Número 427 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 24 de julho de 2019

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«Como vencer o oceano / se é livre a navegação / mas proibido fazer barcos?» (Carlos Drummond de Andrade ) *

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Gilberto Nable
Gilberto Nable, em charge de Renato Aroeira



Amigas e amigos,

Tenho aqui em mãos o novo livro do poeta mineiro Gilberto Nable, Poemas do Desalento & Alguns Elogios, lançado este ano. Conforme sugere o título, a obra se divide em duas partes principais. Na primeira estão reunidos poemas de produção mais recente. São os versos do desalento.

Na outra parte, mais volumosa, o poeta decidiu elogiar autores de sua predileção, entre os quais poetas como Dantas Mota, Cecília Meireles, Mario Quintana, Nicanor Parra e filósofos como Nietzsche e Montaigne. Os elogios são vazados às vezes em prosa, às vezes em verso, ou numa combinação das duas formas de expressão.

O livro tem ainda uma terceira parte, menor, chamada “Esparsos”, na qual se encontra nais um punhado de poemas, incluindo alguns de data já distante, como os anos 60 e 70. São, suponho, textos colhidos no baú do poeta.

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Para este boletim, selecionei quatro poemas, todos pertencentes à porção desalentada do livro. Mas, enquanto escrevia estes comentários, revisitei outras obras do autor e decidi replicar aqui um poema de Percurso da Ausência (2006).

Inclinado à filosofia — conforme provam seus elogios a pensadores —, Gilberto Nable usa a expressão poética para refletir sobre os desconcertos do mundo. No poema “Palavras”, ele se põe a indagar sobre a função das palavras — esse atributo fundamental que nos distingue dos outros animais. “Que luz me ilumina quando falo? / E quando escrevo o que se acende em mim?”

No próximo texto, “Galerias”, a observação do poeta se volta para o convívio da família patriarcal brasileira com as criadas, uma óbvia sobrevivência do escravismo. O poema traça o paralelo entre “a galeria de figuras notáveis da família” (os patrões) e uma galeria de outro tipo, subterrânea, concedida à criada de uma vida inteira, da qual não resta nem sequer o nome.

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Em “As Meias Furadas” juntam-se na mente do sujeito lírico memórias domésticas da infância — lembranças manchadas de lágrimas — com os acontecimentos de hoje descritos nos jornais: “notícias / de um mundo sempre caduco”. A conclusão surge em tom de completo desalento: “Tempo de astrolábios quebrados”.

Ora, o astrolábio era um instrumento náutico antigo usado para determinar a latitude e a longitude do local onde se encontra o observador. Na tecnologia de hoje, seria um aparelho de GPS que diz ao usuário onde ele está. Se, no poema, os astrolábios estão quebrados, implica dizer que seu dono está completamente perdido. Não sabe onde se encontra e, por decorrência, também não é capaz de definir aonde vai.

Sempre em tom que tende à elegia, em “Meu Tempo” — que também poderia chamar-se “Minha Hora” —, o poeta medita sobre a morte. Primeiro, a pergunta: “Devo ajoelhar-me e chorar de medo?”. Mais adiante, faz considerações sobre o que aconteceria post mortem. Cenas triviais: “as coisas voltarão aos seus lugares,/ (...) / as roupas estendidas nos varais, / a chuva escurecendo pedras na calçada”.

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Vem, por fim, o poema “Ornitorrinco”, que pincei no livro Percurso da Ausência (2006). Este texto já apareceu aqui no boletim n. 190, mas decidi trazê-lo de volta para mostrar como a poesia de Gilberto Nable se mantém coerente em torno de certos temas reflexivos.

De saída, o ornitorrinco, figura aparentemente desconjuntada e fora de lugar, é o próprio sujeito lírico. O ambiente é um bar, onde ele bebe e medita sobre o mundo. Medita, viaja até “o sem-fim do universo” e retorna de lá sentindo-se minúsculo: “Um grão de areia / grudado no milênio”.

O sujeito é despertado de suas elucubrações metafísicas quando o garçom vem perguntar-lhe se quer mais uma cerveja. Afinal, ele está num bar para beber ou para meditar?


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Gilberto Nable (Aiuruoca-MG, 1954) é médico e já esteve aqui nesta página nas edições n. 362, de 2016, e n. 190, de 2006. Poeta e contista, estreou em 1988 com o livro Elegias Urbanas e Outros Poemas. Em seguida, publicou o livro de contos Menino Abstrato (1995). Vieram depois as coletâneas de poemas Percurso da Ausência (2006); O Mago sem Pombos (2008); O Tratador de Canários (2010); e Poemas do Desalento & Alguns Elogios (2019).

Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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TRADUÇÃO DE POESIA

Dias atrás, recebi um e-mail da poeta e tradutora italiana Manuela Colombo. Ela, que já divulgou na internet milhares de poemas portugueses e brasileiros vertidos para a língua de Dante, acaba de lançar novo blog, Carmina Lusitana. Em suas palavras, o blog “brota de uma grande paixão pela poesia e pelos poetas da língua portuguesa”.

Nesse espaço, ainda em montagem, há poemas vertidos para o italiano, pela própria Manuela, e para o francês, por Christian Guernes. O Carmina Lusitana, no momento em que escrevo, reúne poemas de três brasileiros (Dante Milano, Donizete Galvão e Gilberto Nable) e dois portugueses (Nuno Rocha Morais e Sophia de Mello Breyner Andresen).

Outro site com trabalhos de Manuela Colombo é O Melhor da Web. Ela atua ainda no Lyrics Translate, no qual chegou a traduzir até poemas deste comentarista. Aqui. Neste último endereço, Manuela e Christian Guernes contam com a ajuda de Emilia Albo Rosillo (pseudônimo: Sarasvati), francesa de origem andaluz, que traduz para o espanhol.

