Número 436 - Ano 17

São Paulo, quarta-feira, 27 de novembro de 2019

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«As folhas enchem de ffs as vogais do vento.» (Mario Quintana) *

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Murilo Mendes
Murilo Mendes



Amigas e amigos,

Algumas pessoas, quando vão deixando para trás muitos calendários, fazem de tudo para ocultar sua idade. Este boletim, ao contrário, orgulha-se da idade que tem e deixa-a, bem estampada, no alto da página. Nesta edição iniciamos a comemoração dos 17 anos do poesia.net.

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O poeta em foco nesta edição, o mineiro Murilo Mendes (1901-1975), fez de tudo um pouco antes de publicar seu primeiro livro, Poemas, em 1930. Estudou Farmácia (curso que abandonou ao fim do primeiro ano), foi telegrafista, prático de farmácia, guarda-livros, funcionário de cartório, professor de francês, arquivista e escriturário de banco.

Nascido em Juiz de Fora, Murilo Mendes mudou-se em 1920 para o Rio de Janeiro. Conforme os historiadores literários, fez parte de um grupo de artistas que encontrou no catolicismo refúgio para as crises política e ideológica da sociedade. Entre seus amigos mais destacados encontram-se, por exemplo, o pintor paraense Ismael Nery e do poeta alagoano Jorge de Lima.

Mendes casou-se em 1947 com Maria da Saudade Cortesão, filha de Jaime Cortesão, escritor português exilado no Brasil. A partir dos anos 1950, o poeta dedicou-se à divulgação cultural. Mudou-se para Itália em 1957, onde se fixou como professor de cultura brasileira na Universidade de Roma. Morreu em Lisboa, em agosto de 1975, cidade onde foi sepultado.

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Talvez o traço mais interessante da poesia de Murilo Mendes seja o surrealismo. É nele que, em meu ponto de vista, o poeta escreve suas páginas da mais alta comunicação. Dentro do surrealismo muriliano também se nota a acentuada marca do humor. Outra vertente importante de sua obra é o profundo catolicismo, apresentado num formato pessoal e místico.

Para esta edição, selecionei um punhado de poemas murilianos. O primeiro vem do livro de estreia do autor, Poemas (1930). É a “Modinha do Empregado de Banco”. Nela, o empregado aparenta ser um alter ego do poeta (que, como vimos, também trabalhou em banco e foi prático de farmácia): “Eu sou triste como um prático de farmácia, / sou quase tão triste como um homem que usa costeletas”.

Mas o poeta se revela mesmo no final: “Também se o Diretor tivesse a minha imaginação / o Banco já não existiria mais / e eu estaria noutro lugar”.

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O próximo texto, “O Herói e a Frase”, lembra uma velha lenda veiculada nos livros de História. Em 1631, em combate com uma esquadra espanhola (na época, Portugal e Brasil pertenciam à Espanha), o comandante holandês Adrian Jansen Pater, derrotado, teria se lançado ao mar, exclamando a frase citada no poema. Crítico, irônico, Murilo Mendes não deixa passar essa invenção. Não por acaso, este poema encontra-se num livro chamado História do Brasil (1932).

Em “Pré-História”, a visão irônica e surrealista do poeta se volta para a própria família. O personagem central do poema é a própria mãe — dele mesmo, se a inspiração for pessoal, ou uma mãe qualquer da época, que vai parar num álbum de retratos.

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O surrealismo se revela mais pleno em “Metade Pássaro”, poema de O Visionário (1941): “A mulher do fim do mundo / Dá de comer às roseiras, / Dá de beber às estátuas, / Dá de sonhar aos poetas”. Textos como este e “Por Causa de Jandira” (veja o boletim n. 47) põem Murilo Mendes como uma das maiores expressões do surrealismo no Brasil. Outro poema que pode ser enquadrado no mesmo grupo é “O Poeta Assassina a Musa”, ao lado. Humor e surrealismo.

