Número 434 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2019

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«A Dor humana busca os amplos horizontes,/ E tem marés, de fel, como um sinistro mar!» (Cesário Verde) *

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Quatro Poetas
Manuel Bandeira; Hilda Hilst;
Ruy Espinheira Filho;
Carlos Drummond de Andrade



Amigas e amigos,

Embora a morte seja a mais inabalável certeza de nossa passagem por este maltratado planeta, sabemos que em geral as pessoas evitam falar dela. Alguns nem sequer lhe pronunciam o nome. Acreditam que o silêncio a respeito da morte tenha o poder de afastá-la.

Assim, para falar dela, assumem-se termos mais ou menos cifrados como “a megera”, “a nefasta”, “a indesejada das gentes”, “a parca”, “a partida”, “a libitina”, “o passamento”, “o decesso”, “o desaparecimento”, “o fim”.

Nisso os poetas desafinam. Destemidos, elas e eles costumam empreender tarefas estranhas e travar diálogos inclusive com entidades que a maioria dos viventes procura evitar. Uma dessas tarefas é dialogar com a morte, fazer-lhe indagações e — suprema audácia — até provocações e desafios. Isso quando não encontram formas de carinhosa conciliação com a temível figura.

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Como o presente boletim circula às vésperas do Dia de Finados, decidi reunir aqui quatro poetas que entabulam conversas com a Indesejada. Começo com o pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968), passo a palavra à paulista Hilda Hilst (1930-2004), que é seguida pelo baiano Ruy Espinheira Filho (1942-). A última aproximação com a misteriosa criatura é feita pelo mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).


Manuel Bandeira

No primeiro poema ao lado, “Preparação para a Morte”, Manuel Bandeira não dialoga com nosso ponto final. Faz, sim, uma comovente aproximação a essa abolição pessoal de todos os relógios. Para o poeta, a vida e cada uma de suas ofertas de beleza (flores, cores, aromas, pássaros) constituem milagres. Só a morte não. Mas, em vez de desprezar a morte, ele a saúda. Afinal, ela, a poderosa, representa a extinção de todos os milagres.

Bandeira foi uma pessoa que desde cedo aprendeu a conviver com a sombra da morte. Acometido de tuberculose na adolescência — num momento anterior aos antibióticos —, o poeta driblou a nefasta o quanto pôde. Viveu 82 anos, e morreu de parada cardíaca, não da tísica que sempre o ameaçou.

Publicada originalmente no livro Estrela da Tarde (1963), essa “Preparação para a Morte” é, em primeiro lugar, uma celebração da vida. Depois, como não há mesmo como evitar o fim, que ele venha e encerre todos os pequenos e grandes milagres, porque afinal tudo passa. Em outro poema, “Consoada” (do livro Opus 10, 1952), Bandeira diz que, quando a morte chegar, “Encontrará lavrado o campo, a casa limpa / A mesa posta / Com cada coisa em seu lugar.”


Hilda Hilst

A poeta Hilda Hilst dedicou um livro inteiro — Da Morte. Odes Mínimas (1980) — a escarafunchar os domínios daquela de quem muitos não ousam sequer dizer o nome. Na parte principal dessa coletânea, a poeta reúne 40 poemas identificados por números romanos. Reproduzo aqui as odes “IX” e “XIX”.

Na primeira, a morte é tratada como uma égua que se aproxima furtivamente: “Os cascos enfaixados / Para que eu não ouça / Teu duro trote”. O resto do texto é cheio de indagações ao animal que se disfarça. E as hipóteses do encontro são várias. Em tom de cortesia, em vez de perguntar se a invasora chegará de forma brutal, admite sua ingenuidade em lugar da violência: “Virás criança / Num estilhaço de louças?” A poeta também imagina a morte como uma amante em cenas de ciúmes.

Na ode “XIX”, a preocupação se volta para o nome da criatura sinistra. “Se eu soubesse / Teu nome verdadeiro // Te tomaria / Úmida, tênue // E então descansarias”. A ideia, aqui, parece ser: quem nomeia tem a sensação de que exerce algum controle sobre a situação e acaba dominando as surpresas e fúrias que podem advir da entidade nomeada.

