Número 422 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 8 de maio de 2019

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«Como morre o homem, / como começa a? (...) / Quando dorme, morre? / Quando morre, morre?» (Drummond) *

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Adriane Garcia
Adriane Garcia



Amigas e amigos,

Poeta, ficcionista e atriz, a mineira Adriane Garcia (Belo Horizonte, 1973) lançou recentemente novo livro de poemas, Garrafas ao Mar (Penalux, 2018). A autora, que parece encontrar-se em plena primavera criativa, apresenta aí um volume de fôlego, com — se não contei errado — 129 poemas.

Trata-se de textos curtos que quase nunca excedem a extensão de uma página. A concisão, no entanto, é enganosa. Adriane Garcia tem o dom de enfrentar temas complexos com poucas palavras. Assim, seus poemas, que parecem leves, são na verdade pílulas de considerável densidade.

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É o caso de “Constrangimento”, poema com apenas seis versos breves. Um artefato tão condensado que qualquer comentário pode pôr a perder a surpresa que contém. Outro exemplo é “O Amor Disparado”. Neste a poeta correlaciona o transtorno físico (ansiedade, taquicardia) ao maravilhoso embaraço íntimo trazido pelo sentimento amoroso.

No poema “Vó Preta”, a autora parte de uma situação-limite — o enterro de uma velha avó — para daí tecer considerações sobre o fim da vida. Em “Mensagem no Biscoito da Sorte”, o poema se aproxima de questões ecológicas: “O cheiro é fétido do início da baía / Iemanjá está presa numa ilha / Asfixiada entre os plásticos”.

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No texto “Transição”, Adriane Garcia toca num ponto muito sensível de nossa sociedade, hoje deploravelmente atiçada de forma oficial para todo tipo de preconceito. O poema trata da homofobia. “Mataram (...) / O menino cor-de-rosa / que pintava o cabelo / De azul.”

É justamente por causa do tipo de tragédia mostrada nesse poema anterior que a poeta não se furta de dizer o óbvio. E para isso recorre à ciência genética em “Genoma Constrangedor”: “Somos / Da mesma espécie”. De fato, esse tipo de aviso pode parecer redundante — e, portanto, desnecessário. Mas quando autoridades estimulam o desrespeito a essas regras primárias, é dever da poesia repeti-las.

A pequena amostra do livro Garrafas ao Mar, de Adriane Garcia, encerra-se ao lado com “Este Poema”. No texto, a autora discorre sobre as limitações da poesia. Por mais que o poeta, indignado, traga para dentro de sua arte as diferentes mazelas que enxerga à sua volta, o poema não tem, por si só, a força de corrigi-las. “Este poema não vai / Segurar a lâmina / Não vai arrebentar a corda / Não vai dar de comer à criança / Suja estendendo a mão / Na rua”, consola-se a poeta.

E no entanto o poema se move, esperneia, grita. Qual náufrago na ilha perdida, pede socorro, lança garrafas ao mar.

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Adriane Garcia já esteve aqui no boletim nas edições n. 389 e n. 334. É graduada em História pela UFMG e especializou-se em Arte-Educação na UEMG. Sua obra poética reúne os títulos Fábulas para Adulto Perder o Sono (2013, Biblioteca do Paraná); O Nome no Mundo (2014, Armazém da Cultura); Só, com Peixes (2015, Confraria do Vento); Enlouquecer é Ganhar Mil Pássaros (2015, e-book, Vida Secreta); Embrulhado para Viagem (2016 - Coleção Leve um Livro, orgs. Ana Elisa Ribeiro e Bruno Brum); e Garrafas ao Mar (2018, Penalux).


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado




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Garrafas ao mar


• Adriane Garcia


              



Rita Cavallari - Silenzi
Rita Cavallari, pintora italiana, Silêncios


CONSTRANGIMENTO

Na sala de estar
Os presentes se
Entreolham
Com o mal-estar
De nunca terem construído
Uma sala de ser.


O AMOR DISPARADO

Pressente-se o perigo
O coração acelera
E ganha vantagem

O médico o chama
De taquicardia
E o cérebro sabe

Daqui pra frente
Quem é que manda.



Rita Cavallari - La rosa azzurra
Rita Cavallari, A rosa azul


MANDANTE

O lobo
Não se disfarça de
Ovelha

O lobo
Se disfarça de
Pastor.


VÓ PRETA

Minha avó morreu hoje
Não creio que mortos
Descansem

Creio sim que vivos
Percorrem
O caminho entre as tumbas
Cansados

Passam pássaros em revoada
Um cão tranquilo adota uma lápide
Crianças não dão a mínima
Para o que não seja
Brinquedo

Eu sinto o odor incômodo
Dos crisântemos arrancados.



Rita Cavallari - La tavolozza
Rita Cavallari, A paleta


MENSAGEM NO BISCOITO DA SORTE

Gaivotas planam no ar de morte
Containers chegam da China
A mancha poluída parece neblina

O cheiro é fétido do início da baía
Iemanjá está presa numa ilha
Asfixiada entre os plásticos.


TRANSIÇÃO

Mataram o menino
Na trincheira
O menino cor-de-rosa
Que pintava o cabelo
De azul
O menino do riso largo
Feito uma fatia da lua
Quem o visse
Pela rua
Teria dúvidas
Se não era
A menina ou o menino
Mais bonito do mundo.



Rita Cavallari - Il mandolino
Rita Cavallari, O bandolim


GENOMA CONSTRANGEDOR

Eu
Tu
Ele
Nós
Vós
Eles
Somos
Da mesma espécie.


ESTE POEMA

Este poema não vai
Segurar a lâmina
Não vai arrebentar a corda
Não vai dar de comer à criança
Suja estendendo a mão
Na rua

Não vai
Ressuscitar a ave extinta
Nem sacolejar o coração
Traído
Pelo último bombeamento
Do sangue, este poema
Não vai

Limpar a ardência dos olhos
Secar lágrimas, abrir
Sorrisos
Nem falar a palavra amiga
Ao menos abrigar uma ilusão

Não, este poema não vai
Segurar o homem no
Abismo
Voltar o tempo, acender a
Luz
Esclarecer qualquer
Confusão

Falar a verdade
Saber a verdade
Desistir da verdade
Ser a verdade

Este poema não vai
Melhorar o trânsito.




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019


Foto: Ricardo Laf


• Adriane Garcia
     in Garrafas ao Mar
     Penalux, Guaratinguetá-SP, 2018
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* Carlos Drummond de Andrade, "Especulações em Torno da Palavra Homem",
  in A Vida Passada a Limpo (1959)
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* Imagens: obras de Rita Cavallari, pintora italiana residente no Brasil.