Amigas e amigos,
Embora a morte seja a mais inabalável certeza de nossa passagem por este maltratado planeta, sabemos que em geral as pessoas evitam falar dela.
Alguns nem sequer lhe pronunciam o nome. Acreditam que o silêncio a respeito da morte tenha o poder de afastá-la.
Assim, para falar dela, assumem-se termos mais ou menos cifrados como “a megera”, “a nefasta”, “a indesejada das gentes”, “a parca”, “a partida”,
“a libitina”, “o passamento”, “o decesso”, “o desaparecimento”, “o fim”.
Nisso os poetas desafinam. Destemidos, elas e eles costumam empreender tarefas estranhas e travar diálogos inclusive com entidades que a maioria
dos viventes procura evitar. Uma dessas tarefas é dialogar com a morte, fazer-lhe indagações e — suprema audácia — até provocações e desafios.
Isso quando não encontram formas de carinhosa conciliação com a temível figura.
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Como o presente boletim circula às vésperas do Dia de Finados, decidi reunir aqui quatro poetas que entabulam conversas com a Indesejada. Começo
com o pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968), passo a palavra à paulista Hilda Hilst (1930-2004), que é seguida pelo baiano
Ruy Espinheira Filho (1942-). A última aproximação com a misteriosa
criatura é feita pelo mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987).
Manuel Bandeira
No primeiro poema ao lado, “Preparação para a Morte”, Manuel Bandeira não dialoga com nosso ponto final. Faz, sim, uma comovente aproximação
a essa abolição pessoal de todos os relógios. Para o poeta, a vida e cada uma de suas ofertas de beleza (flores, cores, aromas, pássaros)
constituem milagres. Só a morte não. Mas, em vez de desprezar a morte, ele a saúda. Afinal, ela, a poderosa, representa a extinção de todos
os milagres.
Bandeira foi uma pessoa que desde cedo aprendeu a conviver com a sombra da morte. Acometido de tuberculose na adolescência — num momento
anterior aos antibióticos —, o poeta driblou a nefasta o quanto pôde. Viveu 82 anos, e morreu de parada cardíaca, não da tísica que sempre
o ameaçou.
Publicada originalmente no livro Estrela da Tarde (1963), essa “Preparação para a Morte” é, em primeiro lugar, uma celebração da vida.
Depois, como não há mesmo como evitar o fim, que ele venha e encerre todos os pequenos e grandes milagres, porque afinal tudo passa. Em outro
poema, “Consoada” (do livro Opus 10, 1952), Bandeira diz que, quando a morte chegar, “Encontrará lavrado o campo, a casa limpa / A mesa
posta / Com cada coisa em seu lugar.”
Hilda Hilst
A poeta Hilda Hilst dedicou um livro inteiro — Da Morte. Odes Mínimas (1980) — a escarafunchar os domínios daquela de quem muitos não
ousam sequer dizer o nome. Na parte principal dessa coletânea, a poeta reúne 40
poemas identificados por números romanos. Reproduzo aqui as odes “IX” e “XIX”.
Na primeira, a morte é tratada como uma égua que se aproxima furtivamente: “Os
cascos enfaixados / Para que eu não ouça / Teu duro trote”. O resto do texto é
cheio de indagações ao animal que se disfarça. E as hipóteses do encontro são
várias. Em tom de cortesia, em vez de perguntar se a invasora chegará de forma
brutal, admite sua ingenuidade em lugar da violência: “Virás criança / Num estilhaço de louças?” A poeta
também imagina a morte como uma amante em cenas de ciúmes.
Na ode “XIX”, a preocupação se volta para o nome da criatura sinistra. “Se eu soubesse / Teu nome verdadeiro // Te tomaria / Úmida, tênue //
E então descansarias”. A ideia, aqui, parece ser: quem nomeia tem a sensação de
que exerce algum controle sobre a situação e acaba dominando as surpresas e fúrias
que podem advir da entidade nomeada.
