei como base a antologia Costura de Nuvens (2006), publicada pelas Edições Dubolsinho, de Sabará-MG. Incluí ainda um poema extraído do livro Litanias de Cão, edição do próprio autor.

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Na apresentação do volume A Cor da Pele, o crítico literário mineiro Fábio Lucas, citando João Cabral de Melo Neto, diz que Adão Ventura assume a tragédia do negro brasileiro “sem perfumar sua flor,/ sem poetizar seu poema”. Afirma também, mais adiante: “Adão Ventura faz o lirismo da revolta, um Cruz e Sousa às avessas. E paulatinamente ingressa na órbita da poesia social, exprimindo os obstáculos de uma raça, de uma cor e de uma situação humana insuportável”.

Por que Cruz e Sousa às avessas? Enquanto o simbolista catarinense escreveu a poesia sublime de um “poeta genuíno, visionário” (Mário de Andrade), Adão Ventura vai direto ao ponto, sem indecisões.

Certeiro em suas observações, Fábio Lucas diz ainda que o livro A Cor da Pele “tem a agudeza e o corte de um bisturi”. De fato, os versos de Adão Ventura provocam a sensação de que se está lidando com o gume de afiadíssimas navalhas.

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Aliás, a imagem de um instrumento de corte é usada pelo próprio Ventura no poema “Para um Negro”, que abre a minisseleta ao lado. Após comparar a cor da pele com “um soco”, ele redefine-a como “uma faca / que atinge / muito mais em cheio / o coração”. Ideia similar aparece em “Senzala”, que — afirma o poeta — “é a sombra que tenho aprisionada / nos guetos da pele”.

Mais adiante, no poema “Preconceito”, a cor da pele é comparada a “uma grande parede”, que se materializa em situações como “o abraço frouxo / o beijo mal dado / e o sorriso amarelo”.

“Comensais” contém uma profunda lição de História do Brasil resumida numa única frase. A “pele negra / servida em fatias” a “senhores de punhos rendados”. Mas não se trata de algo perdido num passado distante: isso vem acontecendo, como finaliza o poema, “há 500 anos”.

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Os próximos poemas mostram uma sequência de figuras humanas e paisagens ligadas à terra natal do poeta. Em “Moenda”, o menino de Santo Antônio do Itambé colhe na memória as lides do avô, “seu Teodoro da Fazenda”, trabalhando “serrabaixo-serracima” com a cana caiana.

Outra lembrança de infância vem com o texto “Cantiga”. É a bisavó, engomadeira e rendeira, com suas peças de artesanato. O poema “Alfabetização” faz o registro de uma emoção inimaginável para pessoas de classe média que nasceram e cresceram entre livros, para quem ler e escrever são atos naturais desde tenra infância.

A série itambeense termina com “Os Tropeiros”. Aqui o poeta assume um diapasão mais lírico para falar dos homens que conduzem tropas de burros no zigue-zague das estradas mineiras. “Eu, tropeiro / arrieiro de nuvens / desço a Serrra do Cipó”.

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Vem a seguir o poema “Limite”. Limite: esse desgaste que ocorre “quando a palavra / assume o fosco / ou o incolor da hipocrisia”. Mais uma vez, é o homem negro a identificar as palavras falsas, “furadas”, “desincorporadas”, que mofam “num corredor / de sílabas ininteligíveis”.

O poema “Da Palavra e Seu Habitat” oferece uma amostra do Adão Ventura afinado na pura corda lírica. Trata-se de um hino à poesia, vista como magia e brincadeira. “Louve-se a palavra”.

Nascido na roça e filho de trabalhadores rurais, o poeta não se aparta de suas origens. Em “MST”, sigla do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Adão Ventura enxerga “a lâmina ácida / da fome”. A fome, outro instrumento de corte, nesta “capitania AINDA / Hereditária” de sempre renovadas injustiças.

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No artigo “A Cor da Pele”, sobre o livro de Adão Ventura, o crítico Silviano Santiago diz:

Para o poeta negro a cor do vocabulário não tem importância, não tem a importância que a ela lhe emprestam os “estudiosos brancos” da questão negra nos trópicos. A originalidade da poesia de Adão advém do sentimento da cor da pele. A cor da pele: algo de pessoal e intransferível, e ao mesmo tempo algo de coletivo e histórico. O homem se descobre negro na tessitura da pele, e nesta vê as marcas da escravidão e do degredo, e sente os sofrimentos e a Mãe-África.

Silviano Santiago, in Vale Quanto Pesa: Ensaios Sobre Questões Político-Sociais, Paz e Terra, 1982.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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LANÇAMENTO

Trilhas, Notas e Outras Tramas
• Reynaldo Damazio

Reynaldo Damazio - TrilhasO poeta e editor Reynaldo Damazio lança Trilhas, Notas e Outras Tramas, uma coletânea de reflexões sobre a escrita. O volume é coproduzido pelas editoras Dobradura e Saracura.