O poema “Botafogo”, do livro Os Quatro Elementos (1935) combina, sempre com bom humor, surrealismo com uma descrição da paisagem carioca. Em “As Montanhas de Ouro Preto” — do livro Contemplação  de Ouro Preto (1954) — o poeta adota uma dicção solene e a forma de um soneto decassilábico de versos brancos. Nesse caso, não há lugar nem para o humor nem para o surrealismo.

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Mas o espírito jocoso retorna nos quatro poemetos que fecham a seleção, todos pertencentes ao livro Convergência (1970). Nesses textos o que se observa é a liberdade total do poeta, que se solta de todas as amarras para brincar com as palavras e as coisas. Leia-se o primeiro, “Roma”: “Roma não tolerava a rima com outras Romas e outras rimas e outros ramos de outras Romas” etc. O poeta se diverte.

Em “Datas”, a brincadeira consiste na invenção lógica de palavras, sempre dentro do contexto: “Os magos janeiram dia 6 / (...) Os mortos novembram dia 2”. Já em “Romarias”, o exercício lúdico parte das peregrinações religiosas a lugares santos, como Roma e Santiago de Compostela, e desagua em trocadilhos com nomes de mulheres: “As romarias. As Roluísas. As Robeatrizes. As romarias às Roluísas, às Robeatrizes”.

O último poemeto é “Texto de Consulta 4”. Em cinco versos curtíssimos, Murilo Mendes resume, inventivamente, sua relação com a poesia.

Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado


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LANÇAMENTOS

Duas novas coletâneas de poesia — uma em Porto Alegre e a outra em São Paulo —, mais uma novela juvenil, em Salvador.


Fabulário
• Ana Santos

Ana Santos - FabulárioA poeta gaúcha Ana Santos lança seu livro Fabulário, vencedor do Prêmio Minas 2017 na categoria Poesia. A obra é publicada pela editora Confraria do Vento.

Quando:
Quarta-feira, 27/11/2019, às 18h

Onde:
Terezas Café
Rua Giordano Bruno, 318
Rio Branco
Porto Alegre, RS


O Rei Artur Vai à Guerra
• Ruy Espinheira Filho

Ruy Espinheira Filho - O rei ArturO poeta baiano Ruy Espinheira Filho relança a novela juvenil O Rei Artur Vai à Guerra, em publicação da Editora Positivo. A primeira edição dessa obra saiu em 1987.

Quando:
Sábado, 30/11/2019, às 10h

Onde:
Espaço Itaú de Cinema
Praça Castro Alves, s/n
Centro
Salvador, BA


A Natureza Íntima da Água
• Carlos Augusto Pereira

Carlos Pereira - A natureza íntima da águaCarlos Augusto Pereira lança a coletânea de poemas A Natureza Íntima da Água, livro que sai pela Haikai Editora, de São Paulo.

Quando:
Sábado, 30/11/2019,
das 13h às 17h

Onde:
Biblioteca Pública Viriato Correa
Rua Sena Madureira, 298
Metrô Vila Mariana
São Paulo, SP


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O poeta se diverte


• Murilo Mendes


              



Richard Kuhn - 2001-19
Richard Kuhn, pintor alemão, 2001-19 (2019)


MODINHA DO EMPREGADO DE BANCO

Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.

Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos pra não fazerem nada com eles.

Também se o Diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.

      De Poemas (1930)





Richard Kuhn - 1008-19a.jpg
Richard Kuhn, 1008-19 (2019)


O HERÓI E A FRASE

Como é que poderia
Aquele almirante holandês
Na atrapalhação da hora da morte
Gritar abraçado com as ondas.
E, pior, alguém ouvir:
“O oceano é a única sepultura digna de
   um almirante batavo.”

      De História do Brasil (1932)



PRÉ-HISTÓRIA

Mamãe vestida de rendas
Tocava piano no caos.
Uma noite abriu as asas
Cansada de tanto som,
Equilibrou-se no azul,
De tonta não mais olhou
Para mim, para ninguém:
Cai no álbum de retratos.

