Número 420 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 10 de abril de 2019

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«O Rio? É doce. / A Vale? Amarga. / Ai, antes fosse / Mais leve a carga.» (Carlos Drummond de Andrade) *

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Iacyr Anderson Freitas - Carlos Drummond de Andrade
Iacyr Anderson Freitas e
Carlos Drummond de Andrade


Amigas e amigos,

Esta edição do poesia.​net reúne dois poetas mineiros com poemas que tratam de um dos problemas mais graves que hoje afligem seu estado natal: os rompimentos de barragens com rejeitos de mineração, a exemplo do que ocorreu em Mariana (novembro de 2015) e em Brumadinho (janeiro de 2019). Os poetas são velhos conhecidos desta página: Iacyr Anderson Freitas (edições n. 373 e n. 29) e Carlos Drummond de Andrade   (n. 411, n. 375, n. 352 e várias outras).

Tive a ideia de juntar os dois neste boletim ao ler a edição especial (março 2019) da revista Correio das Artes, suplemento literário do jornal A União, do governo da Paraíba. Com justo orgulho, o Correio está comemorando 70 anos de publicação ininterrupta — o que lhe dá o título de suplemento de artes e literatura mais antigo do país. Parabéns ao Correio das Artes.

Pois bem, nessa edição da revista encontrei o poema “Vale quanto lesa”, de Iacyr Anderson Freitas, escrito no calor da hora, em 21/02/2019, logo após a catástrofe em Brumadinho. Mais de 220 mortos confirmados, cerca de 70 desaparecidos e uma devastação social, econômica e ambiental de proporções dantescas. Pior ainda: uma série de outras barragens de mineração também apresentam risco de rompimento em cidades mineiras como Nova Lima, Barão de Cocais e Ouro Preto.

Pensei, inicialmente, em montar o boletim apenas com base no poema de Iacyr. Obtive dele a autorização para usar o texto. Depois, percebi que era o momento de voltar a Drummond, que durante décadas se dedicou a criticar a forma predatória como a Vale — ex-Companhia Vale do Rio Doce — processa a exploração do minério de ferro em sua cidade natal, Itabira. Conforme o noticiário, lá também há dúvidas oficiais quanto à estabilidade de seis barragens com rejeitos minerais.

Não posso tocar neste assunto sem citar o excelente livro de José Miguel Wisnik Maquinação do Mundo — Drummond e a Mineração (Cia. das Letras, 2018). Nesse ensaio o autor discute a obra literária de Drummond e sua relação com a história da mineração em Minas Gerais, especialmente da Vale em Itabira.

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Mas chega de prolegômenos. Vamos aos poemas.

Sob o impacto da catástrofe, Iacyr Anderson Freitas, em “Vale quanto lesa”, procede a uma análise lírica dos caminhos da mineração. Para assegurar os altos lucros do negócio, “vales vilas vidas” são apenas “insumos/ ou meros/ acidentes/ de percurso”.

O poeta foi feliz na caracterização do objetivo central da mineradora: lucro. Na primeira vez, ele diz: “com zeros/ muitos zeros/ à direita do lucro”. Mais adiante, retorna: “com os zeros/ à direita/ sempre à direita/ do lucro”. Mesmo que custe vidas humanas, cidades, gado, plantações. O lucro acima de tudo. Ou, como escreveu Drummond, “a arte do cifrão mais forte”.

Em momentos como os que estamos vivendo, é importante ver como a poesia teima em reafirmar o mínimo de valores éticos em meio à lama e ao luto. Logo após ler esse vigoroso “Vale quanto lesa”, anotei: “Um poema sinuoso, insinuante e, ao mesmo tempo, preciso, duro, resoluto: ciente do que veio dizer”.

•o•

Passemos ao poema de Drummond. Antes, é importante notar como o poeta, mais de 30 anos após sua morte, mostra-se sempre presente, cada vez mais vivo e atual. Os embates que travou durante décadas contra a mineração predatória mostram-se agora não somente corretos como até premonitórios. Aqui mesmo, no poesia.​net, já destacamos essa faceta. Foi em dezembro de 2015, após o desastre de Mariana, na edição n. 345.