Quando:
Quinta-feira, 29/11/2018, a partir das 18h30

Onde:
Tapera Taperá
Galeria Metrópole, 2° andar,
loja 29
Av. São Luís, 187 - República
São Paulo, SP


Versos cortantes como bisturis

• Adão Ventura 


              



Clóvis Graciano - Clarinetista
Clóvis Graciano, pintor paulista, Clarinetista (1970)


PARA UM NEGRO

Para um negro
a cor da pele
é uma sombra
muitas vezes mais forte
que um soco.

Para um negro
a cor da pele
é uma faca
     que atinge

muito mais em cheio

     o coração.


SENZALA

Senzala
é a minha carne retalhada
pelo dia a dia.

Senzala
é a sombra que tenho aprisionada
nos guetos da pele.



Clóvis Graciano - Músico-1977
Clóvis Graciano, Músico (1977)


PRECONCEITO

— Muitas vezes
a cor da pele
é uma grande parede.

Daí
o abraço frouxo,
o beijo mal dado
e o sorriso amarelo.


COMENSAIS

A minha pele negra
servida em fatias,
em luxuosas mesas de jacarandá,
a senhores de punhos rendados
há 500 anos.



Clóvis Graciano - Quatro músicos e pássaros-1973
Clóvis Graciano, Quatro músicos e pássaros (1973)


MOENDA

Que em algum espinhaço eu chegue
e pegue rédeas — cabrestos
de Rio Vermelho,
Santo Antônio do Itambé,
Coluna ou Mãe dos Homens
e solte espora no ar,
serrabaixo-serracima,
com galope das assombrações
de seu Teodoro da Fazenda,
num puxa-puxa de cana caiana,
a gente moleque
a espreitar noitescura,
colhendo segredos de encruzilhadas.


CANTIGA

Bisavó-Mãe-Zefa
com suas trouxas de nuvens
    engomadas
carpindo moinhos de coivaras
    e fantasmas.

Bisavó-Mãe-Zefa
com suas anáguas de bilro,
tecendo encantos
de lencinhos de seda pura
made in São Gonçalo do Milho Verde.



Clóvis Graciano - Mulheres-1975
Clóvis Graciano, Mulheres (1975)


ALFABETIZAÇÃO

Papai
levava tempo
para redigir uma carta.

Já mamãe,
Sebastiana de José Teodoro,
teve a emoção de assinar seu
    nome completo
já quase aos setenta anos.


OS TROPEIROS

— No pique
e repique
   dos cincerros
lá das bandas do Serro

   no zigue
     zague
     das estradas

eles chegam
a Conceição do Mato Dentro
   e arrancham no Tabuleiro.

— O véu da noite
o Véu da Noiva
   de déu em déu.

— Eu, tropeiro
arrieiro de nuvens
   desço a Serra do Cipó.



Clóvis Graciano - Capoeira-1963
Clóvis Graciano, Capoeira (1963)


LIMITE

E quando a palavra
apodrece
num corredor
de sílabas ininteligíveis.

E quando a palavra
mofa
num canto-cárcere
do cansaço diário.

E quando a palavra
assume o fosco
ou o incolor da hipocrisia.
E quando a palavra
é fuga
em sua própria armadilha.

E quando a palavra
é furada
em sua própria efígie.

A palavra
sem vestimenta,
nua,
desincorporada.


DA PALAVRA E SEU HABITAT

Lavre-se a palavra
em fluvial lagoa,
pura de escamas,
fuligem & circunstância.

Louve-se a palavra
na lúdica atadura
de um nítido invólucro
ainda que insepulto.

Livre-se a palavra
da inaugural magia,
iluminando-a num ato
puro de si mesma.

Lustre-se a palavra
ao seu exato cerne
— esmeril e águas claras
de recolhidos despojos.

    De Costura de Nuvens - Antologia Poética (2006)



Clóvis Graciano - Menina e pássaro-1970
Clóvis Graciano, Menina e pássaro (1970)


MST

o corte
da foice
no escuso
da Lei

    o ócio
    do aço
    da lâmina ácida
      da fome

        fere
        a ferro e fogo
        o mapa-múndi

de uma Capitania AINDA
        Hereditária

    De Litanias de Cão (2002)




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2018



Adão Ventura
• Todos os poemas, exceto “MST”
   in Costura de Nuvens
   Edições Dubolsinho, Sabará, 2006
• “MST”
   in Litanias de Cão
   Edição do autor, Belo Horizonte, 2002
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* Myriam Fraga, “Calendário: Março”, in Femina (1996)
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* Imagens: obras do pintor paulista Clóvis Graciano (1907-1988)