Mais adiante, o sujeito lírico — uma mulher, neste caso temerosa e temerária — parte para uma tentativa de sedução. Diz à morte que, se
for tratada com carinho, mudará o nome da terrível. “Ao invés de Morte / Te chamo Poesia / Fogo, Fonte, Palavra viva / Sorte”. Um detalhe: antes,
na mesma ode, morte vinha em minúscula. Mas se a megera ceder ao encantamento sensual proposto pela mulher, seu nome passará a ser escrito em caixa alta e terá
variações gloriosas como Poesia, Fogo, Palavra, Sorte. Será que a todo-poderosa aceita?
Ruy Espinheira Filho
No poema “Simples Canção da Visitante”, de Ruy Espinheira Filho,
o sujeito lírico não tenta nenhum truque para ludibriar aquela que, mais cedo ou mais tarde,
nos baterá à porta. Ao contrário: logo no primeiro quarteto, ele admite que ela poderá chegar “docemente ou / com estrondo”.
Indisposto a briga ou a qualquer forma de enfrentamento inútil,
o vivente apenas se propõe a pedir que a visitante seja leve “e em
meu coração se deite / como fonte de ternura”. E é somente isso. No mais, espera consolo para seus sonhos (perdidos ou
interrompidos) e entende que a visitante afinal lhe dirá o nome: “Adeus”.
Observe-se que neste poema surge, mais uma vez, a inescapável necessidade de nomear. Como se está tratando com entidade desconhecida,
prevalece sempre a ilusão de que, conhecendo o nome dela, obtém-se ao menos o conforto de encarar a criatura sabendo quem ela é. O poema
de Ruy Espinheira Filho foi publicado originalmente em seu livro Babilônia & Outros Poemas (Patuá, 2017). Aliás,
num simbolismo muito forte, é o último texto do volume.
Carlos Drummond de Andrade
Deixei para o fim este estupendo poema de Drummond, “Como Encarar a Morte”, publicado no livro Corpo, de 1984, três anos antes do
desaparecimento do autor. O texto se divide em cinco blocos de oito versos. Em cada bloco, a morte é vista de um ângulo diferente. Observada
“de longe”, a assustadora entidade dá a ver um ambiente idílico, com bem-te-vis e um barco “de ouro e lápis-lazúli”. O barco é inebriado de
brisa doce e os bem-te-vis “dormem no espaço”.
No passo seguinte, mais próxima, a morte é vista “a meia distância”. Aparecem sinais de luz e sombra. E surge a dúvida: “Quem ousa dizer o que viu, /
se não viu a não ser em sonho?” Repito: “não viu a não ser em sonho”. Neste ângulo, o vivente já confessa sentir um arrepio. Mas é
tudo ainda tranquilo. Vem agora a perspectiva “de lado”. Chega, sem se saber ao certo quem, um viajante à procura do observador. “Algum
ponto em nós se recusa”, anota o procurado. Atenção: nos dois passos anteriores, reinava a calma. Aqui, surge a palavra “recusa”.
Continua a via-sacra, agora para a visão mais do que próxima: “de dentro”. O visitante, que antes se ocultava, mostra-se de “corpo inteiro,
/ se merece nome de corpo / o gás de um estado indefinível”. Mergulhamos no desconhecido. Surge, então, um trecho que lembra outro poema
drummondiano, “A Máquina do Mundo”, de Claro Enigma
(1951).
Nesse épico, um homem caminha devagar por uma estrada de Minas e recebe a oferta maravilhosa de conhecer a máquina do mundo
e desvendar todos os segredos da vida. Contudo, “incurioso”, ele recusa a riquíssima dádiva. Aqui, na visão “de dentro”, a morte também
“promete riquezas, prêmios”. O indivíduo (na verdade, nós, pois o texto usa
repetidamente esse pronome) também abre mão desse
fascinante bônus. Mais uma vez, “falta curiosidade” — e não há mais o “ferrão do desejo”.
Vem, por fim, o último passo: “sem vista”. Há um “vaso coberto / de resina e lótus e sons”. Ou seja, o adeus já se cumpriu
de forma integral.
E agora, José? Os últimos versos dão a resposta. A rigor, uma não resposta. Nem se viaja, nem se fica, aqui ou em qualquer lugar.
E o que “afinal se sabe” é algo que totalmente se ignora.
Portentoso Drummond.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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