O poema de Drummond é “Correio Municipal”. Foi publicado originalmente em 12/10/1955 — quase 64 anos atrás! — no Correio da Manhã, diário carioca em que o poeta escreveu crônicas de 1954 a 1969. O texto consiste numa carta que um certo Nico Zuzuna, de Itabira, envia a C.D.A. Trata-se, na verdade, de um alter ego do autor que dirige críticas à Cia. Vale do Rio Doce.

Zuzuna diz claramente que “os pobres itabiranos, / mais fazem, mais são furtados”. Depois, afirma que a mina de ferro da cidade (lembrem-se: “Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas.”) tornou-se o “conto da mina”. E o “dinheiral formidando” que sai da mina passa de longe pela cidade e não deixa nenhum benefício para a pobre prefeitura, que o itabirano chama de “faminta”.

Sobre a companhia: “Do Rio Doce se chama, / de pranto amargo ela é, / refletindo um panorama / de onde desertou a fé. // Promete mundos e fundos, / piscina, cinemascópio, / avião cada dois segundos, / mas promessa aqui é ópio”. Um detalhe: no original do Correio da Manhã, aparece como está aí: “avião cada dois segundos”. Contudo, na Poesia Completa da Aguilar, o verso é: “avião entre dois segundos”. Preferi, aqui, a versão do jornal.

O irritado itabirano faz um resumo brilhante da situação: “A exploração leva o suco, / deixa a fome como herança”. Há três nomes citados no texto. O primeiro é o “doutor Café” — Café Filho, vice-presidente da República, que assumiu a presidência por um ano (1954-1955) após o suicídio de Getúlio Vargas. O outro, Chico Lessa, corresponde ao engenheiro que ocupava a presidência da Vale. A referência a ele é bem depreciativa: depois de recusar-se ao diálogo, “divaga pelas Europas”. Aparentemente, a atitude desrespeitosa da empresa vem de longa data.

O terceiro nome é de Juscelino Kubitschek, presidente eleito que assumiria alguns meses após a missiva de Zuzuna. Por se tratar de mais um mineiro (“um presidente que sabe / as lições de nossa história”), e nascido em Diamantina (Tijuco), espera-se que faça algo a respeito da mineração. Mas Zuzuna-Drummond, calejado, já admite de antemão que essa expectativa pode ser vã.

No final, ele parece esperar que os itabiranos e mineiros (e brasileiros, em última instância) lutem contra a Vale e o tipo de exploração mineral que pratica: “No vale já se perscruta / uma sagrada violência / de povo inclinado à luta”. Pelo que se sabe, não deu.

Mas Drummond estava certo. Devíamos ter lutado. E devemos.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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LANÇAMENTOS

Quatro novos livros. Em São Paulo, um de fotos e poemas, mais outro de ficção. Em Brasília, dois de poesia.

Rastros
Atílio Avancini e Sérgio Avancine

avancini-rastrosO livro Rastros contém fotos e poemas, casados dois a dois. Os autores são Atílio Avancini (fotos) e Sérgio Avancine (poemas), que lançam seu trabalho pela Com-Arte.

Quando:
Quarta-feira, 10/04/2019,
das 18h30 às 21h30

Onde:
Livraria da Vila
Rua Fradique Coutinho, 915
Vila Madalena
São Paulo, SP


Ordem
Leusa Araujo

Leusa Araujo - OrdemA jornalista e escritora paulistana Leusa Araujo lança Ordem, nova edição de um livro publicado em 2010 com o título Ordem, Sem Lugar, Sem Rir, Sem Falar. Para a autora, trata-se um testemunho literário do que foi ser criança nos anos de chumbo. A obra é publicada pelas Edições Barbatana e ilustrada pela designer gráfica Angela Mendes.

Quando:
Quinta-feira, 18/04/2019,
a partir das 19h

Onde:
Tapera Taperá
Av. São Luís, 187 - 2º andar, lj. 29
República
São Paulo, SP


• Gravidade das Xananas
• Tinteiros da Casa e do Coração Desertos
Diego Mendes Sousa

Diego Mendes Sousa-Xananas+TinteirosO poeta piauiense Diego Mendes Sousa lança em Brasília dois volumes de poemas: Gravidade das Xananas; e Tinteiros da Casa e do Coração Desertos. Este último é oferecido com duas opções de capa, uma das quais é mostrada ao lado. Os livros saem pela Editora Penalux.

