Número 433 - Ano 17
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São Paulo, quarta-feira, 16 de outubro de 2019
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Fernando Pessoa
Amigas e amigos,
“Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo”, afirma Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa que se expressa em prosa. Ele
tem certeza de que se derrama todo naquilo que escreve. Faz isso soberanamente e, como também deixa claro, “acima da gramática”.
Bernardo Soares é autor do Livro do Desassossego, volume de textos em forma de diário íntimo, sem datas. Ajudante de
guarda-livros (hoje seria auxiliar de contabilidade, se é que essa atividade ainda existe), trabalha num escritório da Baixa, em Lisboa.
Seus escritos não têm um eixo narrativo. Compõem-se de anotações numeradas, com reflexões, textos especulativos
e às vezes ideias que o autor, na vida real, jamais teria condições ou coragem de apresentar aos colegas de trabalho.
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O Livro do Desassossego é uma das preciosidades que ficaram perdidas nos baús de Fernando Pessoa (1888-1935), na forma de textos avulsos. Veio
à luz pela primeira vez em 1982, quase meio século após a morte dele. Para os especialistas, Bernardo Soares,
de todos os heterônimos,
seria o mais próximo do próprio Pessoa.
As pistas para isso são muitas. Primeiro, ele se apresenta como ajudante de guarda-livros num escritório localizado na mesma região onde o
ortônimo trabalhava como correspondente comercial (redator de cartas em vários idiomas). Conforme os estudiosos, os personagens citados
no livro são funcionários desse escritório real, com os nomes trocados. O patrão de Pessoa era Moitinho de Almeida. No livro
de Soares, ele se
chama Vasques.
O próprio Pessoa admite que Bernardo Soares é apenas um semi-heterônimo. “Não sendo a personalidade minha, é não diferente da minha, mas uma
simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade”. O poeta escreve isso em carta na qual discorre sobre os heterônimos,
endereçada a Adolfo Casais Monteiro, com data de 13 de janeiro de 1935 (o escritor morreria em novembro desse ano).
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Na mesma carta, Pessoa informa que Bernardo Soares “em muitas coisas se parece
com Álvaro de Campos”. Diz ainda que Soares “aparece sempre que estou cansado ou
sonolento”. E mais: que o português do semi-heterônimo é “perfeitamente igual”
ao dele, Pessoa, “ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos
razoavelmente (...), Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero
exagerado”. A íntegra dessa carta a Casais Monteiro pode ser lida aqui em nosso site.
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Mas passemos aos textos de Bernardo Soares. Trata-se de anotações riquíssimas, pois mostram a usina de pensamentos que era a cabeça de
Fernando Pessoa (ele mesmo, ou heterônimos). Figura real ou inventada, de seus escritos jorram ideias em cascata, às vezes num mesmo
parágrafo. Selecionei um punhado dessas anotações dele. Em alguns casos, vai o bloco numerado, completo. Em outros,
pincei apenas trechos do bloco. Sinalizei os cortes com o uso de reticências entre parênteses.
No bloco 9, Soares apresenta o patrão Vasques. No 11 faz uma breve anotação filosófica. Os blocos 28 e 80 são divagações pessoais.
No bloco 84, Soares promove uma incrível combinação de ideias. Mistura sua visão sobre gêneros (refere-se, no caso, a uma “rapariga de
modos masculinos”) com a necessidade de transgressão gramatical para dizer as coisas de forma mais verdadeira e “acima da gramática”.
Este, com certeza, é um texto cujas ideias Soares, ou Pessoa, não apresentaria aos colegas do escritório.
A proposta de tratar a moça de jeito masculino como “aquela rapaz” certamente causaria escândalo social e gramatical. É óbvio que Soares
não quer ofender ninguém, nem está preocupado com isso. Sonhador absoluto, como ele se declara num trecho mais adiante, está mais
interessado nos desajustes das formas de dizer as coisas. Explícito rebelde gramatical, nesse terreno ele sente-se o próprio
“rei de Roma”.
