Número 432 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 2 de outubro de 2019

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«Sempre haverá / uma voz / que te chama / de onde o prodígio / não veio.» (Francisco Carvalho) *

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Renata Pallottini
Renata Pallottini



Amigas e amigos,

A poeta, dramaturga, tradutora, ensaísta e professora universitária Renata Pallottini (São Paulo, 1931) é a autora em destaque nesta edição. Esta é a terceira vez que ela aparece neste espaço. Vem agora com versos do livro Poesia Não Vende, publicado pela Hucitec Editora em 2016.

Na quarta capa do livro, a própria autora ensaia uma pequena indicação de seu conteúdo. “Meu livro agora, este Poesia não vende, tem muita ironia, medo e espanto, saudade e, surpreendentemente, esperança”.

De fato, a ironia — o primeiro item listado — é presença fundamental nesta coletânea de poemas, a começar pelo próprio título. Com ele a poeta faz troça da consagrada afirmação que reduz a poesia a uma iniciativa de caráter puramente mercantil.

É como se retrucasse: “Muito bem, não vende. E daí?” Afinal, tanto a poeta como nós sabemos que o valor real da poesia está em outro lugar, talvez nos outros itens citados, como ironia, medo, espanto, saudade e esperança.

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Para este boletim, selecionei sete poemas de Poesia Não Vende. O primeiro deles, “No Rio das Velhas”, confirma o anúncio de ironia. Aqui, a poeta brinca com o nome do histórico rio mineiro, o maior afluente do São Francisco, conhecido pela sua localização numa região onde foram encontrados ouro e pedras preciosas.

No poema, o sujeito lírico — mulher que é um óbvio alter ego da autora — diz ter achado no Rio das Velhas uma pedra preciosa. Mas o objeto, certamente de arestas afiadas, lhe fere as mãos. Assustada, a inexperiente garimpeira devolve o objeto ao rio. A conclusão é uma tirada na qual a autora faz um chiste com a própria idade.

No poema seguinte, “O Que Eu Proponho”, o tom passa a ser de afeto e saudade, com uma tranquila declaração de amor, “sem ilusões”. Em “Sogno 123”, as notas dominantes vêm da solidão e da saudade. Há mesmo um certo ritmo de tango: “Neste quarto que não há / Canto um tango que não sei / Pra você, que já não está”.

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Vem a seguir “No Oftalmologista”, um epigrama doidamente irônico. [Curiosidade: eu queria escrever doídamente (doloridamente), mas confesso que não sei como se faz isso. Uns cinquenta anos atrás, usava-se o acento grave: doìdamente.]

Não sei dizer exatamente por quê, mas o poema “A Rua” me traz ecos da velha cantiga de roda “Se esta rua fosse minha”. Nele, a nostalgia de um tempo que passou é (mal) disfarçada com frases de tom depreciativo. E, no final, diz a poeta, a rua não é mais minha e eu também não sou mais aquela.

Dá também para lembrar, no mesmo tom melancólico, o romanceiro de García Lorca: “Mas eu já não sou eu mesmo / nem mais é minha esta casa”. Os poetas dão-se as mãos na tristeza.

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No poema “Viesse Logo a Noite”, o registro melancólico assume uma nota mais aguda, tendente ao desespero. Aqui, pede-se que venha a noite completa, um tempo que abolisse as guerras e no qual as pessoas todas se amassem. Ou, pior, uma noite dos silêncios e das feras.

Para fechar a seleção, o poemeto “De Uma Formiga” retoma a inflexão irônica.

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NOTÍCIA DE RENATA PALLOTTINI

Formada em filosofia pela PUC-SP em 1951, Renata Pallottini também concluiu o curso de direito na USP em 1953. Depois, em Paris, começa a estudar teatro em 1959. De volta a São Paulo, entra na Escola de Arte Dramática da USP e faz os cursos de dramaturgia e crítica.

