Número 431 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 18 de setembro de 2019

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«É justo querer o impossível.» (Dante Milano) *

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Alberto Bresciani
Alberto Bresciani



Amigas e amigos,

O poeta Alberto Bresciani (Rio de Janeiro, 1961) comparece, mais uma vez, a esta página. Agora, ele vem a bordo de nova coletânea, Fundamentos de Ventilação e Apneia (Patuá, 2019), lançada em abril.

Resultante de elaboração notoriamente sofisticada, a poesia de Alberto Bresciani tende a lidar com a incerteza, a insuficiência de alternativas, a falta de saídas. Seu livro anterior, Sem Passagem para Barcelona (José Olympio, 2015), lida com a impossibilidade de emprender viagem para uma cidade mítica, representada por uma inalcançável Barcelona.

Em Fundamentos de Ventilação e Apneia, o clima é mais uma vez de ausência e perplexidade. Mas agora o que está em falta é o ar, um suprimento vital e angustiante. É como se o poeta tivesse dado mais uma volta no parafuso de compressão, o que torna o ambiente muito mais hostil.

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Para este boletim, selecionei cinco textos do livro, transcritos na coluna ao lado.

O poema “Bisões” compara a convivência humana ao deslocamento de uma manada desses bovídeos selvagens que segue em disparada “fugindo / de absolutamente nada / e de quase tudo”. Naturalmente, esse desarticulado e crescente rebanho não sabe em busca de quê nem para onde vai.

Em “Metabolismo”, a corrida continua. O ambiente passa a ser o da cidade, da escola. A falta de ar é a mesma. Tanto que se torna necessária uma traqueostomia, para forçar artificialmente o acesso ao ar. A tensão é intensa, porque as pessoas digerem relógios. O tempo. O tempo. O tempo. Temos pressa.

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Ao longo do livro, Alberto Bresciani desfia uma extensa coleção de seres, que passa por bisões, lobos, carneiros, aves e peixes. No entanto, toda essa fauna remete inapelavelmente ao bicho-homem e às asfixias da civilização.

No próximo poema, “De Profundis”, os animais em questão são peixes das profundezas aquáticas cuja respiração está falhando. Talvez eles precisem emergir em busca de ar. Não se pode esquecer, também, que o título — em latim — remete ao Salmo 130 da Bíblia, no qual alguém desesperado recorre a Deus: “Das profundezas a ti clamo, ó Senhor. // Senhor, escuta a minha voz”.

Um trecho marcante neste poema está nos versos “Há que se forjar o fôlego, / renegar a verdade”. No ambiente irrespirável, para encontrar o mínimo hausto que garanta a sobrevivência, é preciso mentir, fechar os olhos, fazer de conta.

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No poema “Anatomia”, prevalece a certeza do fim e sobrevém a ideia da inutilidade de toda a correria, considerada exatamente numa segunda-feira, o dia-símbolo de retorno à correria. “Para o que servem coração, / rins, fígado, veia cava, / gônadas e glândulas / vocacionadas ao pó?”, indaga o sujeito lírico. Para maior desânimo, ele sabe que todos esses “dispositivos complexos” da anatomia têm a mesma vocação, estejam em seres humanos, bisões, “enguias, ursos, / tartarugas e gaivotas”.

E chegamos ao último texto da amostra desses angustiantes Fundamentos de Ventilação e Apneia. Em “Moto-Contínuo”, o animal agora é uma atração de circo, que leva chicotadas de uma domadora — e é obrigado a sorrir. São vergastadas hereditárias, porque esse “artista” (sem espécie definida) coleciona velhas cicatrizes como heranças de família.

No livro anterior, não havia passagem (bilhete ou via de acesso) para se chegar à cidade do desafogo. Neste, com mais uma volta do parafuso, o estado de ansiedade é bem mais precupante. Agora falta o ar e, aparentemente, nem se cultiva mais um horizonte mental no qual se encontra uma inalcançável Barcelona como meta de chegada.

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Alberto Bresciani graduou-se em direito na Universidade Federal de Juiz de Fora e tornou-se magistrado por concurso público. Na Justiça, fez carreira como juiz, desembargador e, desde 2006, é ministro do Tribunal Superior do Trabalho. Seus livros anteriores de poesia são: Sem Passagem para Barcelona (2015) e Incompleto Movimento (2011), ambos publicados pela José Olympio. Bresciani já esteve aqui no poesia.​net nas edições n. 342, de 2015, e n. 279, de 2012.

Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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LANÇAMENTO

Visível ao Destino
• Eunice Arruda

Andrea Catropa - homens adoram...A Editora Patuá lança o livro póstumo Visível ao Destino, com a obra completa e poemas inéditos da escritora paulista Eunice Arruda (1939-2017). O volume é também uma comemoração dos 80 anos da poeta.


Quando:
Sábado, 21/09/2019, às 16h

Onde:
Patuscada Livraria, Bar & Café
Rua Luís Murat, 40 - Pinheiros
São Paulo, SP


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Respiração difícil


• Alberto Bresciani


              



Toulouse-Lautrec - At the Moulin Rouge - La Goulue
Toulouse-Lautrec, francês, No Moulin Rouge - La Goulue com a irmã (1892)


BISÕES

E seguimos como bisões,
olhando para a frente,
em disparada, fugindo
de absolutamente nada
e de quase tudo

No caminho, outros bisões
se juntam ao grupo
e continuamos todos,
aos atropelos, na mesma rota

Corremos, nós os bisões,
para onde não sabemos
em uma pradaria fictícia
que, a exemplo dos rios,
é outra a cada migração

Olhamos para a frente
e nos perguntamos,
os olhos bovinos,
se este é mesmo
o nosso lugar.




Toulouse-Lautrec - À la Bastille - Jeanne Wenz
Toulouse-Lautrec, Na Bastilha - Jeanne Wenz (1888)


METABOLISMO

Digerimos relógios, enquanto o ar
força entrada por guelras, engenhos,
instintos ou pela traqueostomia

Ainda ontem, o caminho da escola
era um trampolim para essa história
estranha, que ninguém viu passar

A janela está aberta,
hoje choveu
(a meteorologia e seus jogos)

Pode ser que um vírus se espalhe,
uma brand new de gripe
Todo acaso pode ser letal

Não há mesmo sentido,
como antever qualquer bom epílogo
para humanos ou antílopes

Melhor fazer como os utopistas
e acreditar que infusões de flores
nos devolverão a algum deus.




Toulouse-Lautrec - At the Moulin Rouge-Cha-U-Kao
Toulouse-Lautrec, No Moulin Rouge - A palhaça Cha-U-Kao (1895)


DE PROFUNDIS

Das profundezas sobe o fino silvo
de peixes fixos no breu do abismo

Nem dentes ou tentáculos
ou órgãos luminescentes

explicam ou deixam pista
por que lhes falha a respiração

Escolha entre rochas submersas
nunca existiu

Há que se forjar o fôlego,
renegar a verdade

Funda nas guelras, resta a ambição
de alguma superfície.




Toulouse-Lautrec - Dr. Gabriel Tapie de Celeyran 1894
Toulouse-Lautrec, Dr. Gabriel Tapié de Céleyran (1894)


ANATOMIA

Para o que servem coração,
rins, fígado, veia cava,
gônadas e glândulas
vocacionadas ao pó?

Todos os dispositivos
complexos, ligados, frágeis,
dentro de enguias, ursos,
tartarugas e gaivotas

Não importam cordilheiras
em transe, o livro nunca lido,
abstenções de carne, álcool,
esportes radicais, sexo e ar

Inúteis feixes de nadas
no fim das contas,
que pagaremos felizes
nesta segunda-feira.




Toulouse-Lautrec - Dancer on foot - back view
Toulouse-Lautrec, Bailarina de pé, vista de costas (1890)


MOTO-CONTÍNUO

Todas essas voltas
da corda
em torno do corpo

A domadora
arremessa o chicote
Inflo o torso

Devo sorrir
para ela,
para o público

Nâo se assuste
com as cicatrizes
sob os pelos

São antigas
São herança
de família.





poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019



Alberto Bresciani
•   in Fundamentos de Ventilação e Apneia
     Patuá, São Paulo, 2019
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* Dante Milano, “Poemas de um verso”, in Obra Reunida (2004)
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* Imagens: obras de Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901), pintor pós-impressionista francês