Mais adiante, o sujeito lírico — uma mulher, neste caso temerosa e temerária — parte para uma tentativa de sedução. Diz à morte que, se for tratada com carinho, mudará o nome da terrível. “Ao invés de Morte / Te chamo Poesia / Fogo, Fonte, Palavra viva / Sorte”. Um detalhe: antes, na mesma ode, morte vinha em minúscula. Mas se a megera ceder ao encantamento sensual proposto pela mulher, seu nome passará a ser escrito em caixa alta e terá variações gloriosas como Poesia, Fogo, Palavra, Sorte. Será que a todo-poderosa aceita?


Ruy Espinheira Filho

No poema “Simples Canção da Visitante”, de Ruy Espinheira Filho, o sujeito lírico não tenta nenhum truque para ludibriar aquela que, mais cedo ou mais tarde, nos baterá à porta. Ao contrário: logo no primeiro quarteto, ele admite que ela poderá chegar “docemente ou / com estrondo”.

Indisposto a briga ou a qualquer forma de enfrentamento inútil, o vivente apenas se propõe a pedir que a visitante seja leve “e em meu coração se deite / como fonte de ternura”. E é somente isso. No mais, espera consolo para seus sonhos (perdidos ou interrompidos) e entende que a visitante afinal lhe dirá o nome: “Adeus”.

Observe-se que neste poema surge, mais uma vez, a inescapável necessidade de nomear. Como se está tratando com entidade desconhecida, prevalece sempre a ilusão de que, conhecendo o nome dela, obtém-se ao menos o conforto de encarar a criatura sabendo quem ela é. O poema de Ruy Espinheira Filho foi publicado originalmente em seu livro Babilônia & Outros Poemas (Patuá, 2017). Aliás, num simbolismo muito forte, é o último texto do volume.


Carlos Drummond de Andrade

Deixei para o fim este estupendo poema de Drummond, “Como Encarar a Morte”, publicado no livro Corpo, de 1984, três anos antes do desaparecimento do autor. O texto se divide em cinco blocos de oito versos. Em cada bloco, a morte é vista de um ângulo diferente. Observada “de longe”, a assustadora entidade dá a ver um ambiente idílico, com bem-te-vis e um barco “de ouro e lápis-lazúli”. O barco é inebriado de brisa doce e os bem-te-vis “dormem no espaço”.

No passo seguinte, mais próxima, a morte é vista “a meia distância”. Aparecem sinais de luz e sombra. E surge a dúvida: “Quem ousa dizer o que viu, / se não viu a não ser em sonho?” Repito: “não viu a não ser em sonho”. Neste ângulo, o vivente já confessa sentir um arrepio. Mas é tudo ainda tranquilo. Vem agora a perspectiva “de lado”. Chega, sem se saber ao certo quem, um viajante à procura do observador. “Algum ponto em nós se recusa”, anota o procurado. Atenção: nos dois passos anteriores, reinava a calma. Aqui, surge a palavra “recusa”.

Continua a via-sacra, agora para a visão mais do que próxima: “de dentro”. O visitante, que antes se ocultava, mostra-se de “corpo inteiro, / se merece nome de corpo / o gás de um estado indefinível”. Mergulhamos no desconhecido. Surge, então, um trecho que lembra outro poema drummondiano, “A Máquina do Mundo”, de Claro Enigma (1951).

Nesse épico, um homem caminha devagar por uma estrada de Minas e recebe a oferta maravilhosa de conhecer a máquina do mundo e desvendar todos os segredos da vida. Contudo, “incurioso”, ele recusa a riquíssima dádiva. Aqui, na visão “de dentro”, a morte também “promete riquezas, prêmios”. O indivíduo (na verdade, nós, pois o texto usa repetidamente esse pronome) também abre mão desse fascinante bônus. Mais uma vez, “falta curiosidade” — e não há mais o “ferrão do desejo”.

