Amigas e amigos,
Nesta edição, o boletim se volta, pela primeira vez, para a poesia de humor. E para fazer isso em nível elevado, nada melhor do que trazer Millôr Fernandes
(1923-2012), um dos expoentes do humor no Brasil.
A rigor, a classificação “humorista” é apenas uma das múltiplas facetas de Millôr Fernandes. Ele foi também, sem nenhum favor, desenhista, dramaturgo,
romancista, poeta, tradutor e jornalista.
Para que essa lista de atividades não pareça apenas uma enumeração pomposa e vazia, basta citar que o verbete “Millôr Fernandes” na Wikipédia (consultado ontem,
24/03/2020) elenca 37 obras publicadas em prosa, três de poesia, uma de artes visuais, nove peças de teatro editadas em livro (mais cinco não editadas), 11 espetáculos
musicais e ainda quase uma centena de traduções, que incluem romances, fábulas e textos teatrais. Uma obra de respeito.
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Para esta edição, tomamos por base dois livros de Millôr Fernandes: Papáverum Millôr (Nórdica, Rio de Janeiro, 1974) e Poemas (L&PM, Porto Alegre, 1984).
Para começar pisando forte, vamos ler a famosa “Poesia Matemática”, texto datado de 1950. Nele, Millôr pinta e borda com elementos matemáticos. A fábula começa com uma
paixão irresistível: “Às folhas tantas / Do livro matemático / Um Quociente / apaixonou-se / Um dia / Doidamente / Por uma Incógnita”.
E o romance entre os dois segue, até quando aparece o motivo de sua separação, “O Máximo Divisor Comum / Frequentador de Círculos Concêntricos / Viciosos”. E tudo vai desaguar
na Teoria da Relatividade, de Albert Einstein. Deliciem-se com as aventuras dessas entidades matemáticas.
Salto dois poemas curtos, que falam por si sós, e passo para “Bizâncio: 1960”, uma quadrinha dedicada ao poeta
Mário Faustino. Sempre perspicaz em suas observações, Millôr indica a cautela dos sábios
em flagrante contraste com a afoiteza dos idiotas. Este, aliás, é o quadro a que assistimos hoje, com autoridades negando repetidamente a periculosidade do coronavírus:
“Os imbecis atacam / De surpresa”.
Uma técnica desenvolvida por Millôr em seus textos humorísticos é trabalhar frequentemente com um personagem que fala em primeira pessoa. É o que se
vê em vários textos transcritos aqui e também no “Poeminha a um Fotógrafo”. O alvo, neste
último, é a conhecida manifestação da vaidade pessoal de quem, literalmente, quer ficar bem na foto.
Até aqui, os textos citados foram todos extraídos do livro Papáverum Millôr. A propósito, aqui cabe uma explicação a respeito desse título.
No “Poeminha Última Vontade”, de 1962, o autor solicita que seu corpo seja enterrado em qualquer lugar, “que não seja, porém, um cemitério”. E finaliza:
“Até que um dia, de mim caia a semente / De onde há de brotar a flor / Que eu peço que se chame / Papáverum Millôr”. Portanto, o poeta pertence à família
das papaveráceas (papoulas) e sua espécie tem por binome científico Papaverum millor — em itálico e sem acentos, para obedecer à regra de Carl Linnæus.
Millôr certamente usou os acentos para deixar clara a pronúncia das duas palavras.
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A partir deste ponto, os textos que serão citados provêm do livro Poemas. O primeiro deles é o sarcástico “Poeminha Inzoneiro”. Conforme o dicionário,
o adjetivo inzoneiro
significa sonso, manhoso, enganador. O sujeito que se apresenta neste poeminha confessa
ser um sabujo para “os que estão por cima” e tira dos que nada têm.
Mas sempre se afirma
um “homem de bem”. Mais uma vez, Millôr, num texto publicado há décadas, parece falar de hoje, neste país devastado por “homens de bem”.
A mesma sensação nos visita ao ler o “Último Aviso”, que transcrevo na íntegra: “Depressa, meu irmão, / E sai da pista, / Que o Brasil é um trem / Sem maquinista!”
O alerta se aplica perfeitamente aos viróticos dias atuais. O terceto “Poemeu Efemérico” nos provoca ideia similar.
O poemeto seguinte é fruto de uma fina observação das ruas cariocas — no caso uma especial esquina no bairro de Ipanema, a uma quadra da praia.
Vem a seguir o “Poeminha com Limites”, no qual se destaca o filósofo Millôr, que apresenta “limites” para quem pretende ser feliz. Uma curiosidade: chamou-me a
atenção a grande coincidência desse poema com a letra da canção “No Analices” (assim mesmo, em espanhol), composição de Claudio Cartier e Paulo César Feital.
A letra começa assim: “Se quieres ser feliz como me dices / No analices / No analices”. Ouça aqui a música
na interpretação de Nana Caymmi e Claudio Cartier.
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No próximo poema, “Poemeu Paulatino II - Manu Militari” a irreverência milloriana se mostra ao comentar uma notícia sobre a aposentadoria do general Leopoldo Galtieri
(1926-2003), presidente-ditador argentino durante a guerra das Malvinas (1982). Galtieri foi julgado responsável pelo desaparecimento de militantes da oposição às
juntas militares que governaram a Argentina entre 1976 e 1983.
No “Poemeu Paulatino III - Memento Homo”, o humorista lamenta um encontro que é o único a que não pode faltar. Observerm os subtítulos desses poemas, sempre em latim:
“Manu Militari” e “Memento Homo”. Os títulos fazem um trocadilho com a famosa Antologia Palatina, coleção de poemas gregos dos períodos clássico e bizantino.
Sabe-se também que Millôr adorava o idioma latino. No último poema da seleção “Tempos Edax Rerum (Só pra esnobar)”, ele brinca com a citação na língua de Júlio César.
A frase, aliás, vem das Metamorfoses, do poeta Ovídio, e quer dizer “o tempo devorador das coisas”.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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