Número 439 - Ano 18

Salvador, quarta-feira, 11 de março de 2020

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«Briguei comigo: perdi.» (Roberval Pereyr) *

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Ana Santos
Ana Santos



Amigas e amigos,

O boletim poesia.​net começa o ano de 2020 com atraso de um mês. Deveria ter retornado em fevereiro, mas problemas, como se diz, “de força maior” impediram o boletineiro de entrar em ação.

Esta edição traz de volta a poeta gaúcha Ana Santos (Porto Alegre, 1984), que já esteve aqui no boletim n. 394, dois anos atrás. Desta vez, a atenção concentra-se no livro Fabulário (Confraria do Vento, 2019), com o qual a autora conquistou o Prêmio Minas Gerais de Literatura de 2017 na categoria Poesia.

Em Móbile (Patuá, 2017), seu livro de estreia em poesia, Ana Santos já apresentava um trabalho de muita consistência. A promessa se confirma plenamente nesse premiado Fabulário. Acredito, inclusive, que a nova coletânea traz um lirismo mais límpido e ainda mais envolvente.

O tom continua sendo discreto e sutil, porém as ideias e metáforas parecem mais próximas do cotidiano, seja pelo lado real, seja pelas pitadas de surrealismo que vez por outra surgem no cenário. Não estranhem esta observação sobre realiade e surrealismo: afinal, o cotidiano é a fonte maior de fatos considerados absurdos.

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Na miniantologia ao lado, selecionei cinco poemas do Fabulário de Ana Santos. O primeiro é esse delicioso “Retrato de Família”. Guiado pela mão de uma antiga criança, o pincel que descreve o clã familiar vai desenhando pessoas (em boa parte já mortas).

O poema seguinte, “Curtas”, apresenta duas cenas independentes e brevíssimas, como se fossem pequenos filmes. O ponto comum entre elas é que ambas apresentam histórias dolorosas de mãe e filho. “O menino da sua mãe”, como diria Fernando Pessoa.

Vem agora “Palimpsesto”, um metapoema que se põe a pensar sobre a tristeza que envolve um texto poético não lido. O que torna tudo mais pungente é que essa tristeza se mostra na forma de pessoas e objetos concretos: “frutas podres no cesto, / os olhos / dos cães perdidos” ou um velho falando com as paredes. Com esse tratamento, Ana Santos constrói um lirismo palpável, que tem peso, corpo, nome — e dói.

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Em “Notícia de jornal”, a autora nos brinda com uma graciosa e ao mesmo tempo trágica história circense. Como se trata de um texto jornalístico, o fato principal é anunciado logo nos primeiros versos: “Morreu ontem, após tombar / da altura de quinze metros, / a trapezista / Marion Labelle, 23, / no célebre / Cirque d’Hiver.”

Os versos seguintes descrevem a reação da plateia e de outros artistas do circo. A “reportagem” termina com indagações (“Que vórtice / tragou Marion? / De que céu / ela pende agora?”) às quais o jornal, até o fechamento da edição, não pode fornecer respostas. Talvez esclareça tudo no dia seguinte. Ou, o que é mais provável, nunca.

O último poema da minisseleção é “Discurso de um louco em praça pública”. Senhoras e senhores: deliciem-se com a criatividade desse homem que, sem trocar de roupa, assume as personalidades de Lady Godiva, dançarino cigano, borboleta, arlequim — e ainda carrega a Lua como uma pedra no sapato.

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Nascida em Porto Alegre, onde reside, Ana Santos é graduada em jornalismo pelo UFRGS, mestra e doutoranda em Estudos de Literatura pela mesma universidade. Poeta e contista, publicou O que faltava ao peixe (Libretos, 2011, contos); Móbile (Patuá, 2017, poesia); e Fabulário (Confraria do Vento, 2019, poesia). Este último livro foi contemplado com o Prêmio Minas Gerais de Literatura 2017, na categoria poesia.


Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado


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Laudelinas
Capa da publicação

LAUDELINAS, O GRITO
DAS MULHERES

Mais de 40 poetas-mulheres e outras artistas de todo o Brasil reuniram-se na publicação Laudelinas, uma reunião de poemas, artigos e imagens que se opõe à realidade política atual. A apresentação diz: “Laudelinas é uma provocação, um desabafo, uma canção de denúncia e de resistência em um dos momentos mais nefastos da história do país. Nasce como uma coletânea de depoimentos, artigos, poesias, contos, fotografias e performances que procuram traduzir as constantes lutas das mulheres de diferentes etnias, trans e cis.”

O nome Laudelinas é uma homenagem a Laudelina de Campos Melo, filha de trabalhadores escravizados e criadora do primeiro sindicato das domésticas no Brasil, em 1936. Coordenada pelas pernambucanas Taciana Oliveira, cineasta e poeta, e Rebeca Gadelha, artista digital e geógrafa, a publicação pode ser baixada em formato PDF neste endereço.