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No bloco 88, o ajudante de guarda-livros sai à procura do todo-poderoso. “Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar,
arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como uma carícia não propriamente materna.” Em textos assim, Soares de fato
lembra Álvaro de Campos, de quem Pessoa o aproxima.
No trecho seguinte, o 92, o autor se revela um completo sonhador. “Eu nunca fiz senhão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido
da minha vida”. Mais adiante, continua: “Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci
sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser”.
No fragmento 123, ele cuida de negar as viagens e as aventuras em busca de riquezas. “Que me pode dar a China que a minha alma me não
tenha já dado?” Mais adiante, no bloco 128, a recusa se volta para a possibilidade de compreensão. “Repudiei sempre que me compreendessem.
Ser compreendido é prostituir-se”.
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Os trechos seguintes vão no mesmo rumo. Soares nega tudo, opõe-se a tudo. Mas não se trata de um negativista vulgar. Ele apresenta argumentos,
transforma em alta literatura o que, em muitos casos, sabemos que se trata de ideias
sem o menor sentido prático. E daí?
Não é em qualquer escritório comercial, a qualquer hora, que se pode encontrar um ajudante de guarda-livros chamado Bernardo Soares.
Uma figura sem sossego que,
por sua vez, constitui uma das máscaras atrás da qual se esconde a multialma, autêntica e contraditória, chamada Fernando Pessoa.
MAIS FERNANDO PESSOA
Fernando Pessoa e seus heterônimos já estiveram outras vezes nesta página:
• poesia.net n. 22 (2003)
• poesia.net n. 145 (2005)
• poesia.net n. 250 (2008)
• poesia.net n. 329 (2015)
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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• Fernando Pessoa (Bernardo Soares)
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Pino Daeni, pintor italiano, Seu livro favorito
9.
Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade
da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim
a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a
Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente.
Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é
o que não pode ter solução.
11.
Litania
Nós nunca nos realizamos.
Somos dois abismos — um poço fitando o Céu.
28.
Um hálito de música ou de sonho, qualquer coisa que faça quase sentir, qualquer coisa que faça não pensar.
80.
Intervalo doloroso
Tudo me cansa, mesmo o que me não cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes
de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode esforçar-se.
(...)
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Pino Daeni, Na varanda
84.
(...)
Suponhamos que vejo diante de nós uma rapariga de modos masculinos. Um ente humano vulgar dirá dela, “Aquela rapariga parece um rapaz”.
Um outro ente humano vulgar, já mais próximo da consciência de que falar é dizer, dirá dela, “Aquela rapariga é um rapaz”. Outro ainda,
igualmente consciente dos deveres da expressão, mas mais animado do afeto pela concisão, que é a luxúria do pensamento, dirá dela,
“Aquele rapaz”. Eu direi, “Aquela rapaz”, violando a mais elementar das regras da gramática, que manda que haja concordância de género,
como de número, entre a voz substantiva e a adjetiva. E terei dito bem; terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da
norma, e da quotidianidade. Não terei falado: terei dito.
A gramática, definindo o uso, faz divisões legítimas e falsas. Divide, por exemplo, os verbos em transitivos e intransitivos; porém, o
homem de saber dizer tem muitas vezes que converter um verbo transitivo em intransitivo para fotografar o que sente, e não para, como
o comum dos animais homens, o ver às escuras. Se quiser dizer que existo, direi “Sou”. Se quiser dizer que existo como alma separada,
direi “Sou eu”.
Mas se quiser dizer que existo como entidade que a si mesma se dirige e forma, que exerce junto de si mesma a função divina de se criar,
como hei de empregar o verbo “ser” senão convertendo-o subitamente em transitivo? E então, triunfalmente, antigramaticalmente supremo,
direi “Sou-me”. Terei dito uma filosofia em duas palavras pequenas. Que preferível não é isto a não dizer nada em quarenta frases? Que
mais se pode exigir da filosofia e da dicção?