Quando:
Terça-feira, 16/04/2019,
a partir das 19h

Onde:
Bar Beirute
109 Sul
Brasília, DF

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Poemas sujos de lama e luto

• Iacyr Anderson Freitas 
• Carlos Drummond de Andrade


              



Edvard Munch - The scream-1893
Edvard Munch, pintor norueguês, O grito (1893)


VALE QUANTO LESA


do minério
   não se inclui
no peso bruto
glebas & glebas
 de luto

rios que morreram
    no curso
de um minuto

vales vilas vidas
como insumos
      ou meros
acidentes
   de percurso

com zeros
muitos zeros
à direita do lucro

& o que resta
— um cemitério
    devoluto
(mero
       acidente
   de percurso?)

grandes açougues
   de azougue
pelas frestas

rios defuntos
de defuntas
florestas

(uma hecatombe
a cada monte)

& o peso bruto
dessas mortes
em conluio
            com os zeros
              à direita
                sempre à direita
do lucro

   (este
que prospera
       com as mortalhas
    que entrega

& muito medra
com os crimes
que nega)

este
senhores
o lucro

: para o qual
não existe
corpo insepulto   :o lucro

o único
      (embora sujo
de lama & luto

embora mito)

o único o único

        (oh perdoai
   se vos repito)

o único

impoluto

       (Juiz de Fora-MG, 21/02/2019)



Edvard Munch - Death in the sickroom
Edvard Munch, Morte na enfermaria (1893)


CORREIO MUNICIPAL


De nossa velha Itabira,
meu prezado C.D.A.,
escreve-lhe este caipira
por um “causo” urgente. Tá?

Sucede que há bem treze anos,
oito meses e uns trocados,
os pobres itabiranos,
mais fazem, mais são furtados.

A nossa mina de ferro,
que a todo mundo fascina,
tornou-se (e sei que não erro),
pra nós, o conto da mina.

Vai-se a cova aprofundando
pelas entranhas do vale,
e um dinheiral formidando,
como outro não há que o iguale,

dessas cavernas se escoa
e passa pela cidade,
passa de longe... Essa é boa!
Aceitar isso quem há de?

Não chega à tesouraria
da faminta Prefeitura,
pois vai reto à Companhia
que o povo não mais atura.

Do Rio Doce se chama,
de pranto amargo ela é,
refletindo um panorama
de onde desertou a fé.

Promete mundos e fundos,
piscina, cinemascópio,
avião cada dois segundos,
mas promessa aqui é ópio.

De positivo, batata,
a injusta empresa nos lega
poeira de ferro, sucata
e o diabo (que a carrega).

O doutor Café, doído
de tanta desolação,
dá como bem entendido
que assim não pode ser não.

Mas a bichinha remancha,
diz que vai, não vai; ou vai?
E assim driblando na cancha,
se ri da gente e seu ai.

Ante o clamor que não cessa,
depois de fechar-se em copas,
o professor Chico Lessa
divaga pelas Europas.

Diz-que espera a lua nova,
ou por outra, o Juscelino,
e então teremos a prova
de quem é o mais ladino.

Ora, não creio: esta terra,
em sua sorte mofina,
e nas feridas da serra,
lembra muito Diamantina.

Dos grão-mogóis do Tijuco,
hoje que resta? lembrança.
(A exploração leva o suco,
deixa a fome como herança.)

Um presidente que sabe
as lições de nossa história,
é de esperar que ele acabe
com a comédia embromatória.

Se não acabar... paciência.
No vale já se perscruta
uma sagrada violência
de povo inclinado à luta.

As pedras juntam-se aos braços...
Que o desespero nos una!
E é só. Duzentos abraços
do velho Nico Zuzuna.

       (Correio da Manhã, 12/10/1955)



Edvard Munch - The greek girl-1870-71
Edvard Munch, Herança (1897-99)





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019



• Iacyr Anderson Freitas
   in Correio das Artes, março 2019 - Edição especial de 70 anos
   Suplemento Literário do jornal A União
   João Pessoa-PB

• Carlos Drummond de Andrade
   in Correio da Manhã, 12/10/1955
   O poema foi republicado no livro Versiprosa (1967)
_____________
* Carlos Drummond de Andrade, in jornal O Cometa Itabirano n. 58, dez/1983
______________
* Imagens: obras de Edvard Munch (1863-1944), pintor norueguês