Amigas e amigos,
Nascido na pequena Santo Antônio do Itambé, no Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, o poeta Adão Ventura (1939-2004) formou-se advogado pela
UFMG em 1971. Marcado pela rica cultura popular de sua região, Ventura desde cedo se interessou pela arte e a poesia.
Contemporâneo de jornalistas e escritores como Luiz Vilela, Ivan Ângelo, Libério Neves
e Jaime Prado Gouvêa, Ventura trabalhou na redação do Suplemento Literário de Minas Gerais. Em 1970, publicou seu primeiro livro,
Abrir-se um abutre ou mesmo depois de deduzir-se dele o azul, um poema em prosa de tom fantástico-surrealista.
Em 1973, foi convidado a lecionar Literatura Brasileira Contemporânea na University of New Mexico, nos Estados Unidos. Lá tomou contato com a
cultura afro-americana e as lutas pelos direitos civis. Segundo ele próprio revelou, esse período estadunidense foi fundamental para
seu amadurecimento artístico e compreensão de sua afrodescendência, sendo ele mesmo neto de trabalhadores escravizados em fazendas e minas.
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A Cor da Pele, coletânea de poemas de 1980, é seu livro de maior destaque: põe em evidência pontos de vista e sentimentos do negro
brasileiro, com explícita denúncia do racismo. Entre 1990 e 1994, Adão Ventura foi presidente da Fundação Palmares. O poeta faleceu em 2004,
em decorrência de um câncer.
(Um parêntese de dúvida. A maioria das referências a Adão Ventura na internet localiza sua data de nascimento em 1946. Contudo, também se encontram,
inclusive em sites confiáveis como o da Letras da UFMG, indicações de 1939.
Consultei fontes do Suplemento Literário de Minas Gerais, onde o poeta
trabalhou, e eliminei a dúvida: ele nasceu em 1939.)
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Além dos
títulos já citados, Ventura publicou os seguintes livros de poesia: As Musculaturas do Arco do Triunfo (1976); Jequitinhonha - Poemas do Vale (1980);
Texturaafro (1992) e Litanias de Cão (2002).
Na miniantologia ao lado, tomei como base a antologia Costura de Nuvens (2006), publicada pelas Edições Dubolsinho, de Sabará-MG. Incluí
ainda um poema extraído do livro Litanias de Cão, edição do próprio autor.
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Na apresentação do volume A Cor da Pele, o crítico literário mineiro Fábio Lucas, citando João Cabral de Melo Neto, diz que Adão Ventura
assume a tragédia do negro brasileiro “sem perfumar sua flor,/ sem poetizar seu poema”. Afirma também, mais adiante: “Adão Ventura faz o lirismo
da revolta, um Cruz e Sousa às avessas. E paulatinamente ingressa na órbita da poesia social, exprimindo os obstáculos de uma raça, de uma cor e
de uma situação humana insuportável”.
Por que Cruz e Sousa às avessas? Enquanto o simbolista
catarinense escreveu a poesia sublime de um “poeta genuíno, visionário” (Mário de Andrade), Adão Ventura vai direto ao ponto, sem indecisões.
Certeiro em suas observações, Fábio Lucas diz
ainda que o livro A Cor da Pele “tem a agudeza e o corte de um bisturi”. De fato, os versos de Adão Ventura
provocam a sensação de que se está lidando com o gume de afiadíssimas navalhas.
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Aliás, a imagem de um instrumento de corte é usada pelo próprio Ventura no poema “Para um Negro”, que abre a minisseleta ao lado. Após comparar
a cor da pele com “um soco”, ele redefine-a como “uma faca / que atinge / muito mais em cheio / o coração”. Ideia similar aparece em “Senzala”,
que — afirma o poeta — “é a sombra que tenho aprisionada / nos guetos da pele”.
Mais adiante, no poema “Preconceito”, a cor da pele é comparada a “uma grande parede”, que se materializa em situações
como “o abraço frouxo / o beijo mal dado / e o sorriso amarelo”.
“Comensais” contém uma profunda lição de História do Brasil resumida numa única frase. A “pele negra / servida em fatias” a “senhores de punhos rendados”.
Mas não se trata de algo perdido num passado distante: isso vem acontecendo, como finaliza o poema, “há 500 anos”.
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Os próximos poemas mostram uma sequência de figuras humanas e paisagens ligadas à terra natal do poeta. Em “Moenda”, o menino de Santo Antônio
do Itambé colhe na memória as lides do avô, “seu Teodoro da Fazenda”, trabalhando “serrabaixo-serracima” com a cana caiana.
Outra lembrança de infância vem com o texto “Cantiga”. É a bisavó, engomadeira e rendeira, com suas peças de artesanato. O poema “Alfabetização”
faz o registro de uma emoção inimaginável para pessoas de classe média que nasceram e cresceram entre livros, para quem ler e escrever são atos
naturais desde tenra infância.
A série itambeense termina com “Os Tropeiros”. Aqui o poeta assume um diapasão mais lírico para falar dos homens que conduzem tropas de burros
no zigue-zague das estradas mineiras. “Eu, tropeiro / arrieiro de nuvens / desço a Serrra do Cipó”.
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Vem a seguir o poema “Limite”. Limite: esse desgaste que ocorre “quando a palavra /
assume o fosco / ou o incolor da hipocrisia”. Mais uma vez, é o homem negro a identificar as palavras falsas, “furadas”, “desincorporadas”,
que mofam “num corredor / de sílabas ininteligíveis”.
O poema “Da Palavra e Seu Habitat” oferece uma amostra do Adão Ventura afinado na pura corda lírica. Trata-se de um hino à poesia, vista
como magia e brincadeira. “Louve-se a palavra”.
Nascido na roça e filho de trabalhadores rurais, o poeta não se aparta de suas origens. Em “MST”, sigla do Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra, Adão Ventura enxerga “a lâmina ácida / da fome”. A fome, outro instrumento de corte, nesta “capitania AINDA / Hereditária”
de sempre renovadas injustiças.
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No artigo “A Cor da Pele”, sobre o livro de Adão Ventura, o crítico Silviano Santiago diz:
Para o poeta negro a cor do vocabulário não tem importância, não tem a importância que a ela lhe emprestam os “estudiosos brancos” da questão
negra nos trópicos. A originalidade da poesia de Adão advém do sentimento da cor da pele. A cor da pele: algo de pessoal e intransferível, e
ao mesmo tempo algo de coletivo e histórico. O homem se descobre negro na tessitura da pele, e nesta vê as marcas da escravidão e do degredo,
e sente os sofrimentos e a Mãe-África.
Silviano Santiago, in Vale Quanto Pesa: Ensaios Sobre Questões Político-Sociais, Paz e Terra, 1982.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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