Aos três tradutores, nosso agradecimento pela divulgação da poesia de língua portuguesa.

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LANÇAMENTOS

• Nova Antologia Poética
• Uma História do Paraíso & Outros Poemas
Ruy Espinheira Filho

• Cerração
Alexei Bueno

Ruy - Alexei Os poetas Ruy Espinheira Filho e Alexei Bueno lançam três livros no mesmo evento. Dois são do baiano Espinheira, Nova Antologia Poética e Uma História do Paraíso & Outros Poemas. O terceiro, Cerração, é assinado pelo carioca Bueno. Todos os títulos são publicados pela Editora Patuá.

Quando:
Quinta-feira, 25/07/2019,
a partir das 18h

Onde:
Patuscada Livraria, Bar & Café
Rua Luís Murat, 40
Pinheiros
São Paulo, SP


Astrolábios quebrados


• Gilberto Nable


              



Andre Kohn - Le parapluie jaune 5
Andre Kohn, pintor russo, O guarda-chuva amarelo 5


PALAVRAS

Nem tudo se tem coragem de dizer.
Mas dizer é uma coisa muito forte,
e, afinal, somos quase que só palavras,
em cada vão do corpo, cada fresta.

Esse o delicado abismo que habitamos,
e medeia de uma frase a outra frase,
embora cá dentro, um vasto mundo,
entre as duras bolhas dos silêncios.

Que luz me ilumina quando falo?
E quando escrevo o que se acende em mim?
Uma palavra brilha e se liga a outra,

e nenhuma está morta em dicionário.
E qual dicionário poderia contê-las?
Não as contêm o meu próprio peito,

nem extenso país, nem qualquer língua.




Andre Kohn - At the milliners
Andre Kohn, Na chapelaria


GALERIAS

A galeria das figuras notáveis da família.
As galerias existindo para isso:
a boba inutilidade dessa demonstração,
a fútil importância das pessoas.

Um bisavô com bócio coloide,
o desespero de vê-lo engravatado e vesgo,
e a bisavó de olhar triste.

A criada era bem menos,
era quase nada.
Sobrou apenas o apelido — Liquinha,
que o resto submergiu no tempo.
Trinta anos de serviço.
Lavar, esfregar, cozinhar, cuidar.
Entre coisa e outra,
tratar dos porcos.

O que lhe deram ou mal lhe deram:
uma galeria,
mas subterrânea.




Andre Kohn - Dancing in the rain
Andre Kohn, Dançando na chuva


AS MEIAS FURADAS

O pai dormindo bêbado
e com as meias furadas:
desolada imagem na memória.

Não lhe ensinaram direito a tabuada,
mas desde muito pequeno aprendeu
a limpar as suas próprias lágrimas.
E é por isso que insiste, persevera,
toma o café da manhã, almoça,
ouve as muitas injúrias, e calado
vai às bancas de jornais: notícias
de um mundo sempre caduco.

Tempo de astrolábios quebrados.




Andre Kohn - Tango
Andre Kohn, Tango


MEU TEMPO

      Para Júlio Maciel & Juliana Sartorello,
      Márcio Bittar Nehemy, Luiz Alberto Lamana,
      Dayse M. Nascimento César
      colegas e amigos que se importam.


Chegou? É chegado o meu tempo?
Devo ajoelhar-me e chorar de medo?
Com minhas pálpebras semiabertas,
darei meu adeus definitivo e breve,
aos que me amaram e a quem amei,
e àqueles que aprenderam a me odiar,
por razões aparentes, as mais variadas,
e os motivos estranhamente plausíveis.
Depois as coisas voltarão aos seus lugares,
com os mínimos sinais de vida,
de onde, afinal, nunca saíram:
as roupas estendidas nos varais,
a chuva escurecendo pedras na calçada,
e alguém que dirá, em vão: — Foi assim!
como a agulha procura o fio,
e o fio encontra a sua meada.

      De Poemas do Desalento & Alguns Elogios (2019)





Andre Kohn - Summer Rain - Amalfi Coast
Andre Kohn, Chuva de verão - Costa Amalfitana


ORNITORRINCO

      Para Marco Fabiani

Sobre a mesa — a garrafa.
Em torno da mesa — o bar atônito.
Depois do bar, a rua, o bairro.
Após, as cidades, os desertos,
cordilheiras e desfiladeiros,
oceanos e precipícios,
galáxias e nebulosas,
a vastidão do mundo,
o sem-fim do universo,
com seus pilares enormes,
contrafortes onde o tempo
esbate as imensas ondas.
Depois de depois — Deus?
As Parcas tecendo o fio
de minha vida?

Consideras teu coração,
nada formidável.
Um grão de areia
grudado no milênio.
Um pingo de cálcio
na concha de um molusco.
Consideras tudo isso
e mais alguma coisa.
(Só não consideras o garçom
ao teu lado:
— Mais uma cerveja, doutor?)

De onde surgiu esse ser medievo
e que há séculos não dorme?
E por que me olha espantado
como se visse um ornitorrinco?
Na natureza nada se perde,
nada se cria,
tudo se transforma.

      De Percurso da Ausência (2006)




poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019


Charge: Renato Aroeira


Gilberto Nable
•   Todos os poemas, exceto “Ornitorrinco”
     in Poemas do Desalento & Alguns Elogios
     Poema-prefácio: Júlio Machado
     Scortecci, São Paulo, 2019
•   “Ornitorrinco”
     in Percurso da Ausência
     7Letras, Rio de Janeiro, 2006
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* Carlos Drummond de Andrade, "Rola Mundo", in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens: obras de Andre Kohn (1972), pintor russo