Vem, por fim, o último passo: “sem vista”. Há um “vaso coberto / de resina e lótus e sons”. Ou seja, o adeus já se cumpriu de forma integral. E agora, José? Os últimos versos dão a resposta. A rigor, uma não resposta. Nem se viaja, nem se fica, aqui ou em qualquer lugar. E o que “afinal se sabe” é algo que totalmente se ignora.

Portentoso Drummond.


Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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Cara a cara com a morte


• Manuel Bandeira  • Hilda Hilst 
• Ruy Espinheira Filho 
• Carlos Drummond de Andrade


              



Roman Zakrzewski - 2009-18.jpg
Roman Zakrzewski, pintor polonês, 2009-18



• Manuel Bandeira

PREPARAÇÃO PARA A MORTE

A vida é um milagre.
Cada flor,
Com sua forma, sua cor, seu aroma,
Cada flor é um milagre.
Cada pássaro,
Com sua plumagem, seu voo, seu canto,
Cada pássaro é um milagre.
O espaço, infinito,
O espaço é um milagre.
A memória é um milagre.
A consciência é um milagre.
Tudo é milagre.
Tudo, menos a morte.
— Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres.

    Publicação original: in Estrela da Tarde (1963)




Roman Zakrzewski - 2005-03
Roman Zakrzewski, 2005-03



• Hilda Hilst

IX

Os cascos enfaixados
Para que eu não ouça
Teu duro trote.
É assim, cavalinha,
Que me virás buscar?
Ou porque te pensei
Severa e silenciosa
Virás criança
Num estilhaço de louças?
Amante
Porque te desprezei?
Ou com ares de rei
Porque te fiz rainha?


XIX

Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro

Te tomaria
Úmida, tênue

E então descansarias.

Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono

Te prometo, morte,
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.

Se me tocares,
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens

Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, Palavra viva
Sorte.

    Publicação original: in Da Morte. Odes Mínimas (1980)




Roman Zakrzewski - 2012-19
Roman Zakrzewski, 2012-19



• Ruy Espinheira Filho

SIMPLES CANÇÃO DA VISITANTE

Poderá ser pleno dia,
como funda noite morta:
baterá docemente ou
com estrondo à minha porta.

Bem mais do que à porta, ao peito
chegará a visitante.
Plena nitidez que emerge
de antiga sombra insinuante.

E pedirei: pouse suave,
exile toda a amargura
e em meu coração se deite
como fonte de ternura.

Que assim seja. E me console
de todos os sonhos meus,
quando, num último abraço,
soprar-me seu nome: Adeus...

    Publicação original: in Babilônia & Outros Poemas (2017)




Roman Zakrzewski - 2011-06
Roman Zakrzewski, 2011-06



• Carlos Drummond de Andrade

COMO ENCARAR A MORTE


De longe

Quatro bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lápis-lazúli,
e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.

O barco lá fica banhado
de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.


A meia distância

Claridade infusa na sombra,
treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?

Mas insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranquila.


De lado

Sente-se já, não a figura,
passos na areia, pés incertos,
avançando e deixando ver
um certo código de sandálias.

Salvo rosto ou contorno explícito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.


De dentro

Agora não se esconde mais.
Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gás de um estado indefinível.

Seu interior mostra-se aberto.
Promete riquezas, prêmios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.


Sem vista

Singular, sentir não sentindo
ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.

Nem viajar nem estar quedo
em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.

    Publicação original: in Corpo (1984)




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019



• Manuel Bandeira
   “Preparação para a Morte”
   in Estrela da Vida Inteira
   José Olympio, 6ª ed., Rio de Janeiro, 1976
• Hilda Hilst
   “Da Morte. Odes Mínimas”, poemas “IX” e “XIX”
   in Da Poesia
   Cia. das Letras, São Paulo, 2017
• Ruy Espinheira Filho
   “Simples Canção da Visitante”
   in Babilônia & Outros Poemas
   Patuá, São Paulo, 2017
• Carlos Drummond de Andrade
   “Como Encarar a Morte”
   in Poesia Completa
   Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2002
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* Cesário Verde, “O Sentimento dum Ocidental” (1880)
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* Imagens: obras de Roman Zakrzewski (1955-2014), pintor polonês