Obedeça à gramática quem não sabe pensar o que sente. Sirva-se dela quem sabe mandar nas suas expressões. Conta-se de Sigismundo,
Rei de Roma, que tendo, num discurso público, cometido um erro de gramática, respondeu a quem dele lhe falou, “Sou Rei de Roma,
e acima da gramática”. E a história narra que ficou sendo conhecido nela como Sigismundo “super-grammaticam”. Maravilhoso símbolo!
Cada homem que sabe dizer o que diz é, no seu modo, Rei de Roma. O título não é mau, e a alma é ser-se.
Pino Daeni, Atrás do véu
88.
Onde está Deus, mesmo que não exista? Quero rezar e chorar, arrepender-me de crimes que não cometi, gozar ser perdoado como uma carícia não propriamente materna.
Um regaço para chorar, mas um regaço enorme, sem forma, espaçoso como uma noite de verão, e contudo próximo, quente, feminino, ao pé de uma lareira qualquer...
(...)
Quando acabará isto tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para sua casa e me desse calor e afeição... As vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar... Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio... Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum... E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para seu filho adotivo, nem nenhuma Amizade para seu companheiro de brinquedos.
(...)
92.
(...)
Eu nunca fiz senão sonhar. Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da minha vida. Nunca tive outra preocupação verdadeira senão a minha vida interior. As maiores dores da minha vida esbatem-se-me quando, abrindo a janela para dentro de mim, pude esquecer-me na visão do seu movimento.
Nunca pretendi ser senão um sonhador. A quem me falou de viver nunca prestei atenção. Pertenci sempre ao que não está onde estou e ao que nunca pude ser. Tudo o que não é meu, por baixo que seja, teve sempre poesia para mim. Nunca amei senão coisa nenhuma. Nunca desejei senão o que nem podia imaginar. À vida nunca pedi senão que passasse por mim sem que eu a sentisse. Do amor apenas exigi que nunca deixasse de ser um sonho longínquo. (...)
Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!
(...)
Pino Daeni, Contemplação silenciosa
123.
A renúncia é a libertação. Não querer é poder.
Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma mo não pode dar, como mo dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza da minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.
Compreendo que viaje quem é incapaz de sentir. Por isso são tão pobres sempre como livros de experiência os livros de viagens, valendo somente pela imaginação de quem os escreve. E se quem os escreve tem imaginação, tanto nos pode encantar com a descrição minuciosa, fotográfica a estandartes, de paisagens que imaginou, como com a descrição, forçosamente menos minuciosa, das paisagens que supôs ver.
Somos todos míopes, exceto para dentro. Só o sonho vê com o olhar.
(...)
Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos.
Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu.
128.
Repudiei sempre que me compreendessem. Ser compreendido é prostituir-se. Prefiro ser tomado a sério como o que não sou, ignorado humanamente, com decência e naturalidade.
Nada poderia indignar-me tanto como se no escritório me estranhassem.
Quero gozar comigo a ironia de me não estranharem. Quero o cilício de me julgarem igual a eles. Quero a crucifixão de me não distinguirem. Há martírios mais subtis que aqueles que se registam dos santos e dos eremitas. Há suplícios da inteligência como os há do corpo e do desejo.
E desses, como dos outros, suplícios há uma volúpia.
Pino Daeni, Instinto materno
213.
(...)
Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre mim e mim?
223.
O gládio de um relâmpago frouxo volteou sombriamente no quarto largo.
E o som a vir, suspenso um hausto amplo, retumbou, emigrando profundo.
O som da chuva chorou alto, como carpideiras no intervalo das falas. Os pequenos sons destacaram-se cá dentro, inquietos.
261.
Em mim todas as afeições se passam à superfície, mas sinceramente. Tenho sido ator sempre, e a valer. Sempre que amei, fingi que amei, e para mim mesmo o finjo.
359.
Ninguém compreende outro. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa. Por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra — sombra disforme no chão do seu entendimento.
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poesia.net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019
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Fernando Pessoa
• in Livro do Desassossego
Ciranda Cultural/Principis, Jandira-SP, 2018
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Carlos Drummond de Andrade, “Resíduo”, in A Rosa do Povo (1945)
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* Imagens:
obras de
Pino Daeni (1939-2010),
pintor italiano
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