Fábulas do dia a dia


• Ana Santos


              



Lin Ran
Lin Ran, chinês, arte digital



RETRATO DE FAMÍLIA

O avô finge ler contos de fadas,
um volume pesado e púrpura
que ele aproxima
dos olhos iletrados. Girassóis nascem
das mãos da avó, virados para o leste.

Na cadeira de vime, tia Sybille come
doces, os papéis coloridos
sobre ventre e pernas: uma rainha
em seu trono. Anton puxa as tranças
de Johanna, cobiçando-lhe as asas
de frango; entre os dois, o cão espera
os ossos novos.

Saias secam no varal. Uma libélula
invade a cena. Tio Otto exibe amoras
e sapatos de verniz. Descalço, meu pai
me leva nas costas, não me deixa
cair. A luz recorta e guarda
o rosto de minha mãe.

      ***

“O breu consome tudo”, disse a avó
naquela manhã; consumiu também
aquela manhã. O açúcar não adoça
a língua amarga do tempo.

Num poço fundo, afogam-se
as fadas dos contos. Tombadas
casa e amoreira, nada resta
nesse chão de ervas daninhas.

(Se alguém escavasse
o quintal da infância, acharia ossos
de aves e cães, uns brinquedos
terrosos, o corpo desfeito
de um fantoche antigo.)

Os mortos ignoram sua força,
a vida que gravam nos retratos.
Sorríamos, e a noite maior
já se formava (o fim de cada um
vedado aos sais de prata):

em pleno ocaso, reluzimos
mais que sóis.



Lin Ran
Lin Ran, arte digital (2010)



CURTAS

I

Maria canta
e embala
o corpo quente
do seu menino.
O corpo esfria:

Maria
canta mais alto.


II

Os dois abrem caminho
pela tarde.
A velha ampara
a vasta carnadura
do filho doente:

gigante manso
de alguma fábula,
ninho de pássaro
sobre a cabeça,
ovos quebrados no chão.

O mundo apoia-se
no ombro da velha —
o gigante
cabe em seu ventre.



Marcos Beccari - aquarela
Lin Ran, arte digital (detalhe)



PALIMPSESTO

Há coisas mais tristes
que um poema não lido:

por exemplo, frutas
podres num cesto,
os olhos
dos cães perdidos,
a nudez dos fósseis
de ancestrais extintos.

    ***

Há coisas mais tristes
que um poema não lido:

por exemplo, acenos
ao longe, um nome
escrito na pedra,
um velho
contando às paredes
histórias da infância.




Lin Ran
Lin Ran, arte digital



NOTÍCIA DE JORNAL

Paris, 16/01/1930 —
Morreu ontem, após tombar
da altura de quinze metros,
a trapezista
Marion Labelle, 23,
no célebre
Cirque d’Hiver.

Testemunhas afirmam:
Marion pousou
com tanta graça
no picadeiro
que, por instantes,
pareceu prestes
a levitar.

Crianças gritavam
nas arquibancadas.
Em torno do anjo
circense, vieram
ganir os leões,
os clowns cantaram
num cortejo súbito
e o funâmbulo
enrolou de vez
a corda bamba
em firme carretel.

Certa quiromante
jurou de pés juntos
ter lido essa queda
nas mãos de Marion.
Em vão, o mágico
buscou nos livros
algum feitiço
de ressureição.
Fazendo em seu corpo
um nó doloroso,
o contorcionista
chorou na coxia.

Que vórtice
tragou Marion?
De que céu
ela pende agora?
Em que lona rufla
a sombra de suas asas?

(Não houve respostas
para tais perguntas
até o fechamento
desta edição.)



Lin Ran
Lin Ran, arte digital



DISCURSO DE UM LOUCO EM PRAÇA PÚBLICA

Senhoras e senhores!

Caí da estratosfera
neste campo de papoulas:
túnica brilhante,
um anel
de Saturno
em cada mão.
Vim tocando na queda
um solo de oboé.

Em fila, os anfíbios
seguem meus guizos:
sou o rei dos sapos-bois,
o flautista de Hamelin!

Vou caminhando de costas
(piruetas, cambalhotas),
vou montando, nu em pelo,
este cavalo andaluz:
sou a Lady Godiva,
o cigano bailaor!

Antediluviano,
persisto
como o azul das asas
da Caligo morta.

Estou ganindo na praia,
os periscópios me espreitam:
me disfarço de arlequim,
faço um forte,
um abrigo
subterrâneo.

Ninguém me alcança!
Cuspo na cara dos canalhas.
Provoco incêndios
apenas
para abrir espaço.

Os selenitas me enviam
fac-símiles secretos:
decifro com precisão
os ideogramas lunares.

Não se espantem:
a Lua é uma pedra
em meu sapato.

Este é o jardim
de Getsêmani.
Por que me deixam?
Por que não me veem
chorar?



poesia.​net
www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2020



Ana Santos
      in Fabulário
      Confraria do Vento, Rio de Janeiro, 2019
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* Roberval Pereyr, “Soneto”, in Mirantes (2012)
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* Imagens: retratos digitais desenhados pelo artista chinês Lin Ran, residente nos EUA. Lin Ran pinta com o programa Photoshop.