      De O Visionário (1941)





Richard Kuhn - 1012-18.png
Richard Kuhn, 1012-18 (2018)


METADE PÁSSARO

A mulher do fim do mundo
Dá de comer às roseiras,
Dá de beber às estátuas,
Dá de sonhar aos poetas.
A mulher do fim do mundo
Chama a luz com um assobio,
Faz a virgem virar pedra.
Cura a tempestade,
Desvia o curso dos sonhos,
Escreve cartas ao rio,
Me puxa do sono eterno
Para os seus braços que cantam.

      De O Visionário (1941)



O POETA ASSASSINA A MUSA

Há dez dias que Clotilde
— Uma das musas queridas —
Anda aborrecendo o poeta.
Aparece carinhosa;
De repente vira as costas,
Diz várias coisas amargas,
Bate impaciente com o pé.
Então o poeta aporrinhado
Joga álcool e ateia fogo
Nas vestes da musa.
A musa descabelada
Sai cantando pela rua.
Súbito o corpo grande se estende no chão.

Diversas musas sobressalentes
Desandam a entoar meus cânticos de dor.
Clotilde ressuscitará no terceiro dia,
Clotilde e o poeta farão as pazes.
Música! Bebidas! Venham todos à função.

      De O Visionário (1941)





Richard Kuhn - 1305-19
Richard Kuhn, 1305-19 (2019)


BOTAFOGO

Desfilam algas sereias peixes e galeras
E legiões de homens desde a pré-história
Diante do Pão de Açúcar impassível.
Um aeroplano bica a pedra amorosamente
A filha do português debruçou-se à janela
Os anúncios luminosos leem seu busto
A enseada encerrou-se num arranha-céu

      De Os Quatro Elementos (1935)



MONTANHAS DE OURO PRETO

      A Lourival Gomes Machado

Desdobram-se as montanhas de Ouro Preto
Na perfurada luz, em plano austero.
Montes contempladores, circunscritos,
Entre cinza e castanho, o olhar domado

Recolhe vosso espectro permanente.
Por igual pascentais a luz difusa
Que se reajusta ao corpo das igrejas,
E volve o pensamento à descoberta

De uma luta antiquíssima com o caos,
De uma reinvenção dos elementos
Pela força de um culto ora perdido,

Relíquias de dureza e de doutrina,
Rude apetite dessa cousa eterna
Retida na estrutura de Ouro Preto.

      De Contemplação de Ouro Preto (1954)





Richard Kuhn - Dr. Gabriel Tapie de Celeyran 1894
Richard Kuhn, 2101-19 (2019)


ROMA

Roma não tolerava a rima com outras Romas e outras rimas e outros ramos de outras Romas e outros remos e outros rumos e outros ritos e outros ratos e outras retas e outras rotas e outras ratas.



DATAS

Os magos janeiram dia 6
Os peixes abrilam dia 1
A Virgem setembra dia 8
Os mortos novembram dia 2.



Richard Kuhn - 2604-19
Richard Kuhn, 2604-19 (2019)


ROMARIAS

As romarias a Roma. As romarias a Santiago. As romarias a Congonhas, ao Bom Jesus de Matozinhos.

As romarias ao amor. As romarias ao mato. As romarias ao teatro.

As romarias em círculo. As romarias em fila indiana. As romarias às romanzeiras. As romarias em flor.

A roda das romarias. O rude das romarias. Os rogos das romarias. A musiquinha das romarias.

As romarias. As Roluísas. As Robeatrizes. As romarias às Roluísas, às Robeatrizes.



TEXTO DE CONSULTA 4

A palavra nasce-me
    fere-me
    mata-me
    coisa-me
    ressuscita-me

      De Convergência (1970)




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www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2019



Murilo Mendes
•   in Poesia Completa e Prosa
     Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994
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* Mario Quintana, “Prosódia”, in Sapato Florido (1948)
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* Imagens: obras de Richard Kuhn (1954-), pintor alemão