Inicia sua produção de textos para treatro em 1960, com a peça A Lâmpada. Depois, criou vários outros espetáculos cênicos. Em 1967, a peça Pedro Pedreiro, com texto dela e música de Chico Buarque, é levada à Colômbia. No ano seguinte, Renata Pallottini traduz o famoso musical Hair, dos americanos James Rado e Gerome Ragni, com música de Galt MacDermot. O trabalho da autora nessa área estende-se à televisão, ao cinema e ao ensino universitário.

Em poesia, ela estreou em 1952 com o livro Acalanto, seguido em 1956 por O Monólogo Vivo, primeiro título incluído em sua Obra Poética, de 1995, que contém 14 livros. Depois disso, ainda na poesia, ela publicou Um Calafrio Diário (2002) e Poesia Não Vende (2016). Ademais, há livros de memória, biografia, ensaios de dramaturgia e até um romance, Nosotros.

Sobre a Renata poeta, Carlos Drummond de Andrade escreveu os seguintes versos:

“Poesia de Renata:
sob a música exata
há um tremor humano.
O verbo conta mais
do que os jogos verbais:
o mundo refletido.
O tempo, o ser, a morte
o invisivel suporte
do amor por sobre o caos.
Poesia de Renata:
um reflexo de prata
no deserto noturno”.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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Irônicos e melancólicos


• Renata Pallottini


              



Hulya Ozdenir - You feeel my stare - 2019
Hülya Özdenir, pintora turca, Você sente meu olhar (2019)


NO RIO DAS VELHAS

Garimpando,
sem jeito,
no Rio das Velhas
encontro a pedra
verde
decerto preciosa.

Ao movê-la entre os dedos
me feriu de dar sangue.

Joguei de volta a pedra
no Rio das Velhas.

Quem sabe a encontra
com mais sorte
outra velha?




Hulya Ozdenir - In the silence we yearn-2017
Hülya Özdenir, No silêncio ansiamos (2017)


O QUE EU PROPONHO

O que eu proponho
É um inferno limpo
Sem nenhuma espécie de sonho.

Também um infinito
Onde tudo se acabe
Menos o grito.

O que eu proponho é uma eternidade
Onde seja proibida
A saudade.

Sem ilusões de nenhuma casta.
O que eu proponho é estar contigo
Até que eu diga
(e nunca vou dizê-lo)
basta.




Hulya Ozdenir - Send her my love-2018
Hülya Özdenir, Envie a ela meu amor [Frida Kahlo] (2018)


SOGNO 123

Nesse quarto que não há
Canto um tango que não sei
Pra você, que já não está

É tudo um país distante
Outro mundo, outras montanhas
Outra bebida, outro instante

A cama, desarrumada
Decora esse melodrama.
Por força, é de madrugada.
Pena que a vida se acanhe
E tudo desande em nada...


NO OFTALMOLOGISTA

Doutor:
Esqueci de lhe fazer uma pergunta:
— chorar, pode?




Hulya Ozdenir - Madonna-2018
Hülya Özdenir, Madonna (2018)


A RUA

A rua tem um defeito:
Eu não moro mais nela.

Eu também tenho um defeito:
Não sou mais
Aquela.




Hulya Ozdenir - Well-kept secret-2017
Hülya Özdenir, Segredo bem guardado (2017)


VIESSE LOGO A NOITE

Viesse logo a noite
Uma noite completa
Universal
Que matasse todas as guerras
De um sono profundo e total

Viesse logo a noite exemplar
Em que se amariam todas as gentes
Como se as gentes tivessem alma para amar

Viesse a noite dos silêncios
Todos cessassem as palavras
Provadas já, inutilmente,
E fosse a noite de somenos
Dos grilos, das corujas e dos ventos

Em que, de pé, só eu sentisse
A voz pacífica e feliz
Das feras soltas na planície


DE UMA FORMIGA

Formiga que salvei das águas da piscina
Quando se viu andando, eu senti que dizia:
“obrigada, senhora deus, muito obrigada”.





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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019



Renata Pallottini
•   in Poesia Não Vende
     Hucitec, São Paulo, 2016
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* Francisco Carvalho, “Pomar Alheio”, in O Silêncio é Uma Figura Geométrica (2002)
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* Imagens: obras de Hülya Özdenir (1972-), aquarelista turca